O
poema “Marketing”, de 1969, é um exercício de ironia sobre o
mundo moderno e o consumismo, tendo como base mensagens
publicitárias da época em que foi escrito (e outros aspectos sociais
e políticos que não vou aqui comentar). O que gostaria de referir,
ainda que superficialmente, são os
muitos produtos referidos que, em alguns casos, têm uma história
química interessante e positiva para o bem-estar da humanidade e a
sustentabilidade do planeta. Embora a poesia seja para ser lida sem
interrupções, olhemos para algumas partes do poema:
Aqui a meu
lado o bom cidadão
escolheu Sagres
que é tudo
tudo cerveja
a pausa que
refresca
a longa pausa de
um longo cigarro King Size.
atenção ao marketing.
A
marca de cerveja Sagres surgiu em 1940 para a Exposição do
Mundo Português, lançada pela Sociedade Central de Cervejas e
Bebidas, fundada em 1934. A marca de cerveja Super Bock surgiu
em 1927, mas a sua distribuição fazia-se apenas no Norte até aos
anos 1970, além de que não se colava tanto ao regime como a Sagres.
A tecnologia da produção de cerveja industrial envolvem muitos
aspectos químicos.
Os
cigarros King Size foram muito populares. Fernando Namora,
como muitos médicos da altura, assim como as suas personagens, era fumador.
Embora já fossem conhecidos os malefícios do tabaco, os anúncios
eram livres e, em muitos casos, envolvendo a sugestão de benefícios.
Há várias outras referências a tabaco no poema, nomeadamente às
marcas Estoril, Valetes, Kaiakes
e Marialvas, já desaparecidas e ao uso de filtro nos
cigarros.
Eu
não gosto de cerveja
mas
tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo
da Sagres
para
não contrariar os fabricantes de cerveja.
atenção ao marketing.
Ninguém
contraria os fabricantes de cerveja
ninguém
contraria os fabricantes do Opel e da Super Silver
nem
os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem
as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem
as mensagens de natal dos estadistas
nem
os negociantes de armas da Suíça
nem
o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive.
Está
tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma
a
ver as procissões passar mesmo sem anjos mesmo sem anjos
que
são agora selvagens e voam numa Harley.
As
marcas de automóveis Opel
e Ford, com o modelo
Escort desta última a
aparecer
mais à frente, são aparentemente,
na altura, publicitados em
Portugal. Os carros desse
tempo eram muito menos
seguros e fiáveis,
além de mais
poluentes e muito mais
consumidores de combustível.
Usavam gasolina com chumbo e ainda não estavam em uso, ou não
tinham sido inventados, o airbag, os catalisadores,
os vidros duplos, a injecção
electrónica,,
entre muitas outras coisas que nos parecem normais
hoje em dia. As marcas de
motas Harley Davidson
e Super Silver
aparecem aqui num estatuto quase mítico. O Palmolive
e o Lux, que aparecerá
mais à frente, são sabonetes. Este objecto de higiene que
permitia um uso mais frequente do
que os sabões, como o Clarim
para lavar a roupa, referido
mais à frente, está
hoje quase completamente substituído pelos sabonetes líquidos que
envolvem surfactantes líquidos, na altura ainda não inventados,
foi uma revolução.
Lusoespuma
era uma marca de colchões de espuma de poliuretano, material ainda
hoje usado. Este material sintético substituiu com grande vantagem e
versatilidade materiais naturais, como a palha, nos colchões mais
económicos e populares. E com a evolução da tecnologia, surgiram
colchões de poliuretano e materiais mistos que rivalizam com os
melhores e mais caros colchões de materiais naturais mais nobres.
Além disso, não seria sustentável nem possível usar sumaúma ou
outros materiais naturais para tanto colchão do mundo moderno. No
entanto, a reciclagem e a reutilização de tecidos pode abrir novos
caminhos.
Deito-me
e obedeço aos fabricantes do Clarim
que
é uma alta onda ou uma onda alta
sem
esquecer as fitas do John Waine e a chama viva do Butagás
e
se calhar sentir fome terei toda a frescura serrana
numa
fatia de pão.
atenção ao marketing.
Vitonizo-me
desodorizo-me atravesso as ruas nas passagens dos peões
louvo
quem me dizem para louvar e desconfio dos negros americanos
e
dos blousons noirs que não usam Lux
e
não compram um frigorífico a prestações
e
com o meu escudo invisível
protejo-me
dos vírus subversivos
sou
um bom cidadão sou um bom cidadão
obedeço
ao marketing à General Motors e ao Pentágono.
Dantes
tinha problemas era o odor corporal
e
eu não o sabia até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete
[das estrelas
[das estrelas
e
as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e
o talco Cadum que ama demoradamente roucamente tepidamente
os
corpos que merecem ser amados...
O
Butagás é (era?) uma marca de botijas de gás butano, usado
para cozinhar e aquecimento. Por esta altura o gás já tinha
substituído praticamente todos os usos equivalentes do petróelo,
mas em boa parte do país em que se cozinhava a lenha e em Lisboa
existia o gás de cidade. Vitonizar-se, é aparentemente,
tomar um tónico de ferro e fósforo que era publicitado na altura –
hoje em dia publicitam-se os de mangustão e cálcio. O desodorizante
(mais à frente é referido o Rexina, agora Rexona) é um produto em
contínua evolução e desenvolvimento, desde os perfumes aos
materiais bactericidas e absorventes do suor. O frigorífico é um
objecto que só na segunda metade do século XX se tornou popular,
graças ao desenvolvimento e baixo custo dos fréons. O talco (Cadum)
é um material natural (rocha) que misturado com perfumes e outros
ingredientes era muito popular pelas suas propriedades paradoxalmente
simultaneamente hidrofóbicas e hidrofílicas.
Obedeço
ao marketing não contrario.
Ninguém
contraria os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula
que
é o da cor do sol
ninguém
pisa os riscos brancos do tráfego
nem
chama os bombeiros sem concorrer ao sorteio
concorro
concorro e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de
Scotchgard
ninguém
sai do emprego antes de assinar o ponto a horas fixas
e
gastar o dinheiro da semana sábado à tarde
no
Dardo que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música
no Coração.
Fazendo
Portugal mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac
não
contrario obedeço obedeço e meto os meninos na cama
quando
me dizem vamos dormir.
atenção ao marketing.
O
óleo Fula ainda hoje existe e é bem conhecido. A
obtenção de óleos a partir de plantas foi algo que se desenvolveu
muito no século XX e permitiu acabar com a caça da baleia entre
outras práticas pouco sustentáveis. Scotchgard era e é um
protector de tecidos, repelente de água, desenvolvido pela 3M.
Robbialac é uma marca de tintas que tinha já na altura, se
não estou em erro, tintas plásticas que polimerizam ao secar. Hoje
em dias a paleta de cores e de propriedades das tintas é muito mais
extensa que no tempo de Namora e estes materiais são ambientalmente
muito mais eficientes e responsáveis, nomeadamente há cada vez mais
tintas e vernizes à base de água e com materiais não tóxicos. Os
pigmentos brancos são agora de dióxido de titânio em vez do antigo
e tóxico carbonato de chumbo.
Sagres
é uma boa cerveja
e
eu acabarei por gostar da Sagres
como
gosto do Rexina.
Sagres
é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas
as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo
as do programa literário que é detergente
e
eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e
até já consigo adormecer com hipnóticos
depois
de tomar o Tofa descafeinado
e
no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para
me banhar na Torralta
cidadão
perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.
Também
hoje os refrigerantes e bebidas continuam a ter reforços de
vitaminas adicionadas, nomeadamente ácido ascórbico
(vitamina C). Já não se usam hipnóticos para dormir, os
quais eram muito perigosos. Desde o tempo que Namora refere
apareceram muitas outras moléculas e terapias que são mais eficazes
e seguras. Os processos de obtenção de café solúvel e
descafeinado evoluiram também muito. Já não são usados solventes
orgânicos, mas fluidos supercríticos, por exemplo. Os calções e
muitas roupas são actualmente de fibras sintéticas. Estas acabam
por ser mais sustentáveis em termos de produção e têm
propriedades de elasticidade e de contacto com a água muito mais
alargadas. Há hoje muitos mais protectores solares que o Ambre
Solair. E são mesmo protectores solares testados para a
protecção anti-UV física ou química.
Também
vou arear as caçarolas e os nervos e os miolos
com
um pó azul de que não me lembra o nome
não
me lembra mas a culpa já não é minha
porque
na mesma noite
massajado
com Aqua Velva
fiz
a barba com Gillette, e Schick e Nacet
e
fui não sei aonde sempre com a mesma lâmina
e
oito dias depois (eu era actor ou toureiro?)
a
lâmina ainda me escanhoou mais uma barba
antes
de eu descer no aeroporto
onde
me esperava um agente do marketing.
Os
produtores viram-me à descida do avião
primeiro
julgaram que era o filho da Sophia Loren
ou
o Onassis mas era eu
e
gostaram da minha barba bem feita.
(Da
barba bem feita
ou
do casaco Dralon que não se amarrotara
durante
a viagem da Polinésia para Lisboa?)
Confesso
que já não me lembra mas a culpa não é minha
pois
na mesma noite
fui
o homem de não sei quê que marca o rumo
por
vestir regras ou camisas ou calças que não enrugam
e
fartei-me de assistir a discursos e a inaugurações
e
fartei-me de comer chocolates Regina e pescada congelada
e
de lavar a roupa com Ajax e com o Rino
e
de me banhar com Omo ou seja uma onda de brancura
e
fiz-me mecânico de automóveis
só
para que o cavaleiro da armadura branca
me
tocasse com a sua lança mágica
e
me pusesse branco branco branco
três
vezes branco como as páginas do Reader’s
de
cérebro irrepreensivelmente lexivizado
pelos
locutores da televisão pela oratória dos políticos
e
passado a ferro com um ferro eléctrico automático
que
talvez fosse – ou não? – uma enceradora Philips.
Tudo
coisas admiráveis e desesperadamente necessárias
que
eu devo ao marketing
e
me são cozinhadas num abrir e fechar de olhos
nas
palavras de pressão
de
todo o bom cidadão.
E
no intervalo bebi café puro o do gostinho especial
Sical
Sical que é um luxo verdadeiro
Por
pouco dinheiro.
Vitonizado
esterilizado comprando e concorrendo
esqueci-me
de amar do amor das árvores e do rio
esqueci-me
de mim tão entretido estava a admirar a Lisnave
esqueci-me
do rio e dos barcos
e
da saudade de pedra do Fernando Pessoa
e
esqueci-me de sonhar que era marinheiro.
Aqua
Velva, é um after-shave criado em 1935, que tem na sua composição,
segundo o site Fragrantica.com, além do solvente, álcool e águas,
bergamota, lavanda, hortelã, petitgrain, limão verdadeiro ou
siciliano, sálvia esclaréia, jasmim, vetiver, sândalo, cedro,
ládano, âmbar, musgo e couro. Estas essências envolvem moléculas
odoríficas provenientes de plantas e muitas podem ser hoje obtidas
de forma sintética. O âmbar referido pode referir-se a um material
obtido dos cachalotes, mas hoje subtituído por um análogo
semi-sintético. Gilette, Schick e Nacet são
marcas de lâminas de barbear. Os desenvolvimentos técnicos e
metalúrgicos que permitiram as lâminas de segurança e mais tarde
descartáveis não podem reduzir-se numa frase. Dralon é um
tipo de tecido sintético acrílico que ainda hoje se fabrica e é
usado. A tecnologia e a química do chocolate, em particular dos
Chocolates Regina, tem muito que pode ser referido, nomeadamente as
reacções envolvidas na preparação do cacau e o controlo do ponto
de fusão e estrutura cristalina do produto final. Ajax, Rino
e Omo são detergentes em pó que foram desenvolvidos para
serem solúveis e não terem problemas com águas duras, envolvendo
fosfatos e surfactantes sólidos solúveis (paralelamente para as
máquinas de lavar, foram desenvolvidos detergentes envolvendo
persulfatos e silicatos, sendo um dos mais antigos o Persil).
Hoje em dia os fosfatos forma substituídos devido ao seu efeito
eutrofizante das águas e os surfactantes não biodegradáveis foram
substituídos.
Concorra
concorra foi isso que não reparei
que
uma rapariga cortou as veias
talves
fosse com uma Diplomatic
que
tem o fio e o silvo de uma espada a degolar avestruzes.
No
programa só havia bombeiros
nem
uma rapariga a cortar as veias (não era a Caprília)
nem
o rio nem o amor nem a raiva da Venezuela.
Se
mágoa sentia era a de ter esquecido
dar
murros no espião da Missão Impossível
(atenção ao marketing)
e
já não saí de casa para ver o rio
só
pelo gosto de me aquecer com um Ignis.
E
na mesma noite noite boa noite branca
fumei
Estoril Valetes Kayakes e bebi Compal
depois
da Salus e da Schweppes
fumei
quilómetros e quilómetros de prazer
quilómetros
e mais quilómetros – há um Ford no meu futuro –
mais
facturas mais fomes mais prazer
e
agora já não sei qual dos cigarros com filtro
me
soube melhor.
Foram
todos foram todos de certeza
pois
se me dizem que preciso de Omo
do
Ajax do Estoril do Dralon
do
esquentador e das alcatifas sem nódoas
não
me preocupo não te preocupes
o
Meraklon não preocupa ninguém
mando
para o diabo o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias
não
me preocupo não me preocupo
digo
pois pois ao Jota Pimenta e ao Escort
e
hei-de virar-me do avesso para os possuir.
Os
corpos que merecem ser amados merecem o talco Cadum.
Numa
onda de brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.
Compal,
Salus (marca de água da Vidago) e Schweppes são
marcas bem conhecidas. No caso das águas, há que contar com as
análises química e em alguns casos com a adição de dióxido de
carbono ou aromatizantes, caso da Schweppes. A
marca Meraklon ainda
hoje existe e está relacionada com fibras de polipropileno, entre
outras.
E
na mesma noite
vi
umas bombas que caíam muito ao longe
numa
lonjura mais longe que a Lua
onde
as pessoas podiam estar quietas a fumar Marialvas
e
a lavarem-se com Rino que lava lava lava
lava
três vezes mais lava ou mata que se farta
e
me ajuda a ser bom cidadão.
atenção ao marketing.
Vi
uns homens a inaugurarem estátuas
e
vi fardas e paradas e conferências
e
crianças a sorrir
para
os homens sorridentes que inauguravam estátuas
e
vi homens que falavam e pensavam por mim
a
escolherem por mim o bom e o mau
de
modo a que eu não possa ser tentado
a
confundir o mau com o bom ou vice-versa ou vice-versa.
Deitado
no conforto de um Lusospuma
vi
os porcalhões dos hippies nas ruas de Estocolmo
bem
longe nas ruas de Estocolmo
mesmo
a pedirem uns safanões
dos
homens que acariciam crianças
e
têm todas as verdades na mão
só
para que eu seja um bom cidadão.
É
isto: marco o rumo. As minhas cuecas marcam o rumo.
Preciso
e gosto de uma data de coisas
e
só agora o sei.
Menos
da Sagres. Mas acabarei por gostar.
Ninguém
contraria o marketing por muito tempo.
Ninguém
contraria os fabricantes de bem fazer
o
bom cidadão.
E tudo graças ao marketing.
(na foto a capa da 4ª edição de 1978 rodeada de alguns produtos referidos no poema e de alguns outros que ainda não existiam, ou eram pouco conhecidos em Portugal, em 1969)
(na foto a capa da 4ª edição de 1978 rodeada de alguns produtos referidos no poema e de alguns outros que ainda não existiam, ou eram pouco conhecidos em Portugal, em 1969)
2 comentários:
Outrora o Pórtico nos deu
Quão obscuros e sábios anciãos!
Eles eram capazes de crer que as imagens sensíveis,
Exalando-se da superfície dos corpos,
Gravavam-se nas nossas almas
Tal como o estilete
Traça a cera na tabuinha
Assim sem nenhuma inscrição,
Recobrindo-a de símbolos.
Boécio, Livro 5 de "A Consolação da Filosofia"
Gostei. Obrigado Labdigital
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