quarta-feira, 28 de julho de 2021

UMA REFLEXÃO EM TORNO DO AFECTO

Novo texto do Professor A. Galopim de Carvalho.

O afecto, palavra que fomos buscar ao latim affectus, afigura-se-me como um sentimento marcado por uma natural, espontânea e notada dose de ternura na relação com o outro, que tanto pode ser uma pessoa, um animal ou, mesmo, um objecto. 

No seu último livro SENTIR & SABER – a Caminho da Consciência, editado em Novembro do ano passado, pelo Círculo de Leitores, António Damásio, veio reforçar uma convicção muito enraizada em mim, segundo a qual o afecto é fundamental em todos os domínios da nossa vida em sociedade, com destaque na relação ensino/aprendizagem.

Este distinto neurocientista diz que “as capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. São, diz ele, “os alicerces da nossa mente, daquilo que é o nosso ser”. E acrescenta que “é sobre essas capacidades que se vão colocar as capacidades cognitivas”. Para este professor da Universidade do Sul da Califórnia, a conhecidíssima frase “Penso, logo existo”, do filósofo Descartes, é profundamente errónea, porque nasce da ideia, para ele errada, de que aquilo que é mais valorizável no ser humano é o pensamento cognitivo puro. 

Contrapõe a seguir, dizendo que o alicerce da nossa mente, é tudo o que tem a ver com o nosso próprio corpo, com a vida que está a manifestar-se em nós, e cujo estado (bom ou mau) é transmitido através do sentimento. Para Damásio, “as capacidades afetivas têm sido sistematicamente menosprezadas pela nossa cultura, pelo melhor da nossa cultura, não apenas hoje, mas na cultura filosófica tradicional”. 

Há 25 anos, num seu outro livro O Erro de Descartes, Damásio já denunciava “a sobrevalorização das capacidades cognitivas puras, em detrimento das capacidades afectivas”. Para o autor de Sentir & Saber, o fundamental é que se perceba que aquilo que é ser humano não é redutível aos aspetos cognitivos da mente. Pelo contrário. Para ele é preciso alicerçar essa mente do raciocínio puro no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo. 

Não é dizer que somos só corpo, isso seria um disparate. O que não se pode é tentar entender a mente humana sem aí incluir o papel do corpo, da fisiologia, e a expressão dessa fisiologia nos sentimentos. Para Damásio “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. A vários níveis”.

Estas sábias palavras de quem há, décadas, estuda a anatomia do cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência, vêm ao encontro de uma convicção muito enraizada em mim e que posso expressar, servindo-me, em parte, das suas palavras, dizendo que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com o que é puramente racional.

Damásio deu-me, pois, a imensa alegria de confirmar esta muito minha convicção. Tenho plena consciência de todos os êxitos no muito trabalho que desenvolvi, para além do empenho e da persistência que neles coloquei, foram ditados, sobretudo, pela afectividade que sempre caracterizaram o meu relacionamento com as pessoas, quaisquer que sejam as suas posições no tecido social, dos Presidentes da República ao mais humilde dos cidadãos, dos ministros aos contínuos dos ministérios, dos patrões aos assalariados, dos generais e almirantes aos soldados e marinheiros.

Na árdua e prolongada luta que travei pela salvaguarda da jazida com pegadas de dinossáurios de Pego Longo (Carenque), tive oportunidade de me relacionar intensamente com a comunicação social escrita, falada e televisionada. Nesse relacionamento fiz tantos apoiantes e amigos quantos os media com quem privei, em número de algumas dezenas, entre os seniores mais prestigiados e influentes e os mais simples e apagados estagiários que, com o passar dos anos, se fizeram respeitados profissionais.

Percorri os corredores do Poder e, sem nunca me afastar das causas que abracei e pelas quais me bati, bato e dei a cara, fiz amigos e estabeleci relações de muita simpatia com alguns ministros e, o que sempre foi muito importante, com os chefes de gabinete e com as respectivas senhoras secretárias. Outro tanto aconteceu no universo da Assembleia da República, independentemente das filiações partidárias, dos líderes das diferentes bancadas parlamentares aos deputados de todos os partidos. Tem sido assim nas muitas Câmaras Municipais, à margem das respectivas cores políticas, com as quais iniciei e tenho mantido estreita cooperação, sempre a título gracioso, nunca remunerado (pro bono), condição essencial que sempre garantiu e garante a minha não dependência desse outro poder e me não inibe de exercer livremente o meu juízo crítico e de procurar levar a bom termo os projectos em que me tenho envolvido.

Criar pontes de afecto com presidentes ou directores e funcionários, dos mais categorizados aos mais humildes, nas mais variadas instituições públicas e privadas com as quais tive de me relacionar, profissionalmente ou apenas como cidadão, agilizou grandemente todo o trabalho que desenvolvi numa fase da minha vida em que estive ligado ao Museu Nacional de História Natural.

Devo dizer, em abono da verdade, que sem o suporte institucional deste museu e sem o apoio de alguns dos seus funcionários (meus muito amigos) eu não teria tido nem a voz nem a visibilidade que os “media” me deram. Nas duas décadas em que tive responsabilidades, no Museu Nacional de História Natural, de que fui director, beneficiei da muita estima e do afecto dos quatro reitores que nos tutelaram nesses anos, nomeadamente os Profs. Rosado Fernandes, Meira Soares, Barata Moura e Sampaio da Nóvoa.

Na Faculdade de Ciências, onde exerci a docência entre 1961 e 2001, ano em que me jubilei, a vida correu-me bem. Pode dizer-se que tive uma carreira sem dificuldades de maior, que me permitiu viver em paz comigo, com os colegas e com a instituição, num ambiente de grande afectividade e simpatia. Foi prova deste viver a numerosa assistência, nunca vista (cerca de 800 pessoas, entre amigos, colegas, alunos e ex-alunos), à minha última lição, “Geologia e Cidadania”, em 30 de Maio de 2001, no grande auditório da minha Faculdade. Foi, em especial, a afectividade que determinou a presença do general Ramalho Eanes e sua esposa, bem como a do Prof. Mariano Gago, nessa inolvidável cerimónia. É verdade que, praticamente, tudo o que experimentei fazer ou fiz, foi feito com amor, algumas vezes com paixão. 

Foi assim em criança, em que, brincando, fui aprendiz atento de muitas artes. Como estudante, só fui bom aluno com os professores com quem estabeleci relações de afecto. Com os outros fui sofrível ou, mesmo, mau.

Como professor que fui durante quatro décadas pude confirmar que a relação de afecto entre o aluno e o professor constitui uma componente fundamental para o sucesso escolar. Como divulgador de conhecimento que também fui durante esse mesmo período, mais os vinte anos que se seguiram à jubilação, diz quem me ouve ou lê nos meus livros, que as minhas palavras tocam a afectividade e que, muitas vezes, têm sabor de poemas. E eu sei que é verdade, posto que, ainda hoje, as minhas madrugadas são trocas de afectos com os meus mais de 22 200 leitores, no Facebook e nos blogues em que participo.

Quando, em 1997, o Presidente Jorge Sampaio me incluiu, como representante da comunidade científica, na comitiva que o acompanhou na sua viagem de Estado ao Brasil, foi certamente a proximidade afectiva estabelecida entre nós que determinou a sua escolha, deixando de fora muitos outros bem mais categorizados do que eu. Ver o meu nome, na edição de 22.06.99, do Expresso, ao lado de personalidades tão ilustres, como Abel Salazar, António Damásio, Egas Moniz, Gago Coutinho, Gentil Martins, Miguel Bombarda, Odete Ferreira, Orlando Ribeiro, Pulido Valente, Queirós de Melo, Ricardo Jorge e Rómulo de Carvalho, tendo ficado de fora desta lista um sem número de cidadãos bem mais merecedores de nela figurarem, tenho de concluir que nesta escolha, pesou, de sobremaneira, o relacionamento de simpatia e afecto que sempre mantive com os profissionais de informação e, através deles, com o público.
A. Galopim de Carvalho

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