“Na nossa pátria ainda abunda por todo o lado este tesouro
que os nossos antepassados nos legaram.
Apesar de todo o ridículo e troça de que tem sido alvo,
ele sobreviveu em segredo, inconsciente da sua beleza
e transportando a sua essência irreprimível.
Se este tesouro não for estudado em pormenor, não se poderá
compreender plenamente as origens autênticas e
remotas da nossa poesia, da nossa história e da nossa língua.”
Jacob Grimm, circular de 1815 (aqui).
"[O monstro da história A bela e o monstro] é perigoso
que os nossos antepassados nos legaram.
Apesar de todo o ridículo e troça de que tem sido alvo,
ele sobreviveu em segredo, inconsciente da sua beleza
e transportando a sua essência irreprimível.
Se este tesouro não for estudado em pormenor, não se poderá
compreender plenamente as origens autênticas e
remotas da nossa poesia, da nossa história e da nossa língua.”
Jacob Grimm, circular de 1815 (aqui).
"[O monstro da história A bela e o monstro] é perigoso
porque o monstro mostra estar sempre perto da violência,
reforçando a ideia de que se uma mulher esperar,
consegue mudar o seu parceiro"
Victoria Cann (aqui).
Para uma ideia esquisita triunfar basta surgir, que logo começa a circular. Nada de novo neste antigo fenómeno no presente em que vivemos, com excepção de que, por este meio que eu e o leitor estamos a usar, espalha-se em segundos, ou menos do que isso, pelo mundo fora. Sem os filtros do conhecimento ou da "simples" ponderação, a crítica fica fragilizada, anulada, muitas vezes, ou, a existir, torna-se recatada; é, quanto muito, usada em surdina.
Isto é tanto mais certo se a ideia esquisita for veiculada por especialistas e se "sentirmos" no discurso que a veicula uma obrigação em a aceitarmos. Efeitos estudados na Psicologia Social estão aqui em destaque: "submissão à autoridade" (do especialista), "politicamente correcto", "conformismo social" são alguns deles.
Passo ao objecto deste texto.
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Nesse clima, que se aproximava perigosamente de perseguição intelectual musculada, um americano, James Finn Garner, publicou o livro Contos de fadas politicamente correctos cujo sucesso conduziu a outro livro Mais contos de fadas politicamente correctos. A inteligência e o humor patentes em ambos deveriam fazer corar de vergonha os "críticos" a essas histórias.
Mas não fizeram, pois, como se sabe, a inteligência e o humor, que, de resto, andam de mãos dadas, não pode ser entendido por quem não tenha sido bafejado por eles. E a perseguição continuou.
Continuou e alojou-se em universidades, onde ganhou progressivo destaque. Ora, seria aí que isso não poderia, em circunstância alguma, acontecer, dada a vocação de estudo aprofundado e de análise racional deste tipo de escola.
Surgiram, em crescendo, estudos, que passaram para a comunicação social, que, por sua vez, passaram para as cabeças individuais, constituindo-se no pensar aceitável. Em textos que publiquei neste blogue - nomeadamente no A Bela não deu consentimento, estava adormecida! - dei conta de reacções de pessoas comuns em que esta transmissão é bem visível. Ver, também, a título de exemplo, notícias em português, aqui, aqui, aqui, aqui.
Foi agora notícia o estudo de duas investigadoras (Victoria Cann, da Universidade de East Anglia e Laura Coffey-Glover, da Universidade Nottingham Trent) sobre as ditas histórias, mais precisamente sobre a sua versão fílmica, da Disney. Deixo, abaixo, algumas notas com base no que é dito na comunicação social (artigos estrangeiros: aqui e aqui; artigo em português: aqui), registando o título destacado de uma das notícias: "Não há finais felizes", dando o texto a ideia de que o conteúdo das histórias, o seu desenrolar e o remate se desviam do que "deve ser" a felicidade, à luz de parâmetros redefinidos na actualidade.
A Branca de Neve, promove o ciúme e a rivalidade feminina, cria uma relação errada entre o amor e a beleza (o homem alto, distinto do homem anão). A Bela Adormecida, promove a anorexia, a rivalidade entre mulheres. Ambas as histórias traduzem a dependência da mulher em relação ao homem.
A Pequena Sereia, abdica da sua condição, sua vida, da sua família e sobretudo do seu corpo e da sua voz em favor da paixão por um desses homens belos, que não pertence ao seu mundo.
A Bela e o Monstro é uma das histórias mais perturbadoras pois promove a violência doméstica: aquele príncipe transformado num animal perigoso faz a princesa prisioneira. Além disso, o feio é associada à maldade e o belo bondade, nada de mais enganoso para que as crianças se possam defender de ameças.
Aladdin é uma história racista: as personagens boas têm pele clara e as más pele escura. Acresce que a princesa, para estar segura, é obrigada a casar com um rico e poderoso e quando se apaixona pelo pobre Aladino cai numa possessão que a cega. Há uma dupla e inaceitável dependência da mulher em relação aos homens.
A Cinderela veicula a ideia de que a beleza é requisito para se encontrar um marido rico e que o modo como nos apresentamos, nomeadamente o modo como nos vestimos, se sobrepõe ao nosso verdadeiro "eu". Também veicula a ideia de que a bondade é uma característica das mães e a perversidade uma característica das madrastas, o que num mundo com famílias tão diversas só pode ser disfuncional.E continuam, mas prefiro não avançar nas suas considerações e recomendar algumas obras, anexando as sinopses que as acompanham e que subscrevo inteiramente.
Uma dessas obras, que li no tempo em que estudava Psicologia, é Psicanálise dos Contos de Fadas. Não sendo nada próxima da Psicanálise, tenho na maior consideração por alguns dos seus teóricos. Bruno Bettelheim, autor do livro abaixo mencionado é um deles.
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Da lenda de Sinbad aos Três Porquinhos, passando pela Bela Adormecida e pela Branca de Neve, estuda uma panóplia de contos de fadas, desvendando os seus significados mais profundos, libertados do simbolismo que camufla aprendizagens essenciais. Ao fazê-lo, torna-se clara a importância do papel que as histórias tradicionais desempenham no desenvolvimento infantil, com ecos até à nossa vida adulta.
Os contos de fadas podem ser fantásticos, cruéis e profundamente significativos, dotando-nos de um mapa para superar conflitos e dificuldades e encarar a maior tarefa de todas: dar sentido às nossas vidas."
“Os contos de fadas não inspiram na criança a sua primeira ideia de papão. Aquilo que os contos de fadas dão às crianças é a primeira ideia clara da possibilidade de vencer o papão. O bebé conhece bem o dragão desde que tem imaginação. O que o coto de fadas lhe dá é um S. Jorge para derrotar o dragão" G. K. Chesterton.
Outra dessas obras é Contos Maravilhosos Europeus, de Francisco Vaz da Silva, antropólogo e professor no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) onde lecciona uma disciplina designada por Contos Populares Europeus. São sete volumes revelando investigação de três décadas e passagem por universidades estrangeiras.
"Coloca o universo dos contos tradicionais ao alcance do grande público, facultando conhecimentos especializados de um modo acessível a não especialistas. Cada um dos volumes da colecção apresenta as variantes literárias mais relevantes de um certo conto e as variantes orais ilustrativas do mesmo. Todas as variantes são apresentadas em texto integral, com comentários sucintos.
Os contos apresentados resultam de uma selecção a partir de fontes diferentes em várias línguas e foram traduzidos para o português contemporâneo a partir dos textos originais."
"Os contos tradicionais ditos maravilhosos, ou de fadas, descrevem terríveis tribulações, prodígios de abnegação, sofrimentos insondáveis; mas simultaneamente dão a entender que o sofrimento gera a compreensão, o sacrifício propicia a renovação, a abnegação prepara proventos futuros. Incitam auditores e leitores a não baixar os braços, convidam a porfiar. Proclamam que a crise é necessária ao crescimento, que a adversidade fornece alento e inspiração. Os contos tradicionais maravilhosos são, ontem como hoje, um importante recurso espiritual."
A terceira dessas obras, em três volumes intitula-se Contos da infância e do lar e é coordenada pelo mesmo Francisco Vaz da Silva.
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Para o estudioso e para o leitor comum, as descrições e diálogos, bem como os provérbios vivos e as poéticas sonoridades, passam agora a importar tanto quanto os motivos e enredos em que se movimentam essas nossas conhecidas, ancestrais e mágicas personagens
Para além de modelo para recolhas de contos populares posteriores um pouco por toda a Europa, as exaustivas e absorventes pesquisas dos irmãos Grimm foram absolutamente essenciais também enquanto manifesto defensor da legitimidade da literatura oral e tradicional, consubstanciando a etnografia, e o conto em particular, como projeto válido e precioso.
O remate deste texto só pode ser um conselho: independentemente da idade ou de outra coisa qualquer, quem puder, quando puder, leia contos de fadas e deixe-se levar pela sua magia para onde quer que ela o leve. E dê-os a ler...
Este conselho é, ao que se diz, de Albert Einstein a uma mãe que lhe perguntou como poderia tornar o filho, ainda criança, tão inteligente como ele: "Dê-lhe contos de fadas".
4 comentários:
Magnífico, admirável, imperdível artigo! Gosto tanto que gostaria de ter sido eu a escrevê-lo. Vou partilhar.
Eu gosto d'O Patinho Feio.
Porque ele, afinal, não era feio.
Em certos meios meios, sou visto como uma ovelha negra...
À luz do sol, a minha pele é láctea!
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