terça-feira, 6 de março de 2018

Ainda as terapias alternativas: um cachimbo é um cachimbo


Meu artigo com David Marçal hoje no Público:

Na sequência do nosso artigo “Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas”, surgiu uma resposta de Leonor Nazaré (LN), curadora de arte contemporânea. Nós defendemos que as terapias alternativas, ao contrário do que dizem os seus prosélitos, não têm fundamento científico. E que o governo devia exigir provas de eficácia e segurança de todos os tratamentos, em vez de publicar legislação que define conteúdos programáticos de licenciaturas em pseudociências, cujo fito é dar cédulas profissionais a praticantes de terapias fantasiosas. É o equivalente a criar licenciaturas em dragonologia para conferir autentificação profissional a amestradores de dragões. Um tal absurdo contribui para enganar os cidadãos, levando-os a crer que certas práticas têm um fundamento científico que não têm. Se prosseguir pela actual via, o poder político tornar-se-á cúmplice de uma fraude.

O artigo de LN é um catálogo de clichês anti-ciência. A começar pelo relativismo, ou seja a ideia de que o conteúdo da ciência depende de factores culturais, implicando que verdades incompatíveis oriundas de diferentes culturas seriam igualmente válidas. Para os relativistas a concordância de cada convicção particular com as observações na Natureza é irrelevante, pois ela deve sempre ser entendida e aceite no seu contexto sociológico. Nessa visão não interessam as provas, não há verdade nem mentira, tudo é relativo. O matemático e filósofo Bertrand Russell encontrou-se em 1911 com Ludwig Wittgenstein, um influente filósofo do relativismo. Russell tentou que Wittgenstein concordasse com a seguinte frase: “Não há, nesta sala, neste momento, um hipopótamo”. Mas Wittgenstein recusou-se a concordar, mesmo depois de Russell ter espreitado debaixo de todos os móveis. As leis da natureza são as mesmas em todo o Universo e não dependem de quem as propõe, mas sim das provas apresentadas em seu abono. A divisa da Royal Society, a mais antiga sociedade científica do mundo, ilustra bem o que é a ciência: nullius in verba, que significa “A verdade não está na palavra do mestre”. É por não aceitarem a palavra das autoridades que os cientistas observam e experimentam. E é com base nesse seu trabalho que é possível fabricar telemóveis, aviões e medicamentos.

LN evoca a física quântica, que há mais de cem anos tem descrito o mundo à escala das moléculas, átomos e partículas subatómicas. Junta-se assim a Deepak Chopra, Rupert Sheldrake e outros gurus do movimento Nova Era (de Aquário, na lógica astrológica) que usam algumas ideias da física quântica em metáforas nos seus livros de auto-ajuda. LN acredita nessas autoridades. Os deturpadores da teoria quântica ignoram que, apesar de existirem electrões nos seres vivos, a sua descrição não chega para explicar a vida, cujos fenómenos decorrem noutra escala. Os princípios que regem um electrão não se aplicam ao João! Os ditos gurus fazem extrapolações abusivas, como a possibilidade de se criar realidade apenas com a nossa consciência ou de curar o cancro com o poder da mente. No limite, se morrer de cancro a culpa é sua. Nada disso é física quântica, é palavreado com um ar científico usado sem qualquer significado. Cada um tem direito a acreditar no que quiser, inclusivamente em estranhos poderes da mente, não pode é chamar ciência ao que não o é.

LN saca, sem surpresa, de outro cliché anti-ciência: a quimiofobia. Só que um produto natural é necessariamente um produto químico, e o facto de uma substância existir na natureza não a torna necessariamente segura. Basta pensar no ácido aristolóquico, presente em plantas medicinais usadas há séculos na China, mas que causa insuficiência renal e cancro. Ou, reciprocamente, nos medicamentos sintéticos que todos os dias salvam inúmeras vidas.

Por último, a ciência não é a única das dimensões humanas. O facto de sermos cientistas não nos impede de apreciar a arte. Há pontes a realçar, designadamente o facto de em ciência também existirem critérios estéticos. Hermann Weyl, matemático que ajudou a desenvolver a teoria quântica, afirmou: O meu trabalho sempre tentou unir o verdadeiro e o belo, mas quando tive de escolher entre um e o outro, escolhi normalmente o belo.” Contudo, há uma diferença essencial entre ciência e arte: a ciência descreve o mundo real de que somos parte, que é só um e cujas leis não dependem da nossa vontade, ao passo que a arte pode criar mundos, que são tantos quantas as obras de arte (Wassily Kandinsky: “criar uma obra de arte é criar um mundo”). Em ciência um cachimbo é um cachimbo, mas em arte não é necessariamente assim. É errado aplicar o pensamento da curadoria da arte à epistemologia da ciência.

Carlos Fiolhais e David Marçal
(Cientistas e divulgadores científicos, autores do recente livro “A Ciência e os seus Inimigos.”)

14 comentários:

Luís Teixeira Neves disse...

Eu tenho uma doença crónica, degenerativa e incapacitante. Não é coisa rara. É uma doença auto-imune. Mais de 1% dos portugueses têm alguma doença auto-imune. Vou ser mais radical. Eu tenho essa doença numa fase avançada. Nesta fase avançada a medicina convencional sequer a trata e muito menos a cura. As medicinas alternativas - a naturopatia, a homeopatia, a acupunctura - tratam-na e curam-na. Simples. Independentemente dessa farça da "comprovação científica". Sim, é uma farça!

Anónimo disse...

Então se a comprovação científica é uma farsa (porque a farça é um pelicano), como se explica o tratamento e a cura dessas medicinas?

Se A+B não é igual a C, então falamos de quê? Crença, fé, milagre...?

Se é simples, tanto melhor.

Anónimo disse...

Arranje provas então que essas medicinas alternativas tratam e curam. As únicas coisas que essas tretas curam são a sede (homeopatia) e a riqueza (qualquer uma, à sua escolha). Se não concorda, é livre de mostrar provas em contrário, claro (não sei se reparou que caiu no ridículo de fazer exactamente o mesmo que a Leonor Nazaré, de atacar o mensageiro e não a mensagem).

Anónimo disse...

Leonor Nazaré, grande artigo, basicamente aponta o que interessa, estes defensores da ciência representam exactamente o contrário do que apregoam. São o dogma em pessoa e são um refugo que envergonha todos os grandes cientistas. E o Sr. Luís Teixeira Neves sente na pele a verdade. Teremos que aguardar até a ciência que estes indivíduos defendem lhes falhe, porque até agora, para eles, tem sido um bom negócio. "Os cães ladram, a caravana passa"

Anónimo disse...

Há pessoas que contam ter sido curadas por bruxos - é de admitir que não seja mentira.
Há até aquela estória (!) de uma consulente de bruxo que é mandada por este ao hospital, dando-lhe também um sobrescrito fechado para apresentar ao médico do mesmo hospital. Aberto o envelope, o clínico - inscrito na Ordem! - leu o seguinte: Já fiz a minha parte, agora é consigo, colega (!).
É fácil falar de mentiras; falar de verdades e curas é mais difícil!

Anónimo disse...

Parece haver nos curricula universitários, desde há muito, bastante pantominice com designação de ciência, aparentemente sem contestação (visível).

Carlos Ricardo Soares disse...

Não me parece nada difícil de aceitar e de preconizar que os sistemas jurídico-normativos estejam alinhados com o espírito científico e não equiparem o que não é científico àquilo que o é. Mas os sistemas jurídico-normativos não têm capacidade, nem competência, em matérias científicas. Aliás, o que verificamos atualmente, com grande pena, é que o processo de produção das leis, depende menos de valorações ético-jurídicas, do que de um "quorum" partidário.
Digamos que, historicamente, o Direito só sobreleva a força, quando a força está ao serviço do direito, por mais difícil que seja verificar esta última situação.
Não obstante, sabido que é que muitas verdades, antes de serem científicas, já eram verdades e não foi a ciência que as tornou verdadeiras, apenas as validou, preferia ver as medicinas "científicas" mais interessadas em submeter a investigação as medicinas alternativas, na esperança ou tentativa de expandir o universo medicinal, do que empenhadas numa "reação" defensiva e provocatória. Ou elas, realmente, já se deram ao trabalho de provar que, afinal, o tal chá, ou a tal punção, não têm os efeitos que lhe são atribuídos?
A ciência é talvez o único domínio do conhecimento em que não pode haver emoção, o desdém, a soberba, a arrogância, porque não fazem parte dela. Poder-se-á defender que a ciência, tal como a matemática, está em tudo, até há quem diga que matemática é tudo e isto até pode ser verdade, todavia, a inversa não.

Anónimo disse...

Oh sim! A Royal Society, cuja comprovada relação com o Ocultismo e Sociedades Secretas ilustra bem o que tem sido a ciência, e o que é o actual paradigma científico. Só gente medíocre poderia escrever um artigo como este, pois, de outro modo estariam calados a cuidar dos seus telhados de vidro "científico". A Leonor Nazaré está coberta de razão, os únicos a usar clichés aqui são aqueles que acusam os outros de os usar. Já agora recomendo este vídeo que me surpreendeu com a extensão da mentira que é a tal ciência que Fiolhais e Marçal defendem. A Royal Society e o seu "leitmotiv" servem apenas para mentes medíocres enfiarem na carapuça, e militarem como se de um partido se tratasse.

What They Don’t Teach You About the Most Famous Scientists
https://www.youtube.com/watch?v=m7NXfuMhIwc

Anónimo disse...

Palavras sábias.
Muitos cientistas - não há a Ordem dos Cientistas! - de hoje, têm atitudes idênticas às dos sábios de antanho: dizem muitos disparates, principalmente quando extrapolam - o que é frequente - os seus canteiros muito específicos.
A Ciência de Tudo não estará, provavelmente, ao alcance do Homo Sapiens Sapiens.

Anónimo disse...

O aparecimento da Ciência Moderna com Galileu foi o clímax da junção entre o pensamento filosófico ocidental e o mundo sensorial!
Os chineses têm atrás de si uma civilização milenar, sem dúvida muito estimável, mas para progredirem nos negócios, e no chamado nível de vida,eles não têm outro caminho senão aprenderem a Ciência inventada no Ocidente!
Não é com acupunturas equiparadas a licenciaturas em Medicina que Portugal vai andar para a frente. A acupuntura tem o mesmo valor científico que a astrologia.

Anónimo disse...

É ridículo falar da ciência actual como um "negócio" ao mesmo tempo que se tenta defender acupunctura, homeopatia e afins. Os praticantes dessas tretas alternativas não recebem dinheiro? Não são elas negócios multi-bilionários? Cá está mais um belo exemplo de alguém que pensa que insultar o lado oposto é o equivalente a um argumento sério. Enfim, depois os outros é que têm um "dogma"...

Cisfranco disse...

As leis recentes que põem ao mesmo nível a medicina convencional e outras medicinas alternativas/naturais, são o reflexo duma sociedade que está a ser dirigida por gente que subiu ao poder sem preparação e o seu deficit de conhecimento é tal que não sabem distinguir o trigo do joio. Metem tudo no mesmo saco, indiferentes ao mal que causam ao País. Gastar dinheiro público com cursos que não têm nenhum suporte científico é mesmo de dirigentes ignorantes. Mas é o que temos...

Luís Lavoura disse...

Eu acho que o Carlos Fiolhais, que é físico tal e qual como eu, deveria ter em conta que o fundamento do método científico, e da física, é a experiência. Todas as teorias científicas têm um valor nulo em face da experiência. Portanto, as terapias alternativas só podem ser testadas cientificamente através da experiência. E eu questiono: o Carlos Fiolhais já testou alguma?

Eu já experimentei a homeopatia em mim e no meu filho pequeno. E funcionou.

Anónimo disse...

Parece que o meu comentário não foi aprovado (se aparecer 2 vezes, peço desculpa):

Estas medicinas "alternativas" já foram testadas clinicamente de modo exaustivo, e a conclusão a que se chega é que não funcionam melhor que um placebo. Não tem que ser o Professor Fiolhais a fazer esses testes, se médicos treinados já o fizeram.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...