quinta-feira, 25 de outubro de 2018

"Assim como ninguém havia previsto a dissolução dos mosteiros em 1535, também ninguém previu a dissolução das universidades em 2035"

Chegou à minha caixa de correio a informação de que acaba de sair mais um número do Boletim de Estudos Clássicos. O acesso é aberto e a chancela é da Imprensa da Universidade de Coimbra.

No sumário deste 63.º volume interessou-me particularmente o primeiro artigo - A dissolução das Universidades - assinado por Ronald G. Musto, professor universitário americano. Tal artigo constitui uma parte do livro que tem em preparação - The Dissolution of the Universities: Challenges to the Survival of American Higher Education - para sair em 2019, e onde compara a dissolução dos mosteiros em 1535 à dissolução em curso das universidades.

Destacando em título a primeira parte do artigo, pela riqueza e clarividência das palavras que o compõem, não posso deixar de transcrever uma parte substancial do texto:
"Hoje, lentamente no início e em casos isolados, mas cada vez mais nos níveis local, estadual e nacional, as universidades estão sendo submetidas à mesma narrativa. 
Está sendo escrita pelos mesmos políticos ambiciosos, sem escrúpulos ou escudados pela legalidade, auxiliados e encorajados pelos mesmos facilitadores gananciosos. «As universidades são instituições inúteis que estão muito aquém de cumprir seu papel social, que é educar nossos filhos para empregos úteis». «As universidades são ralos para o estado: elas usam recursos demais para enriquecer alguns professores e administradores irrelevantes». «As universidades promovem os padrões sexuais, de discursos políticos e raciais, e comportamentais da sociedade, corrompendo a juventude e enganando pais e doadores». «As universidades estão fora de moda, substituídas por entidades com fins lucrativos, acreditação on line e programas de treinamento de empresas»
A salvação recente de Sweet Briar é uma heroica história de resistência, mas a sua quase extinção está se tornando parte de uma narrativa com poucas surpresas para a maioria dos acadêmicos. O ataque de Scott Walker à estabilidade, o de Marco Rubio ao curriculum, finanças e diplomas, e os ataques da Virginia, Carolina do Norte e Texas à administração, discurso e pesquisa são apenas as mais recentes jogadas em um movimento crescente em todo o país, que visa desestabilizar e deslegitimar a universidade no modo de vida americano. 
O crescimento da desigualdade na contratação, na estabilidade e nas promoções, o enriquecimento de um pequeno grupo de administradores e professores titulares ao custo da grande maioria dos professores contingentes que nunca terão cargos estáveis e pesquisadores-júnior, captam a atenção, simpatia e apoio dos trabalhadores da cultura em toda a sociedade. A divisão corporativa interna, monetarização e regulamentação obrigatória marginalizam as faculdades de artes e humanidades de modo crescente. Cursos, programas, currículos e departamentos encolhem ou desaparecem para dar lugar a uma instrução mais voltada ao mercado. 
Acadêmicos mais jovens - que acreditavam que não tinham para onde ir fora dos muros da universidade - partem em massa, ou com doutoramentos recém concluídos ou sem cumprir os últimos requisitos. Eles enriquecem corporações, fundações e o governo com seu conhecimento e habilidades. 
Poucos na sociedade em geral notam ou se preocupam com a situação das universidades ou se perguntam sobre a condição da educação superior para além de seus custos e efeitos sobre as perspectivas de trabalho de seus filhos. 
Isto é, até que aquelas poucas tentativas de fechamento e privatizações, aqueles casos isolados de retirar das instituições cargos estáveis e outras seguranças, aquelas restrições de discurso e eliminação de programas e faculdades comecem a se fundir consistentemente com as agendas sociais e políticas, primeiro de alguns poucos candidatos inescrupulosos a cargos públicos, depois de um grande partido político e depois da própria política nacional. 
Quando isso acontecer, a universidade terá existido por cerca de um milênio - assim como os mosteiros antes da sua dissolução - e o que antes tinha sido visto como um tesouro nacional indispensável, encarnando nossa vida intelectual e cultural, vai ser deixado desaparecer, quase do dia para noite, sem muitos protestos organizados. 
Assim como algumas grandes abadias conseguiram sobreviver, também algumas poucas grandes universidades permaneceriam. Tudo o que ainda fosse útil do profundo conhecimento das universidades centenárias seria dissociado dos campi e transmitido amplamente através de TV, CDs, podcasts, cursos online abertos e do restante da internet. 
A maior parte do ensino passaria para escolas secundárias superiores, onde um novo diploma profissionalizante levaria cinco anos, financiado por estados que desmantelam seus sistemas universitários. 
A pesquisa em humanidades, agora irrelevante para a sociedade, seria deixada para institutos avançados ou para aqueles com meios próprios. A pesquisa mais importante - em ciência e tecnologia - seria transferida por atacado para grandes empresas ou para o governo. Grupos corporativos, barões dos imóveis, oligarcas bilionários e prefeituras aproveitariam campi valiosos, porém vazios, transformando-os em campos de golfe, parques temáticos, resorts privados, propriedades, condomínios de luxo ou ruínas românticas que encantariam poetas e festas de casamento no século vinte e dois.

2 comentários:

Anónimo disse...

Com os portugueses, que gostam de trabalhar em contra-ciclo, a dissolução começou pelos níveis inferiores. antes do 25 de Abril de 1974 havia pouquíssimos jardins de infância e a qualidade do ensino a todos os níveis era péssima, mesmo entrando em linha de conta com a reforma Veiga Simão. Atualmente, ainda há poucos dias, o Chefe de Estado e o Primeiro-Ministro reforçaram a ideia de que estamos a caminho de conseguir a cobertura total do país com uma rede de jardins de infância que será a nossa melhor garantia de um desenvolvimento fulgurante de Portugal, quer no nível educativo, quer nos restantes níveis culturais e socioeconómicos!
A infantilização a ritmo galopante do nosso ensino secundário, acelerada com medidas geniais como são as aprendizagens essenciais e a flexibilidade curricular da escola do aprender a aprender fazem prever uma dissolução rápida das escolas secundárias em agrupamentos de megacreches. Portanto, no nosso caso, as universidades ficam para o fim das cadeia de dissoluções, onde vai entrando cada vez mais água. Noutros sítios, poderão ter dissolvido os mosteiros em 1535, mas nós por cá, ainda em 1717, começámos a construir o mamarracho de Mafra que ainda lá está para durar e durar!...

Mário R. Gonçalves disse...

De novo, excelente, Helena Damião, parabéns. Apesar de tudo tenho aquela confiança mínima, muito mínima, na humanidade e no progresso, para acreditar que a Unversidade só acabaria se surgisse coisa melhor - que nem sequer ainda podemos imaginar. Claro que não seria a Net. Mas se a realidade superar a ficção...

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