Artigo de Guilherme Valente, publicado no Público de ontem:
1. A escola como ascensor cultural e social, como sede privilegiada para promover o conhecimento, a cultura, a qualificação, a igualdade de oportunidades, é uma causa histórica comum da esquerda e da direita liberais. A Educação não é, não deve ser, portanto, um marcador na distinção ideológica (que é fundamental para o funcionamento da democracia pluralista) entre a esquerda e a direita liberais, um marcador na distinção ideológica desejável entre os partidos democráticos. Tal como não o são hoje as áreas da produtividade e da segurança ou, muito menos, a da virtude, como, lamentavelmente ainda acontece entre nós, com esquerda e direita a atribuírem a si próprias a exclusividade da bondade das respectivas intenções e propósitos.
Pelo contrário, pela Educação passa hoje uma linha demarcadora fundamental entre liberdade/totalitarismo, entre partidos democráticos. Por isso deve lamentar-se que os partidos do socialismo e da direita liberais, PS e PSD, designadamente, não se tenham unido depois do 25 de Abril para construírem, com coerência, competência e continuidade, a escola de que Portugal carece (1).
Por isso também, a entrega pelo PS da Educação ao programa ideológico esquerdista do BE, ferindo o interesse dos mais desfavorecidos e a causa do conhecimento e da cultura, condições da liberdade e do progresso, é um acto que trai a natureza e a identidade do socialismo democrático, o pensamento dos seus grandes vultos.
O PS esqueceu a preocupação social, herança fundadora do socialismo democrático, necessidade que o tempo e a História não desactualizaram. Sem cultura nem convicções para compreender o mundo novo em que vivemos (2), portanto sem imaginação para intervir nele, o PS deixou-se infiltrar pelo relativismo, abdicou da pretensão à objectividade e à racionalidade da tradição intelectual do Ocidente, e vem adoptando suicidariamente as causas societais do esquerdismo. Infiltração a que também não escaparam, aliás, grupos e militantes do PSD, acriticamente ofuscados pela moda e o politicamente correcto.
Vamos ter pois de novo, mas agora assumidamente, essa "escola" do esquerdismo importada, como é costume, de França, directamente (3) ou via Boston, pelas sociólogas-ideólogas graduadas em "especialistas da educação. "Escola" relativista, niilista, vazia dos grandes ideais comuns, que a verdadeira escola deve transmitir. "Escola" da demissão educativa geral, da desconstrução e estigmatização do conhecimento e da cultura, a que chamam "burgueses" e, agora, "ocidentais", "reprodutores das desigualdades sociais" e "opressores das minorias", dizem. Cultura - e educação - em que Rousseau, o inspirador dessa "escola" como de todos os totalitarismos, via a causa da desarmonia social (4). "Escola" da ignorância e da irresponsabilidade, que querendo tornar toda a gente igual só podia, e só poderá, nivelar por baixo, ser, como foi, e vai voltar a ser, cada vez mais facilitista e mediocratizadora.
"Escola" que prejudicou todos, mas feriu de morte os mais pobres, os que não podiam obter em casa o que ela não dava e voltará a não dar, os que não tinham meios para pagar o ensino privado. Os que vitimas da inutilidade dela a abandonaram num número nunca visto em qualquer outro país da OCDE. Ao contrário do que proclamava, foi a menos inclusiva que houve em Portugal. Igualitarista, com ela as desigualdades cresceram sempre.
"Escola" que por tudo isto odeia o mérito, despreza os resultados, tal como são universalmente reconhecidos e desejados.
Por isso o sucesso verificado no TIMSS e no PISA (embora não traduzindo a escola que se ambiciona), tal como a subida nítida das médias em todos os níveis e áreas de ensino e particularmente dos alunos dos meios mais desfavorecidos, lhes custa tanto a digerir. Sobretudo por isso, mas também por estar ligado inequivocamente às contra-medidas que começavam a começavam a transformar, iniciadas por David Justino, continuadas por Maria de Lurdes Rodrigues e, enfim, alargadas decidida e decisivamente por Nuno Crato. Sucesso num tempo mínimo, como muitas vezes previ.
Julgo haver hoje uma consciência alargada da devastação que durante mais de 40 anos essa "escola" promoveu na educação e os seus efeitos na sociedade. Consciência da qualidade intelectual, profissional, e cívica dominante dos que passaram por ela. Jovens iletrados, sem vontade nem causas, abúlicos, ou, num dos extremos sociais, selvagens violentos, tal como se manifestam, por exemplo, nas praxes asquerosas. Dizendo querer tornar todos iguais e livres, preparou escravos para as sociedades niilistas e atomizadas, de dissolução e violência, tal como cada vez mais parece configurarem-se no século XXI.
2.Bastará o fim dos exames, repostos progressiva e arduamente por David Justino e Nuno Crato, concretamente o do exame vital do 4.º ano de escolaridade, o regresso da "gestão democrática" das escolas, farsa com que Maria de Lurdes Rodrigues teve o mérito e a coragem de acabar, e o bloqueamento, que também se espera, das vias de ensino técnico profissional, para voltarmos a ter essa "escola", que tivemos com a Doutora Ana Benavente, que por isso volta agora a excitar-se tanto. ("Escola" de um "conhecimento" que não é, seguramente, aquele em que o ministro da Ciência, Manuel Heitor, pensa e de que fala...).
3.Leia-se, a propósito, o artigo do secretário de Estado da Educação, Dr. João Costa, publicado recentemente no Sol (17/12/16), que tão expressivamente anuncia o que aí vem. Cito apenas uma das várias pérolas: "Um 17 a biologia de quem não considera os outros vale menos do que um 15 de um aluno respeitador e solidário". E porque não do que um 14? Ou do que um 12, ou 10, pergunto?
Como se um bom aluno não pudesse ser solidário. Como se para ser solidário um jovem tivesse de ser ignorante, irresponsável e... desempregado no futuro.
Deduz -se, pois, que iremos ter em breve avaliações a disciplinas como - sei lá? - Solidariedade, Simpatia, Humildade, Docilidade e, determinada por esse acme de iluminação da grande líder... Felicidade.! ("Prefiro ser operada por um cirurgião que tenha sido um aluno feliz, do que por um cirurgião que tenha sido um bom aluno", Catarina Martins, cito de memória). E com essa escola da Felicidade ficará resolvido o problema da divulgação dos resultados escolares.
Como um secretário de Estado deve ser uma pessoa, pelo menos, de mediana inteligência, e como não quis gozar com toda a gente, a insensatez do que escreve - objectivamente indutora de falta de ambição e de preguiça nos alunos e.. professores - só pode ser explicado por uma contagiada (colonizada, diria, bem, Francisco Assis) cegueira ideológica.
Não é difícil imaginar o ensino e o ambiente quotidiano nessa escola da Felicidade, prever o futuro dos alunos que a frequentarem, a sociedade em que irão viver, a vida dos professores que ao longo do ano não desistirem de tentar fazer-lhes entrar alguma coisa na cabeça. Como um autor escreveu sobre a situação na França, de onde, repito, o delírio foi importado, "o terror não é apenas o de um camião enlouquecido num mercado de Natal: é,no quotidiano, 30 macacos entregues a eles mesmos, face a professores desarmados". Que a "escola" que aí vem desarmará ainda mais.
(1) Para isso lançámos o Manifesto para a Educação da República, o abaixo-assinado que maior número de assinaturas reuniu num menor número de dias. Consenso democrático invulgar, que, infelizmente, não foi aproveitado.
(2) Determinado pelas rápidas sucessivas revoluções ocorridas a partir dos anos sessenta, revoluções tecnológica, no trabalho, nos costumes, na geopolítica, nomeadamente. Michel Roccard (Le Point, (23/06/2016): "Os políticos são uma categoria da população fustigados pela pressão do tempo. Nem serão, nem fim de semana tranquilo, nem um momento para lerem, ora a leitura é a chave para a reflexão. Por isso nunca inventam nada. As eleições sucedem-se sem que surja um projecto novo de sociedade, nem de um lado nem do outro. O socialismo tinha um projecto , mas desde há muito tempo que não é claro".
(3) Quem são os assassinos da escola, título do livro de uma jornalista do Nouvel Observateur, uma investigação sobre a Educação em França.Teorias e práticas assassinas exportadas para Portugal, personagens francesas de que os nossos protagonistas são clones equivalentes (Qui sont les assassins de l' école, Paris, 2016, edição portuguesa a publicar em breve).
(4) Rousseau que pregava o desprezo por todos os factos, antecipando o mundo da "pós-verdade". Princípio que as "especialistas da educação", sociólogas de uma "sociologia" sem factos, praticaram entre nós com o despudor mais absoluto.
Guilherme Valente
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