Minha crónica no Público de hoje:
Fiquei
com uma admiração redobrada pela Polícia Judiciária por se terem inspirado num
tema da Antiguidade Clássica para baptizarem a mais recente das suas operações.
“Húbris” significava para os antigos gregos a
ultrapassagem dos limites pelos seres humanos, movidos por auto-confiança
desmedida, alimentada pelo orgulho, a ambição e a arrogância. Não sei se foram esses
sentimentos que levaram alguns militares da Polícia Judiciária Militar (PJM),
juntamente com outros da GNR, a unirem-se ao putativo assaltante de armas do
paiol de Tancos para encenarem a comédia da restituição das
armas, após a tragédia que foi a sua subtracção. Na
Grécia antiga havia o castigo
dos deuses, a “némesis”, aqui haverá o castigo da
justiça. Tal como na húbris antiga o que se passou à volta do material de guerra excede todos
os limites.
O caso é
difícil de acreditar, mas fácil
de resumir. No dia 28 de Junho de 2017 soube-se do desaparecimento de uma quantidade
considerável de armas e munições. A 18 de Outubro seguinte apareceram muito
perto do sítio de Tancos. Na semana passada a Polícia Judiciária (PJ)
deslindava o aparecimento. Oito militares da PJM, incluindo o director, teriam
feito um “acordo de cavalheiros”
com o assaltante, ex-militar e negociante de armas, que consistia em esquecer o
roubo contra a entrega do material. Um sargento da PJM terá feito, a mando de
um superior, uma chamada telefónica anónima do Montijo, informando que as
armas estavam num descampado da Chamusca. De facto, estavam, porque alguns seus
camaradas de armas as tinham ido buscar a casa de uma avó do assaltante. O rol do material
recuperado não coincidia com a do material desaparecido, que tinha sido
publicado num jornal espanhol, mas o primeiro-ministro aplaudiu logo “o trabalho desenvolvido pela PJM e
pela GNR”. Não sei o que o primeiro-ministro sabia nessa altura, mas hoje
sabemos que se tratou de uma farsa: foi a GNR de Loulé a acorrer à Chamusca e o material foi imediatamente removido, sem que a PJ,
que andava a investigar o caso, fosse chamada para peritagem. O juiz a quem os
suspeitos foram agora presentes ordenou a prisão preventiva do director da PJM,
que terá supervisionado a marosca, e do civil. A confirmar-se todo este enredo,
trata-se de um dos casos mais graves passados com as Forças Armadas nacionais.
Já havia um escândalo de
corrupção maciça nas messes da Força Aérea (um caso em que entrou primeiro a PJM e depois a PJ, duas
polícias que, apesar do nome parecido, andam de candeias às avessas), havia o drama das duas mortes
ocorridas num curso de comandos (um caso investigado pela PJM, com protagonismo
de um major agora detido), mas esta nova vergonha excede qualquer outra. Os
polícias estavam feitos com o ladrão!
Restam
muitas perguntas. Quem roubou, de facto, o material de guerra? Quando e como? E
qual é a verdadeira lista de
material roubado? Houve avanços na investigação do aparecimento sem ter havido
avanços conhecidos na investigação do desaparecimento. Não acredito que o
assaltante tenha sido apenas o civil que está preso. Terá tido ajudantes e
cúmplices, pelo que seria crucial saber se, tal como teve ajudas para repor as
armas, também terá tido
ajudas para as roubar. Um escândalo ainda maior seria se se descobrisse que
essas ajudas vieram de dentro do quartel, como parece possível. Há também quem
diga – o coronel Vasco Lourenço, por exemplo (PÚBLICO, 25/9/2018) – que não houve roubo
nenhum e que apenas houve consumo não contabilizado ou desleixo na organização
dos inventários. Haveria quem ficasse com umas granadas depois dos exercícios?
Nem sei o que é pior, se esse
desleixo contínuo, ou um desleixo ocasional, que terá permitido a entrada de
estranhos.
Que
dizem os chefes? O chefe do Estado-Maior do Exército não dá os esclarecimentos que se impõem (se é verdade que teve a ver, de algum modo,
com a falta de acesso atempado da PJ ao material é grave). O ministro da Defesa, que manda
na PJM, parece ter perdido o respeito das tropas (um tenente-coronel chamou-lhe
“besta” no jornal I de 9/9/2018) e está a
perder o respeito dos cidadãos. Finalmente, não se percebe por que é que o primeiro-ministro, que
falou logo que o material apareceu, não diz nada agora que a ética está em parte incerta.
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