domingo, 22 de setembro de 2019

O QUE É VER NA CIÊNCIA?


Primeira parte de uma extensa entrevista que dei a Margarida Alves, artista plástica e doutoranda em belas Artes na faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa:

Margarida Alves - Gostaria de saber como é que, com recurso a dispositivos tecnológicos (analógicos ou digitais),  podemos descobrir ou inferir a matéria mais ínfima, a matéria infimamente pequena que existe e que é descrita pela física quântica?
Carlos Fiolhais - Vou começar pelo início. Nós somos todos herdeiros de uma grande mudança ocorrida nos séculos XVI e XVII que é chamada “Revolução Científica”. Essa Revolução deu-nos o método científico que, embora seja complicado de enunciar em pormenor, tem alguns elementos essenciais:  a observação, que é uma visão cuidadosa; a experimentação, que é a observação de situações controladas; e o raciocínio lógico, que se baseia na matemática. O método inclui também a crítica, no sentido em que as conclusões da ciência têm de ser comunicadas e validadas, primeiro no interior da comunidade científica e depois a todos. É tudo isto  que faz a ciência,  é isto o que a distingue de outras actividades humanas, como por exemplo a arte. Há outras actividades humanas que têm alguns destes elementos, mas não todos  e não da mesma maneira. Podemos dizer que na arte há observação, que pode até haver num certo sentido  experimentação,  mas o raciocínio lógico não é um imperativo na arte. A  arte, embora dependa da crítica, porventura não depende tanto dela como a ciência. Mas as relações entre arte e ciência são profundas  e merecem uma reflexão mais alongada…
Quando a ciência começou a observação foi muito importante, mesmo quando não se podia experimentar. Percebeu-se imediatamente que se podia ver mais do que aquilo que os nossos  olhos viam ou, melhor, aquilo que os olhos directamente viam. Isso é bem manifesto isso no trabalho de Galileu, em 1609, quando olha para o céu com um instrumento novo, o telescópio, e faz descobertas sensacionais, que anuncia no ano seguinte em O Mensageiro das Estrelas. Não foi ele que inventou o telescópio, mas foi ele o primeiro a olhar para o céu com atenção e a registar o que viu:  descreveu coisas no céu que nunca ninguém tinha visto. O que ele viu era radicalmente novo… A Natureza revelava-se surpreendente ao  fornecer, com a ajuda do instrumento, fenómenos que a vista humana não tinha conseguido alcançar. Havia coisas que estavam antes invisíveis que eram espantosas, como por exemplo manchas no Sol - o Sol não era perfeito;  irregularidades na Lua – o nosso satélite  tinha  montes e vales, isto é, não era uma esfera perfeita; fases de Vénus, antes difíceis de discernir dada a pequenez do astro; e, acima de tudo, quatro satélites de Júpiter, luas que andavam à volta desse planeta, tal como a Lua andava à volta da Terra. Tudo isso mudou o pensamento humano a respeito do mundo.
Havia mais mundos para além da nossa directa percepção. As novidades do invisível passaram a ser uma marca da ciência e  esta passou a partir daí a procurar o mundo invisível. Começou pelo muito grande, que está muito longe (não digo infinitamente longe porque o infinito é uma questão mais matemática e se quisermos metafísica do que física), mas em breve, ainda no século XVII, passou a ver o muito pequeno,  continuando a usar  lentes, ligadas em sistemas ópticos que mudavam o percurso da luz. As lentes de Galileu tinham vindo da Holanda de  fabricantes de óculos. Foram  também holandeses os inventores do primeiro microscópio. A primeira pessoa a usar o microscópio para veres seres vivos foi o holandês Anton van Leeuwenhoek. Aqui há um aspecto importante a realçar: a precedência nessa época da tecnologia sobre a ciência. Por que é que antes ninguém tinha conseguido ver aquilo que o Galileu viu? Porque a indústria de lentes não estava suficientemente desenvolvida. O talhamento do vidro, a escultura do vidro, para usar uma palavra do mundo da arte (estou-me a lembrar das esculturas muito lisas do  Brancusi), atingiu no início do século XVII na Holanda um estado de perfeição que permitia usar as lentes em instrumentos de visão. Foi preciso que os artífices holandeses conseguissem polir muito bem as lentes para que elas pudessem servir em artefactos tecnológicos. Lembro que  Espinosa foi polidor de lentes. Houve, portanto, uma mudança tecnológica que permitiu uma mudança científica. Esse processo passou a repetir-se: quando uma tecnologia avança, a ciência avança também. A diferença para os tempos de hoje é que agora praticamente toda a tecnologia vem da  ciência, o que significa que a ciência se alimenta a si própria ao produzir objectos tecnológicos que por sua vez alavancam o progresso do conhecimento científico. É uma espécie de “pescadinha de rabo na boca”…
 Leeuwenhoek recorreu a um microscópio para ver o muito pequeno. É só uma  questão de escolher as lentes adequadas e colocá-las na posição certa. E conseguiu  ver animais minúsculos, ou pormenores de animais maiores, como a sua estrutura celular. Passou-se, no domínio microscópico, tal como tinha acontecido antes no domínio do macroscópico,  a ver coisas que nunca ninguém tinha visto. Robert Hooke, um físico inglês do tempo de Newton, foi o autor de um livro com  imagens absolutamente impressionantes, Micrographia, publicado em  Londres em 1665. A física, através da óptica, conquistou nessa altura tanto o grande como o pequeno. Podemos ver mais do que os nossos olhos vêem e os instrumentos ópticos são o modo de ampliação da nossa vista. 
Não  é de mais enfatizar o sentido  da visão. Temos outros sentidos, mas a vista é importantíssima. É-o também na arte, nas chamadas  artes visuais em particular. Talvez arrisque dizer que a visão é o nosso sentido mais importante porque as câmaras que são os nossos olhos não só estão colocadas perto do cérebro como efectuam já, na retina, algum processamento da informação. De certo modo a vista é uma parte do cérebro. O sinais vindos da vista têm, no  nervo óptico,  de percorrer uma curta distância para que haja processamento completo.  As câmaras que são os nossos olhos passaram a ser ampliadas por meios artificiais.  O telescópio e  microscópio forneciam uma capacidade acrescida ao olhos: A capacidade da visão humana estendeu-se para os dois lados, o que está perto e é pequeno e o que está longe e é grande. Passámos a ver mais do que aquilo que víamos directamente, passámos a ver mais mundos do que o mundo à nossa escala. A partir do momento em que houve uma apreensão de escalas diferentes  imediatamente o nosso cérebro ampliou-se. Quando a vista se amplia, o cérebro amplia-se também, porque a vista e o cérebro estão ligados intimamente ligados.
A partir de então, estava aberto o caminho para mais transformações desse tipo. Fazem-se telescópios cada vez mais poderosos e continuamos nesse caminho, não está à vista o seu fim. Estamos a construir telescópios cada vez mais poderosos para ver ainda mais longe, usando luz de todo o tipo. A luz pode ser visível como foi usada por Galileu e Leeuwenhoek mas, sabemos hoje, pode ser invisível. Construímos telescópios para recolher luz de todo o género que vem do espaço: a luz infravermelha, a luz ultravioleta, raios X, ondas de rádio, etc. Sabemos muita coisa de objectos do  espaço distante graças aos raios X. Nesse caso, os telescópios têm de estar montados num satélite porque os raios X não chegam à Terra. Felizmente que a atmosfera os absorve  pois são perigosos para a vida. As ondas de rádio, essas sim, chegam à Terra, através da atmosfera, e dispomos de radiotelescópios para as captar. Estamos a instalar novos telescópios que são cada vez maiores, o que significa que cada vez vemos mais, que vemos coisas novas e que vemos coisas que já conhecemos com cada vez mais pormenor.
 A nossa visão no espaço distante tem um limite que tem a ver com o Big Bang que se deu há catorze mil milhões de anos. A luz tem uma velocidade finita, o que significa que não podemos ver mais do que uma esfera de catorze mil milhões de anos-luz. Não sabemos se o Universo é finito ou infinito, mas o nosso Universo observável está dentro de uma esfera de catorze mil milhões de anos-luz.
Para o outro lado, para o lado do muito pequeno, os microscópios desenvolveram-se também extraordinariamente, passámos a ter, no século XX, microscópios electrónicos, o que significa que, em vez de luz, passámos a usar electrões, partículas elementares de carga negativa que interagem com a matéria. Ver pode não ser só com a luz. É sempre  interacção com a matéria, seja de luz seja de partículas, que falamos quando falamos de ver. Num microscópio electrónico, precisamos no final uma tradução em luz da informação recolhida pelos electrões  porque o nosso cérebro é particularmente  sensível à luz.  As imagens começam por ser captadas por electrões e passadas depois para sinais luminosos. Há outros tipos de microscópios, mais poderosos, chamados uns de “efeito túnel” e outros de “força atómica”, que conseguem visualizar os átomos. Os primeiros usam também electrões.  Outrora os átomos eram uma abstracção útil, mas hoje são uma realidade observada. Os átomos existem, não são apenas coisas conceptuais. Não só vemos os átomos como os manipulamos, é esse o objectivo da nanotecnologia.
 Num microscópio de efeito túnel estabelecemos uma grande tensão eléctrica entre a superfície que queremos observar e uma ponta do microscópio e isso faz com que alguns dos electrões que estão no objecto passem para a ponta, que funciona como uma sonda. Regista-se qual é a corrente que está a passar e nós “vemos” qual é a densidade de electrões na superfície: se há mais electrões, a corrente é maior. Não se pode com esta técnica ver o interior da matéria, mas apenas  a superfície. Com as correntes recolhidas fazemos aparecer num ecrã de computador uma modelação tridimensional. E vemos que a superfície é granulada, isto é, que a matéria tem uma estrutura atómica. Quando se trata de cristais, existe regularidade, simetria,  mas há também matéria amorfa e todo o tipo de  possibilidades entre a ordem e a desordem, o que torna a observação do mundo muito interessante. A  relação entre  ordem e  desordem muda conforme a temperatura. À temperatura muito baixa, a ordem impera mas, à medida que a temperatura aumenta, a desordem vai-se instalando. É essa a diferença entre o frio e o quente… Com raios X podemos ver o interior dos objectos e reconhecer também aí a ordem ou a falta dela.
Nos tempos mais recentes, para ver o mais ínfimo da matéria, designadamente os quarks, o que fazemos, de uma maneira ou de outra, é “provocar” a matéria enviando-lhe luz ou partículas para cima. Se os projécteis forem a grande velocidade, o objecto-alvo desfaz-se em mil peças e esperamos, como quem despedaça violentamente um relógio,  perceber de que são feitas as coisas  a partir da recolha das  peças espalhadas. Digamos que  os “relógios” da Natureza  são muito complicados e nós, quando usamos aceleradores de partículas, procuramos descobrir os seus constituintes e perceber o seu funcionamento.. O que é que vemos? O que ficamos a saber? Sabemos hoje que toda a matéria é feita de átomos e que  os átomos são feitos de núcleos e electrões; que os núcleos por sua vez são feitos de protões e neutrões, e que os protões e neutrões são feitos de quarks. Estas são as partículas “últimas” que conhecemos hoje, não quer dizer que sejam as partículas finais. Há muita especulação sobre o que serão as partículas “últimas”, mas uma coisa é certa, toda a matéria que vemos, do muito grande ao muito pequeno, é formada por partículas, quer dizer, toda a matéria  é corpuscular. Todas as formas de matéria que vemos no Universo são feitas a partir de constituintes microscópicos que são na última escala conhecida  partículas. No fundo, o mundo é um conjunto de bonecas russas, com umas peças a encaixar nas outras. Os nossos instrumentos têm de ser os mais adequados para observar as matrioscas maiores e as mais pequenas. Tudo aquilo que conhecemos do mundo é sempre a partir da observação, na maior parte dos casos instrumental.
 Em resumo: A luz interage com a matéria e é isso que faz a observação directa. Por outro lado, a própria matéria interage com a matéria, como ocorre no microscópio electrónico ou no microscópio de efeito túnel, constituindo outras modalidades de observação.
 Recentemente, descobrimos que o mundo chegam sinais que não são nem de luz nem de  matéria. A luz e a matéria existem em dois “cenários”, o espaço e o tempo, que estão interrelacionados. O espaço e o tempo são os “palcos” em que a luz e a matéria existem. Einstein há cerca de cem anos propôs que o espaço e o tempo podiam abanar: são as ondas gravitacionais. Hoje há todo um conjunto de confirmações experimentais destas ondas, pelo que  não se trata de um mero raciocínio teórico. A  observação é muito sofisticada: mas podemos dizer que os detectores de ondas gravitacionais são novos tipos de telescópios. As ondas gravitacionais provêm de choques de buracos negros e de estrelas de neutrões, que são estrelas muito pesadas. Essas ondas  ensinam-nos que os palcos em que a matéria existe são dinâmicos, quer dizer, o espaço e o tempo  são alterados pela presença da matéria e energia. Essa alteração é, segundo Einstein, a própria força da gravidade. Quando um buraco negro, que é uma estrela na fase final da sua vida,  está a circular à volta de outro, e caem em espiral  um sobre o outro, o  choque é tão grande que o espaço e o tempo são abanados a toda a volta chegando a perturbação muito longe. Nós que estamos muito distantes desses objectos (não convém estar próximo, pois o choque de dois buracos negros é dos eventos mais violentas que acontecem no cosmos) a milhões de anos-luz de distância, conseguimos registar o abano no espaço, que aqui chega minúsculo.  Este registo não deixa de ser uma forma de observação, mas não estamos a usar luz.  A luz intervém, mas não há luz directa vinda do espaço,  mas sim outro tipo de ondas.  A observação é nova: estamos a “ouvir” o Universo e não apenas a vê-lo.  Uso a palavra “ouvir” entre aspas, porque pode-se pensar que é som, mas não é, pois chega  através do vazio cósmico. É o próprio espaço que abana, não é como o ar que aqui abana, quando há uma vibração. Está-me a ouvir por causa das moléculas que estão a abanar no ar à minha frente, mas os  emissores de ondas gravitacionais são objectos cósmicos que sofrem profundas alterações e o espaço abana numa agitação que acaba por cá chegar. Usamos espelhos que são vistos a  abanar, o que nós percebemos com a ajuda de luz laser.
Por outras palavras, há muitas formas de observação, usando luz directamente, usando matéria, e modernamente usando ondas de gravidade, que são perturbações do próprio espaço. Nós  tiramos conclusões a partir e tudo o que “vemos” e, quando temos novas janelas de visão proporcionadas por novos instrumentos, ficamos a saber mais. Os instrumento originam nova ciência, e vai continuar a ser assim no futuro. Não é apenas nem sequer principalmente porque uma pessoa, como o Einstein, se lembra de uma ideia nova - as ideias puramente mentais são muito raras- que alcançamos novo conhecimento.  É Conseguimos ver e saber mais principalmente  porque construímos  novos instrumentos. Einstein tinha uma enorme  imaginação. Pessoas menos dotadas do que eles baseiam-se em instrumentos para alcançar a  “imaginação” da Natureza, estou a usar uma metáfora.  Com os instrumentos, nós conseguimos descobrir, desvendar a “imaginação” da Natureza, A Natureza tem uma imaginação muito superior à nossa. Por outras palavras, não está à vista o fim do empreendimento científico. A história da ciência ensina que, quando nós pensámos que o empreendimento científico está acabado, que já vimos tudo, que já sabemos tudo, então surge uma surpresa que nos faz perceber que não  vimos tudo.

 O que eu diria para finalizar  é que já vimos muita coisa de várias maneiras, mas estamos ainda muito longe de ter visto tudo. Há actualmente alguns mistérios, que são indícios de coisas que não estamos a ver, que são manifestações do invisível. Os  físicos chamam a esses fenómenos “matéria escura” e “energia escura”, as duas coisas escuras mas coisas diferentes. É algo que não estamos a ver, mas que gostaríamos de ver e, acima de tudo, de perceber.

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