Prefácio do último livro de Sebastião Formosinho "A Esperança, Utopia impossível?: da insatisfação como via do (que podemos) conhecer, e esperar, e devir", em co-autoria com J. Oliveira Branco, publicado recentemente pela Imprensa da Universidade de Coimbra, que aqui se republica em homenagem a ele, chamando a atenção para o livro (que completa uma pentalogia sobre ciência e religião):
«Deus imortal. Que século
eu vejo abrir‑se diante de nos!
eu vejo abrir‑se diante de nos!
Como eu
gostava de tornar a jovem.»
ERASMO
Este
livro nasce da insatisfação. E nasce para interrogar esta nossa
condição, de todos. A atenção que (também) lhe prestamos não
é ‘muro de lamentações’: tenta entender algo mais do humano. Que,
justamente, não se contenta com o factual empírico. Que o homem
se acomode ao que lhe dá gosto e ao que é fácil, parece… demasiado
natural. O que surpreende, e ‘faz questão’, e desperta interesse,
é o afã da in‑quietação que sempre nos impele mais e
mais. É como se o nosso centro de gravidade não coincidisse com
o que já somos. Porque esta centração no ainda-não? E a ambivalência
que a caracteriza?
É uma questão questão que preside ao próprio homem: é-nos anterior. Será
inerente a consciência como ‘instância de opções’; mas é um modo‑de‑ser
sobre o qual não temos opção. Estranho espinho o
da insatisfação! Qual pode ser o significado de sermos assim? Podíamos
falar da insatisfação como facto existencial − e histórico. E
como paradoxo. Ou como risco. Da consciência, e da sociedade. A
insatisfação que dá asas, pode também precipitar no “desastre” do
ser. E pode ser estímulo: Também o ‘espinho’ desperta. Alerta para
um (imenso) leque de possibilidades. E por tornar fecundas as
lições do passado e as demandas do presente, é pertinente falar da
insatisfação como atitude.
Será que poderíamos humanizar-nos sem ela? Mas por outro lado,
será que − com ela − podemos ser felizes, e realizados? E porque a questão se põe assim é forçoso perguntar: Será que a esperança
‘faz sentido’? E como − em que base − é que a esperança pode ser consistente?
É todo um encadeamento de boas razões para os dois autores sentirmos
a interpelação desta problemática. Estamos, é claro, com
aqueles que são sensíveis ao desafio de uma temática séria e
consistente. E densa de significado para a vida e a cultura. Apesar
de, nestas questões, o perguntar jamais se esgotar, é necessário
− e vale sempre a pena − interrogar(‑se).
Por mais que
viva, o homem é ser ‘de procura’. Todo o afã da existência pessoal,
e das sociedades, e da história, se deve a este singular desacerto que não nos deixa estagnar. Desacerto que é inerente ao
conhecimento humano, “o que conhecer”, e ao modo pessoal de
“como conhecer”. Como Michael Polanyi nos revela, em consonância
com o pensamento de Santo Agostinho e de Santo Anselmo;
a crença precede o saber.
É um impulso para voar que lança a ave pelos ares. Embora não saiba nada do ar, voa. As asas são um meio. O estímulo tem-no a ave
em si mesma. É‑lhe intrínseco. Estranhas são as aves (domésticas ou
não) que, apesar de terem asas, desistiram de as usar. Outras há, que
aprenderam a nadar: pescam em águas mais fundas. E outras que,
para se alimentar, debicam no lodo. Trocaram a largueza do alto
pela viscosidade escura. Esquecidas as alturas, já lhes perderam o
horizonte. Porque este já não lhes fala, não se desprendem do chão. A imagem não pretende senão sublinhar isto: O impulso da
esperança precisa de ser cultivado. O que na sobrevivência das aves
é diversificação bem sucedida, no homem pode ser demissão. Posto
que tem ‘asas’ para mais, não é justo − não está a sua altura −
remeter‑se ao menos. No homem, ficar só pelo que é ‘natural’ pode
levar a abdicação de si.
Aliás quanto mais avança a história mais envolvente é o desafio que se levanta. Viver como humanos no séc. XXI requer muito mais
maturidade cultural do que no tempo dos gregos, cartagineses ou
romanos. A medida que vivemos, o horizonte dilata-se. E
ninguém o esgotará nunca. De (tão) insatisfeitos que somos por constituição,
sempre tendemos a mais. Sempre descontentes do já
havido. Não há quem não tenha que lamentar. Cada um acerca de
si mesmo. E de todos. E da história que o passado nos legou.
Ora, se o homem está sempre em desfasamento com tudo o que vamos
sendo e sonhando, aceitemos indagar o que isto significa. O
homem aspira a ser mais si‑próprio. E se em algum aspecto, então
é porque precisamos de o ser por inteiro. Quem se fixa no já‑sido,
estará a ver de modo deformado. Precisa que o ajudem a libertar‑se.
O que nos torna livres é a Verdade (Jo. 8, 32). Palavra profunda.
Com muito mais alcance e força de aplicação do que se supõe numa visão estática, ou acomodada.
E isto não pode ser tomado a nível apenas individual. A verdade é dinâmica. Abarca toda a ordem do Ser. E toda a história. Também a das
culturas e das religiões. Não há Verdade onde a vida e a história é
idílica para uns e trágica para os outros todos. Enquanto houver quem
o não perceba e respeite, continuamos na pré‑história. Na sua crueza,
e injustiça, é esta a questão da humanidade. Por muito que as
ideologias e as regras da civilização dita ‘global’ andem a convencer o
mundo do oposto. E esta busca de verdade começa em muito a
nível individual, mas só se torna eficaz quando a constelação de convicções que gera se volve em crença de uma comunidade, em paradigma,
motor de adaptação e evolução.
É certo que o homem se faz (e é feito) de 'sim e não'. Em des-equilíbrio dinâmico. Dialéctico. Somos, na medida em que animados por
um ‘princípio de insatisfação’ e um ‘princípio de adaptação’. Ou
de acomodamento. «Se me deito, digo: ‘Quando chegará o dia? Se
me levanto: ‘Quando virá a tarde?’ E encho‑me de angústia até chegar
a noite» (Job 7, 4). É o nosso modo-de-ser, neste mundo. E
o de tudo aquilo de que se compõe o humano. A experiência e o
sonho, a sociedade e a história, a criatividade e o crescimento, a cultura
e o dever dela, a vida e a morte. A existência e a história ensinam muito.
E exigem também muito. Naquilo que se faz, e naquilo que é preciso seja feito. Justamente porque a
história não
é só um movimento
factual, dominado pela ‘lei’ dos mais fortes. É também − e precisa de ser − rumo de dever-ser.
Em ordem a humanização de
todos. E isto, é preciso que valha em todas as frentes. No
direito, na
economia, política, nas ciências, artes, e nas religiões também. Na
presente obra dedicamos especial atenção a duas frentes que muito
moldaram a humanidade ao longo da história − a religião e a ciência −, nos contextos de diversas culturas, e através dos seus conflitos
desequilibradores mas também dos seus diálogos conciliadores, e
da insatisfação que sempre geraram.
Quanto
mais ameaçado, e ameaçador!, seja o desequilíbrio, dinâmico!, mais reflectida (e competente) tem de ser a insatisfação cultural
e social. E mais apurada a utopia. Mas será que os agentes da
história actual cultivam a Utopia? E a qualidade das utopias? Quanto
mais abrasiva a crise da esperança, mais aguda se torna esta pergunta.
A questão vale para todos os tempos; mas hoje tornou‑se muito
mais inquietante. O que formos ou deixarmos de ser − na cultura,
na ecologia, na economia, na percepção de horizontes − terá consequências graves para todos os vindouros. Nos tempos de
hoje tal
revela‑se particularmente pertinente na ciência e nas religiões.
E As épocas da História não obedecem a um ritmo homogéneo. E em todas coexistem sensibilidades e tentativas diversas, em face das solicitações pendentes. Erasmo (1466‑1536) vibra com o seu tempo. No
mote em epígrafe pulsa a euforia do Renascimento. Porém Erasmo escrevia‑o
no início de 1517: o ano em que ia dar‑se o rompimento de
Lutero com Roma que faz agora cinco séculos. Não era um tempo fácil. São os grandes desafios que despertam as atitudes que marcam a História,
e no caso de Lutero e Erasmo marcou e ainda hoje marca toda a
Europa e as suas culturas. Tem pertinência evocá‑lo a propósito do tempo
que vivemos agora. E contudo, é duvidoso que o sentir de Erasmo ocorra
a grande maioria dos homens. Pelo menos na perspectiva de um
desafio total. Abundam os entusiasmos ligeiros. A leveza tornou‑se atitude
comum, modo de vida, e sistema geral da sociedade [1]. Mas não é
a transição do tempo que faz o porvir. Só pode abrir Futuro quem souber
antecipar‑lhe Valores que respondam, realmente, as carências de
cada tempo. Entre o rasgo de homens como Erasmo e as euforias e desenganos do imediato, ou cabe ‘o repto da Esperança’ ou não cabe. E
valores que carecem de alicerces, e estes apelam também a crenças.
Como e que esta dinâmica pode ser entendível? Já por aí sondámos no volume anterior. Estas coisas tem o seu nexo. Conforme o objecto (pre)tendido na ambivalência, assim será positiva ou negativa
a dinâmica. E o(s) sujeito(s) que se rege(m) por ela. Ajude‑nos
uma figura − aliás de ordem diferente: Veja‑se, por exemplo,
uma ‘massa gravitacional’. Se é uma grandeza pequena, será
arrastada (atraída, dizia‑se na física newtoniana). Mas quanto maior
a sua grandeza‑energia, mais ela arrastará (atrairá). Na física de
Einstein, a “atracçao” é entendida como efeito da curvatura do espaço.
Resultado da massa dos corpos em presença. É por força da
sua com‑posiçao que os corpos seguem a respectiva trajectória.
Até aqui, o simile. Aludimos a ordem do Ser. A 'força da esperança' é positiva. Gera crescimento. Mais‑ser. A da des‑esperança, negativa.
Só pode acarretar arrastamento. E alienação. Conformismo. Descalabro
(em aceleração: espiral dispersiva). Onde o ‘vazio’ seja reconhecido
como vazio, pode ainda caber abertura a positividade. É
isto que está pendente quando se fala da ‘humanidade’.
Eis
a nossa questão. Considerar a Insatisfação como
‘forma’ (o
constitutivo) do humano é despertar para as possibilidades de uma Humanização realmente renovada. Utopia? Também indagamos sobre
o que distingue a Utopia genuína das utopias ilusórias. E se importa a humanidade − e se é preciso − construir o porvir! Não só de
homem‑a‑homem, mas em relação a todos. E em favor também dos
vindouros. Também em relação a eles há deveres de justiça e de
humanidade. Não é de fiar a cultura ou a religião que o ignore ou
menospreze. E esta é uma outra vertente. O horizonte não o poderia ser
‘por inteiro’ se houver deficit na Humanização que somos chamados
a prosseguir. Entre todos e com todos. E quantos acertos de
justiça, caridade e amor e desacertos de poder, vaidades e invejas encontramos
ao longo da história nas Igrejas e na própria ciência, e
que vão moldando a nossa insatisfação.
É inegável que sempre aspiramos a mais. Quer dizer: As modalidades de qualquer horizonte parcelar que os homens possam alguma vez
experimentar serão sempre aquém da Aspiração do Humano. O
que (confusamente embora) deixa entender que é outra a ‘medida’ para
a qual nos sentimos em tensão. Eis o ponto. Este Horizonte outro não pode ser equacionado em termos de referencia concreta (categorial).
Deixa‑se entrever nele como que um ‘Fôlego’ que excede todo o individualizável. O mais árduo - e desafiante - da forma do Humano é esta ‘condição’ nossa: A vocação para viver no já (do concreto) o Horizonte de um Ainda-não − que não se deixa resumir
as modalidades do particular. E é isto, justamente, que nos anima
e entusiasma. Será impossível a Utopia − e a Esperança?
A
nossa reflexão situa‑se na sequencia da tetralogia que publicámos antes
− 1. O
brotar da Criação. Um olhar dinâmico pela ciência, a
filosofia e a teologia; 2. A Pergunta
de Job. O homem e o mistério do
mal; 3. O Deus que não temos. Uma historia
de grandes intuições e
mal‑entendidos;
4. A
Dinâmica da Espiral. Uma aproximação ao mistério
de tudo. Faltava esta temática. E se ela é
actual! Com
a seriedade intelectual e o método já conhecidos, os dois autores temos
o gosto de partilhar a nossa análise. Não a quisemos excessivamente
sistemática (ou académica), mas entendemos que deve
oferecer coesão bem estruturada. Para que possa dialogar com leitores/as
de cultura sólida e exigência de pensamento.
O
livro quer ser uma homenagem a todos quantos, apesar dos
contratempos da vida, continuam a acreditar na Esperança. Os
obstáculos, e os espinhos, não são realmente tudo. Mais forte que
todas as dificuldades que se atravessam na vida das pessoas, e
na história dos povos, dos países, e das religiões − muito mais forte
do que isso, é a força da Esperança. Levar tudo isso a conta de evasão, resignação, ou derivação de utopia ultimamente ilusória −
não
faz justiça a pessoa de cada um. A que
se deve esta Força? Mesmo
contra evidencias que parecem invencíveis. Que é o homem, no
mais fundo de si, para teimar em olhar para além das piores adversidades?
Grande Mistério o do homem, também nisto.
Os
autores desejam agradecer ao Director da Imprensa da Universidade
de Coimbra, Prof. Delfim Leão, e a Directora-adjunta, Dra. Maria João Padez de Castro, por todo o empenho que colocaram na
publicação de mais esta obra, e a Direcção da Bluefarma SA por mais uma vez ter prestado apoio financeiro a impressão de mais
livro destes autores.
Sebastião
J. Formosinho
J.
Oliveira Branco
[1] O mesmo Erasmo, no justamente célebre Elogio da loucura (1508), põe a Loucura a fazer o seu auto‑elogio. Retratando quase todos os aspectos da sociedade civil, e religiosa. Um ‘espelho’, ainda de muita actualidade. «A minha opinião é que quanto mais louco se é, mais feliz se consegue ser» (ob. cit., 39). E «se os actores estão em cena no desempenho do seu papel e um deles tenta arrancar as máscaras […], apenas consegue perturbar toda a representação. […] O mesmo se passa na vida, […] cada um faz o seu papel conforme a máscara que usa». É a loucura que é seguida, não a Sabedoria: «Os mortais rezam para se livrar de tudo menos de mim» .
2 comentários:
«Não há Verdade onde a vida e a história é idílica para uns e trágica para os outros todos. Enquanto houver quem o não perceba e respeite, continuamos na pré‑história. Na sua crueza, e injustiça, é esta a questão da humanidade. Por muito que as ideologias e as regras da civilização dita ‘global’ andem a convencer o mundo do oposto. E esta busca de verdade começa em muito a nível individual, mas só se torna eficaz quando a constelação de convicções que gera se volve em crença de uma comunidade, em paradigma, motor de adaptação e evolução.»
Como é tão difícil compreender e aceitar e praticar o que, tantas vezes, é evidente? Que regras ou forças nos impedem, ou constrangem, ou desaconselham? Em que sistemas de "persuasão"/alienação, estamos imersos, que não deixam alternativas? Por que é que as verdades, a verdade, parece ser sempre mais difícil de se "aplicar"? E estamos a viver no séc XXI, depois das luzes.
Não me refiro apenas à verdade do ser. Também a verdade do dever-ser parece chocar, em muitos aspetos, com aquela e querer anulá-la. Mas aqui, destaco o "querer", a vontade, na medida em que prescinde de tudo e se erige em último critério de todas as coisas: o indivíduo, o individualismo, o egoísmo, a loucura, o pessimismo, não carecem de outra racionalidade que não o próprio capricho, o refúgio mais enganador que as drogas...
Penso que o pessimismo é consequência do individualismo/egoísmo/capricho e que o otimismo não existe senão numa visão, sentimento, perspetiva, coletiva, social.
Aquele é autofágico, não sobrevive a si mesmo.
A promessa dos sistemas políticos de que o melhor para a sociedade se alcançaria fomentando o egoísmo/individualismo, colonizando o indivíduo, está cada vez mais longe de se cumprir, talvez porque, levado a extremos, o individualismo aniquila o próprio indivíduo, retirando-lhe sentido e sentimento social, esvaziando os valores sociais.
divertido espinho o da curiosidade...esse , sim , permite ser feliz.
a insatisfação humana ( a avidez , sempre em crescendo , de que fala já Maquiavel) tem a ver com Poder : uns querem mandar , e os outros rebelam-se. e andamos nisto há milénios , em círculo , não avançámos nadinha. Esperança que os homens deixem de querer abusar lucrar e mandar uns nos outros ? nenhuma. bom , pode haver um milagre , algures num futuro longínquooo . são muito poucas as pessoas que nascem sem sentido de Poder, duvido que algum dia se tornem maioritárias. oh , já me esquecia que agora há a manipulação genética..Esperança no artifício ?
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