segunda-feira, 6 de maio de 2019

"Sem o saber estamos sempre a falar latim"

Notícia saída ontem no jornal Correio da Manhã, da autoria de Fernando Madail. O título, muito sugestivo, é Sem o saber estamos sempre a falar latim; a entrevistada é Isaltina Martins.
'Grosso modo’, as pessoas ouvem falar do ‘deficit’ do Orçamento de Estado (já nem sabem o que é um ‘superavit’) e do rendimento ‘per capita’ de cada país – mas, quase sempre, nada muda o ‘status quo’, ‘vide’ o que sucede em Portugal. As empresas pedem um ‘curriculum vitae’ a quem concorre a um emprego. Às vezes, é só um ‘pro forma’, mas, numa prova de acesso, pode-se ficar classificado ‘ex aequo’. Uma questão de ‘lana caprina’, com um ‘lapsus linguae’, pode transformar-se num ‘quid pro quo’. Por falta de ‘quorum’, uma assembleia é adiada ‘sine die’. 
Quase sem nos apercebermos, estamos frequentemente a falar em latim – que, no nosso tempo, é apenas a língua oficial da Igreja Católica e, obviamente, do Estado do Vaticano. 
Nos tribunais – alguns com a máxima ‘dura lex, sed lex’ inscrita numa parede –, os advogados pedem o ‘habeas corpus’ para os clientes que estão presos, pois quase nenhum assume o ‘mea culpa’. Os médicos só passam a certidão de óbito após confirmarem o ‘rigor mortis’. Os biólogos vão observar ‘in loco’ o ‘habitat’ do lince ibérico, um animal ‘sui generis’. 
Muita gente escreve "RIP" (‘requiescat in pace’) para dar os sentimentos ou acrescenta um ‘Post-Scrimptum’ à carta, ‘idem’ um "N.B." (‘nota-bene’). Alguns automobilistas compram um Audi ("ouve"), enquanto outros optam por um Volvo ("eu guio"). O emblema do Benfica, como sabem adeptos e adversários, tem inscrito o lema ‘E pluribus unum’ ("De muitos, um"). O melhor é mesmo ir passar um fim de semana a um SPA (‘salus per aquam’). 
Numa mesma universidade de prestígio (a sua ‘alma mater’), os alunos de Filosofia estudam Descartes e aprendem o ‘cogito, ergo sum’, os de Literatura o que é o ‘alter ego’ de um autor, os de História quando, ‘in illo tempore’, César disse ‘alea jacta est’ ou ‘veni, vidi, vici’, os de Direito a questionarem ‘quid iuris’, os de História de Arte a conhecer as pinturas de Cristo na posição ‘Ecce Homo’ ou naturezas mortas que são ‘vanitas’, os de Psiquiatria a entenderem o porquê do ‘in vino veritas’, os de Teatro como é o efeito cénico de ‘Deus ex-machina’, os de Música a apreciarem as diferentes versões do ‘Te Deum’, os de cinema a conhecerem o ‘Persona’, de Bergman, e a saberem que a expressão ‘carpe diem’ ("aproveita o dia") ficou famosa devido ao filme ‘O Clube dos Poetas Mortos’ (Peter Weier). 
Um brilhante académico é doutorado ‘honoris causa’, um embaixador considerado ‘persona non grata’, um político argumenta com a ‘vox populi’, um sacerdote proclama ‘deo gratias’, um professor pode ter o hábito de exigir que os alunos escrevam nos exames ‘ipsis verbis’ o que vem no livro. A denominação científica da vulgar flor malmequer-dos-campos é ‘calendula arvensis’ e a do cão doméstico escreve-se ‘canis lupus familiaris’. 
‘A priori’, nos tempos que correm, a questão que se coloca é que vantagens há em aprender esta língua morta? Isaltina F. Martins – coordenadora do atual programa desta disciplina para o Ensino Secundário e que foi presidente da Associação de Professores de Latim e Grego (APLG – com sede na Escola Secundária Infanta D. Maria, em Coimbra) de 1998 até ao passado mês de fevereiro – sustenta que, para lá de "se conhecerem as raízes do nosso idioma", estudar latim desenvolve "o raciocínio, o espírito crítico e até a criatividade". Por causa da "fama de ser muito difícil" – "a Matemática das Letras" (‘sic’ – ‘sic erat scriptum’, literalmente "assim estava escrito", mas que tem o sentido de "tal e qual") –, a maioria escolhe outras cadeiras de opção, como Geografia ou Matemática Aplicada às Ciências Sociais, e já só 13 escolas secundárias ensinam o clássico idioma. 
No último ano letivo, "apenas 66 alunos fizeram o exame de Latim no [11.º] Ano" – Isaltina F. Martins ‘dixit’. Apesar da fraca afluência de estudantes, desde que deixou de ser disciplina obrigatória, um ‘item’ importante para se perceber a curiosidade existente em relação à forma como comunicavam Virgílio, Cícero e Nero é o facto da recente ‘Nova Gramática do Latim’, de Frederico Lourenço, ter chegado ao 1.º lugar no top de vendas da Livraria Bertrand. 
E se, na linguagem corrente, se ouvem constantemente expressões como ‘lato sensu’, a condição ‘sine qua non’ para se conseguir manter uma conversa contemporânea numa língua morta é a permanente criação de neologismos no latim moderno. O que é feito pela Fundação Latinitas, sediada no Vaticano, que mantém atualizado o ‘Lexicon Recentis Latinitatis’ (um dicionário com mais de 15 mil palavras). 
Desta forma, futebol é ‘follius pedunque ludus’, karaté é ‘oppugnátio inermis Iapónica’, engenheiro é ‘doctor machinárius’, enfermeira é ‘puerorum custos’, jazz é ‘iazensis música’, punk é ‘punkianae catervae ássecla’, snack-bar é ‘thermopólium potórium et gustatórium’, discoteca é ‘taberna discothecária’, gin é ‘pótio iunípera’, whisky é ‘víschium Scóticum’, desodorizante é ‘foetoris delumentum’, depressão é ‘ánimi imminútio’, IVA é ‘fiscale prétii additamentum’, táxi é ‘autocinetum meritórium’, hora de ponta é ‘tempus máximae frequéntiae’ e Internet é ‘interretia’ – ‘etc’ (‘et cetera’ – "e outras coisas mais"). 
E o tabaco, que chegou à Europa cerca de mil anos após a queda de Roma (no ano de 476), não podia ter originado, entre os falantes originais de latim, a expressão ‘non nicotianun fumun sugere" (isto é, "proibido fumar").

1 comentário:

Anónimo disse...

A própria Língua Portuguesa não poderá ser entendida como um Latim estragado pelo tempo?!

FÁBULA BEM DISPOSTA

Se uma vez um rei bateu na mãe, pra ficar com um terreno chamado, depois, Portugal, que mal tem que um russo teimoso tenha queimado o te...