quarta-feira, 3 de outubro de 2018

HÚBRIS E NÉMESIS


Minha crónica no Público de hoje:


Fiquei com uma admiração redobrada pela Polícia Judiciária por se terem inspirado num tema da Antiguidade Clássica para baptizarem a mais recente das suas operações. bris” significava para os antigos gregos a ultrapassagem dos limites pelos seres humanos, movidos por auto-confiança desmedida, alimentada pelo orgulho, a ambição e a arrogância. Não sei se foram esses sentimentos que levaram alguns militares da Polícia Judiciária Militar (PJM), juntamente com outros da GNR, a unirem-se ao putativo assaltante de armas do paiol de Tancos para encenarem a comédia da restituição das armas, após a tragédia que foi a sua subtracção. Na Grécia antiga havia o castigo dos deuses, a némesis”, aqui haverá o castigo da justiça. Tal como na húbris antiga o que se passou à volta do material de guerra excede todos os limites. 

O caso é difícil de acreditar, mas fácil de resumir. No dia 28 de Junho de 2017 soube-se do desaparecimento de uma quantidade considerável de armas e munições. A 18 de Outubro seguinte apareceram muito perto do sítio de Tancos. Na semana passada a Polícia Judiciária (PJ) deslindava o aparecimento. Oito militares da PJM, incluindo o director, teriam feito um acordo de cavalheiros” com o assaltante, ex-militar e negociante de armas, que consistia em esquecer o roubo contra a entrega do material. Um sargento da PJM terá feito, a mando de um superior, uma chamada telefónica anónima do Montijo, informando que as armas estavam num descampado da Chamusca. De facto, estavam, porque alguns seus camaradas de armas as tinham ido buscar a casa de uma avó do assaltante. O rol do material recuperado não coincidia com a do material desaparecido, que tinha sido publicado num jornal espanhol, mas o primeiro-ministro aplaudiu logo o trabalho desenvolvido pela PJM e pela GNR”. Não sei o que o primeiro-ministro sabia nessa altura, mas hoje sabemos que se tratou de uma farsa: foi a GNR de Loulé a acorrer à Chamusca e o material foi imediatamente removido, sem que a PJ, que andava a investigar o caso, fosse chamada para peritagem. O juiz a quem os suspeitos foram agora presentes ordenou a prisão preventiva do director da PJM, que terá supervisionado a marosca, e do civil. A confirmar-se todo este enredo, trata-se de um dos casos mais graves passados com as Forças Armadas nacionais. Já havia um escândalo de corrupção maciça nas messes da Força Aérea (um caso em que entrou primeiro a PJM e depois a PJ, duas polícias que, apesar do nome parecido, andam de candeias às avessas), havia o drama das duas mortes ocorridas num curso de comandos (um caso investigado pela PJM, com protagonismo de um major agora detido), mas esta nova vergonha excede qualquer outra. Os polícias estavam feitos com o ladrão!

Restam muitas perguntas. Quem roubou, de facto, o material de guerra? Quando e como? E qual é a verdadeira lista de material roubado? Houve avanços na investigação do aparecimento sem ter havido avanços conhecidos na investigação do desaparecimento. Não acredito que o assaltante tenha sido apenas o civil que está preso. Terá tido ajudantes e cúmplices, pelo que seria crucial saber se, tal como teve ajudas para repor as armas, também terá tido ajudas para as roubar. Um escândalo ainda maior seria se se descobrisse que essas ajudas vieram de dentro do quartel, como parece possível. Há também quem diga – o coronel Vasco Lourenço, por exemplo (PÚBLICO, 25/9/2018) – que não houve roubo nenhum e que apenas houve consumo não contabilizado ou desleixo na organização dos inventários. Haveria quem ficasse com umas granadas depois dos exercícios? Nem sei o que é pior, se esse desleixo contínuo, ou um desleixo ocasional, que terá permitido a entrada de estranhos.

Que dizem os chefes? O chefe do Estado-Maior do Exército não dá os esclarecimentos que se impõem (se é verdade que teve a ver, de algum modo, com a falta de acesso atempado da PJ ao material é grave). O ministro da Defesa, que manda na PJM, parece ter perdido o respeito das tropas (um tenente-coronel chamou-lhe besta” no jornal I de 9/9/2018) e está a perder o respeito dos cidadãos. Finalmente, não se percebe por que é que o primeiro-ministro, que falou logo que o material apareceu, não diz nada agora que a ética está em parte incerta.


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