sexta-feira, 26 de outubro de 2018

AS MULHERES E O NOBEL




Meu artigo no último número de As Artes entre as Letras (nas fotos Donna Strickland e Frances Arnold):

O ano de 2018 fica marcado pela atribuição de Prémios Nobel de duas áreas das ciências (Física e Química) a duas mulheres: a canadiana Donna Strickland, de 59 anos, foi galardoada com o Nobel da Física por uma técnica inovadora de amplificação da luz laser, ao passo que a americana Frances Arnold, de 62 anos, foi galardoada com o Nobel da Química pelo seu uso da evolução dirigida no fabrico de enzimas. Como existem desde há muitos anos numerosas mulheres a trabalhar tanto em Física como em Química, poder-se-ia pensar que a atribuição do mais prestigiado prémio científico do mundo a duas mulheres seria algo vulgar. De facto, tratou-se de algo extremamente raro. Foi apenas a terceira vez que uma mulher recebeu o prémio Nobel da Física. As outras duas tinham ocorrido em 1903 e em 1963, respectivamente com a polaco-francesa Marie Curie, nascida Sklodowska e com a alemã Maria Goeppert-Mayer, as duas na área da física nuclear, a primeira pelo seus estudos de radioactividade e a segunda pela descoberta da estrutura em camadas dos núcleos atómicos. Por seu lado, na Química foi apenas a quinta vez que uma mulher recebeu o referido prémio. A mesma Marie Curie recebeu o Nobel da Química em 1911, pela sua descoberta dos elementos rádio e polónio. A sua filha, francesa, Irène Joliot-Curie recebeu-o em 1935, pela síntese de novos elementos radioactivos. A britânica Dorothy Hodgkin recebeu-o em 1964 pelos seus estudos de biomoléculas com raios X. E, finalmente, a israelita Ada Yonath recebeu-o em 2009, pelas suas investigações relativas aos ribossomas. Marie Curie, também chamada Madame Curie, foi até hoje a única pessoa a receber dois prémios Nobel em duas áreas científicas diferentes, a Física e a Química. E é verdadeiramente notável que a família Curie tenha cinco prémio Nobel, pois aos três da mãe e filha há que acrescentar os do marido e do genro. O físico americano John Bardeen ganhou dois prémios Nobel da Física, pela invenção do transístor e pela explicação da supercondutividade. O bioquímico britânico Frederick Sanger ganhou dois prémios Nobel da Química por ter determinado a estrutura da insulina e por ter desenvolvido um método de sequenciação do ADN. O químico americano Linus Pauling ganhou sozinho o Nobel da Química, pelo seu esclarecimento da ligação química, e também sozinho o Nobel da Paz, pelo seu pacifismo militante durante a guerra fria.

 As estatísticas são elucidativas quanto à raridade dos Nobel de mulheres. Na Física foram atribuídos prémios Nobel a 209 pessoas, dos quais só três são mulheres (1,4 por cento). Na Química foram premiadas 180 pessoas, das quais só cinco das quais mulheres (2,8 por cento). Embora o prémio Nobel da Economia não seja propriamente um Nobel, uma vez que ele não foi previsto no testamento do industrial Alfred Nobel, ele é gerido pela Academia Sueca e anunciado na mesma ocasião que os outros. Mas a falta de mulheres mantém-se nesta área: só uma única vez o Nobel da Economia foi dado a uma mulher: recebeu-o a economista americana Elinor Ostrom, em 2009. Como o Nobel da Economia já foi atribuído, desde que foi criado em 1969, a 81 indivíduos, a representação feminina no Nobel da Economia é de escassos 1,2 por cento, ainda menos que na Física e na Química. No total de todos os prémios Nobel contam-se 853 homens e 51 mulheres (52 se se incluir Madame Curie duas vezes), aos quais há que acrescentar 24 organizações. As mulheres formam, portanto, apenas 5,6 por cento de todos os laureados, se excluirmos as organizações.

Não pode deixar de se concluir que a atribuição este ano de Nobel a duas cientistas (houve este ano três mulheres laureadas, pois uma outra mulher ganhou o Nobel da Paz, a iraquiana Nadia Murad) significa a reparação, ou melhor o início da reparação, de uma enorme injustiça relativamente às mulheres. Já ocorreram casos gritantes de mulheres cientistas que mereciam o Nobel, mas não o tiveram. Na Física, por exemplo, são bem conhecidos os casos de Lise Meitner, a física nuclear austríaca que explicou teoricamente a cisão nuclear sem ter sido recompensada pela Academia de Estocolmo. O Nobel da Química de 1944 foi para o alemão Otto Hahn que descobriu a cisão no laboratório em 1939, esquecendo que a correcta interpretação dos resultados experimentais foi feita num artigo publicado na Nature nesse mesmo ano por Lise Meitner e pelo seu sobrinho Otto Frisch.

Também brada aos céus o caso da astrofísica britânica (natural da Irlanda do Norte) Jocelyn Bell Burnell, que foi a primeira cientista observar um pulsar ou estrela de neutrões, em 1967, quando tinha 24 anos. No entanto, ela viu-se excluída do Nobel da Física de 1974 que foi atribuído ao seu supervisor, o britânico Antony Hewish, e a um colega deste, o também britânico Martin Ryle (o artigo conjunto anunciando a descoberta tinha Hewish em primeiro e Bell em segundo).

É curioso assinalar que a física Donna Strickman, ao contrário do que se passou com Jocelyn Bell Burnell, tenha ganho o prémio com um trabalho efectuado quando era estudante de doutoramento do francês Gérard Mourou, co-recipiente do Nobel da Física deste ano, quando trabalhavam os dois na Universidade de Rochester, nos Estados Unidos. O artigo que levou ao Nobel – onde os dois propunham uma nova técnica de criação de pulsos laser – foi aliás o primeiro artigo da cientista. Depois de ter ocupado posições no Canadá e nos Estados Unidos, ela é hoje professora associada de Física e Astronomia na Universidade de Waterloo, em Ontario, Canadá, não sendo, portanto, ainda catedrática.

 Em contraste, a química Frances Arnold detém uma cátedra de Engenharia Química, Bioengenharia e Bioquímica (a “Linus Pauling Professorship” em homenagem a Pauling, que lá foi professor) no famoso Caltech, California Institute of Technology, em Pasadena, Califórnia, nos Estados Unidos. Formou-se na Universidade de Princeton, doutorou-se em Engenharia Química na Universidade de Berkeley, Califórnia, para depois transitar para o Caltech, onde chegou a “full professor” em 1996 e à cátedra actual em 2007.

Estou em crer que a atribuição destes Nobel este ano a duas mulheres antecede outros que se vão suceder. As mulheres são hoje maioritárias em muitos institutos e laboratórios (em particular em Portugal, que é um dos países do mundo com mais mulheres cientistas), pelo que o reconhecimento do mérito das que mais se distinguem é da mais elementar justiça.

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