Texto recebido do biólogo José Cerca de Oliveira e colegas no Museu de História Natural de Oslo (na figura):
A aplicação de métodos de sequenciamento de ADN revolucionou
a biologia. Ora, numa das suas aplicações mais surpreendentes, estes permitiram
encontrar várias espécies dentro de espécies tradicionalmente definidas –
equivalente ao príncipio das matrioscas, as famosas bonecas russas - as
espécies crípticas.
Estas espécies demonstram, portanto, elevados níveis de
divergência genética entre si, mas, surpreendentemente, não se verificam
diferenças morfológicas (morfos = forma). Assim foi cunhado o termo ‘espécies
crípticas’ (Grego Kryptos = escondido). A ocorrência das espécies crípticas
ressalva a necessidade de um bom sistema de organização e classificação dos
seres vivos, demonstrando que negligência na catalogação das espécies pode
incorrer em problemas tanto a nível do conhecimento biológico das espécies
(história evolutiva, ocupação de espaço ecológico, perfil biogeográfico) como também
pode ter impactos económicos e na nossa saúde. Ainda assim, nem todos os
cientistas estão de acordo com as definições propostas de delineamento de
espécies crípticas.
O mosquito Anopheles gambiae é conhecido pelas piores
razões: este mosquito é o vector que transmite o parasita protozoário da
malária, responsável por milhares de mortes anuais. Recentemente descobriu-se
que esta espécie é um conjunto de espécies crípticas. Morfologicamente
idênticas, estas espécies parecem ser distintas pela sua preferência de habitat
(por exemplo, no uso de poças de água ou campos de arroz no crescimento das
larvas). Por um lado, esta descoberta revelou que nem todas as espécies são
perigosas para o ser humano, por outro lado, permite a concentração de esforços
nas espécies que nos atacam - informação que pode fazer diferença a salvar
vidas. No combate à fome descobriu-se que o hemiptero Bemisia tabaci
ataca algumas plantas de interesse económico como o algodão, melão, brócolo,
repolho e a abóbora. Estudos genéticos demonstraram que esta espécie é composta
por 28 espécies diferentes e esta informação abriu portas à identificação e
delimitação destas espécies, revelando que distantas espécies do complexo têm
diferentes preferências (umas gostam mais de repolho, outras mais de melão, …).
Contudo isto aparenta ser apenas a ponta do iceberg. O termo
“espécie críptica” tem ganho popularidade nas últimas décadas e têm-se
descoberto espécies crípticas em diversos ramos da árvore biológica. Um dos
problemas é o trabalho exigente, especializado e laborioso que envolve a
descrição de espécies e que acaba por ser descurado facilmente - muitas das
espécies crípticas não chegam a ser formalmente incluídas no sistema de
classificação e outras necessitam de verificação e confirmação.
Recentemente descobriram-se 16 espécies dentro do peixe Schindleria
praematura. Dez foram encontradas no mesmo local (simpatria), levantando as
seguintes questões aos cientistas: Como é que estas espécies evoluíram? Como é
que se distribuem no espaço ecológico? Competem por recursos, habitat ou
espaço? Será que evoluíram no mesmo local (simpatria) ou em locais diferentes
(alopatria) tendo-se juntado mais tarde? Como se mantêm enquanto espécies
diferentes?
No meio destas questões, há uma questão que sobressai: como
é que estas espécies se mantêm idênticas na presença de processos que, à
partida, geram diversidade tais como selecção natural e deriva genética?
Possivelmente através de limitações de plasticidade genética ou plasticidade de
desenvolvimento; potenciais vantagens em preservar uma certa forma; mudanças a
nível fisiológico; ou, em certos casos, tratam-se apenas de espécies irmãs:
espécies que se apenas se separaram recentemente e cujas diferenças se
acumularão com o passar do tempo.
Com as alterações climáticas, poluição, fragmentação e
destruição dos ecossistemas e poluição acentua-se a necessidade de entendermos
a biodiversidade e ponderar em como a preservar. Por um lado, a ocorrência de
espécies crípticas pode esconder uma parte substancial da biodiversidade mas
por outro lado, poderá levar a falhas na conservação de espécies. Porém, nem
tudo são favas contadas. Nem todos os cientistas concordam com os termos
aplicados até então. O que é necessário para classificar uma espécie de
críptica? Qual é o grau de divergência genética necessária para serem
classificadas enquanto espécies diferentes? E quão semelhantes devem ser em
aparência para serem consideradas crípticas?
No Museu de História Natural de Oslo temos debatido estes
temas.
José Cerca de Oliveira
Siri Birkeland
Sonja Kistenich
Trude Magnussen
1 comentário:
Eu chamo criptografia à CDU dos bibliotecários que servem para esconder os livros dos leitores. Quanto às 16 espécies são mesmo iguais? É que os sentidos dos peixes podem ser diferentes dos nossos...tenho dificuldades em engolir essas 10 espécies no mesmo local... Adriano Silva
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