quinta-feira, 30 de maio de 2019

"Celebrar a vida de professor"

Pelo sentido e beleza que encontrámos num texto de Frederico Lourenço, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, publicado na sua página do facebook, no dia 29 de Maio de 2019. Com a devida autorização do autor, reproduzimo-lo abaixo[Isaltina Martins e Maria Helena Damião]



Hoje tive um fim de tarde abençoado. Graças à iniciativa do meu colega de Estudos Clássicos, António Rebelo, e do capelão da Universidade, Pe. Paulo Simões, foi hoje celebrada uma missa, na lindíssima Capela de São Miguel da nossa Universidade, por alma dos muitos professores já falecidos desta instituição. Tratando-se da Universidade de Coimbra, com os seus mais de 700 anos de história, estamos a falar aqui de um universo de professores excepcionalmente numeroso. Não foi mencionado nenhum nome em concreto: a iniciativa teve carácter abrangente e universalista. 

A tarde foi de calor ardente, mas dentro da Capela estava fresco. A leitura antes do Evangelho foi a magnífica passagem dos Actos dos Apóstolos (Capítulo 17), em que São Paulo se dirige aos cidadãos de Atenas; depois, no lugar de uma homilia propriamente dita, o Pe. Paulo Simões leu-nos a maravilhosa passagem de Santo Agostinho onde figuram as famosas palavras «tolle, lege». 

Eu senti-me imensamente em casa: não só porque conheço muito bem todos os textos lidos nas suas línguas originais (grego e latim), como pude mais uma vez pensar na extraordinária utilidade da minha profissão: ensinar grego e latim na Universidade de Coimbra; dar acesso, às novas gerações, a estes textos milagrosos na língua em que foram escritos. E foi tão bom sentir na leitura de Santo Agostinho, na voz do Pe. Paulo, a confirmação de que eu escolhera o texto ideal das «Confissões» para ser explicado, em todos os seus pormenores gramaticais, na Antologia final da «Nova Gramática do Latim».

A missa permitiu momentos de silêncio - que me puseram a pensar nas muitas gerações de professores que ali homenageámos, que ensinaram em Coimbra desde o século XIV. Pensei nos desafios que lhes eram colocados em séculos passados. E pensei nos desafios que nos são colocados hoje.

Nenhum professor do tempo de D. João III teria, é claro, de se preocupar com a interferência dos telemóveis na sala de aula. E dei por mim a pensar que eu próprio sou uma espécie de figura jurássica: porque ainda me lembro bem da experiência de ser professor antes da era dos telemóveis. Pois ainda sou do tempo em que não havia telemóveis. 

Mas depois eles apareceram. Inofensivos, aparentemente, ao princípio; somente irritantes, porque tocavam no meio da aula. Mas isso foi há 20 anos. O problema hoje é muito diferente. E é gravíssimo.

Hoje temos de ensinar alunas e alunos cujos cérebros estão moldados e - a meu ver, diminuídos - pelo telemóvel na sua nova versão de smartphone. Hoje temos de ensinar alunos que têm na mão um objecto que os habituou a não reter, fixar ou aprender informação. 

Para quê fixar que a Revolução Francesa ocorreu no século XVIII, se se pode sempre, num ápice, ver na Wikipédia? Para quê aprender a sério uma língua, se o Google translator no smartphone resolve (supostamente...) qualquer dificuldade?

Hoje em dia temos a experiência contrária à que foi a dos mestres passados da Universidade de Coimbra, cuja docência se baseava na capacidade de os estudantes decorarem e memorizarem informação. Hoje ensinamos cérebros impermeáveis: quase tudo o que dizemos em sala de aula é «water off the duck's back», como se diz em inglês. Entra a cem e sai a mil: pois os cérebros moldados pelo smartphone não conseguem, simplesmente, reter informação. 

No que toca à docência e aprendizagem de línguas (mormente as exigentes línguas clássicas), esta situação afigura-se-me catastrófica. A impermeabilização do cérebro humano ocasionada pelo smartphone torna a nossa tarefa de professores cada vez mais difícil.

Mas o drama não é dos professores, que «ainda» sabem alguma coisa; o drama é das novas gerações, que, no dia em que ficarem sem wi-fi, se darão conta de que não sabem nada: transportam sobre os ombros uma cabeça vazia de conhecimento, porque conhecimento, para os jovens de hoje, não é para estar na cabeça, é para estar na net. Por isso estou sempre a dizer na aula: «prefiram o caderno de grego ao telemóvel; estudem todos os dias, nem que seja só 30 minutos; reaprendam a estudar, reaprendam a aprender». 

Embora por vezes me sinta pessimista em relação ao futuro destes cérebros impermeabilizados à aprendizagem, continuo convencido de que a nossa vocação de professoras e professores é a mais útil de todas as profissões. 

E sentado, hoje, na Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra, não pude deixar de recordar o letreiro que se vê na Biblioteca Bodleiana da Universidade de Oxford: εὗρον αὐτὸν καθεζόμενον ἐν μέϲωι τῶν διδαϲκάλων, «encontraram-no sentado no meio dos professores» (Lucas 2:46). 

É bom lembrar que ao menos Jesus gostou de se sentar no meio de nós, professores.

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