Apresentei recentemente o livro "Logo à tarde vai estar frio", romance publicado na Gradiva, que recebeu o prémio literário Maria Amália Vaz de Carvalho em 2015 para além de ter obtido uma menção honrosa no prémio João José Cochofel de 2013. O autor (de seu nome verdadeiro João Carlos Cruz), 52 anos, é natural de Cantanhede e trabalha em Aveiro na área da reinserção social. Estreou-se em 2005 com um romance que ganhou o prémio Carlos de Oliveira (um escritor de Febres, praticamente seu conterrâneo; a Gândara, à volta de Cantanhede, tem dado vários outros homens de letras como Augusto Abelaira e Jaime Cortesão). Depois os prémios literários continuaram a suceder-se: Prémio Alves Redol em 2011 ("Ao redor dos muros", Gradiva), Prémio João Gaspar Simões também em 2011 ("Largo da Capela", Gradiva), Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama em 2013 ("Silêncio solar das manhãs", Gradiva), Prémio Bocage em 2015 ("Na luz das janelas pestanejam as sombras", inédito), e prémio Alves Redol de novo em 2015 ("A luz vem das pedras", também inédito). É, portanto, uma voz literária reconhecida tanto na prosa como na poesia.
"Logo à noite vai estar frio" é uma biografia romanceada do escritor António Nobre (1867 - 1900), o poeta do Porto, nascido no mesmo ano que Camilo Pessanha e Raul Brandão, que estudou em Coimbra e em Paris e, após várias viagens pelo mundo, acabou por morrer na sua terra natal com apenas 32 anos vítima da doença da época: a tuberculose, que vitimou também Cesário Verde, Júlio Dinis, Soares dos Passos e António Aleixo, só para falar de escritores portugueses. Nobre foi só o autor do livro "Só" (a primeira edição saiu em Paris em 1892 na Léon Vanier e a 2.ª edição, revista e ilustrada, na Guillard,Aillaud & Co. em Lisboa em 1898, ainda em vida do autor). Nobre assemelha-se, numa metáfora astrofísica, a um cometa que brilha intensamente quando está perto da Terra durante um curto período de tempo para depois desaparecer. Sobre ele falarei num outro post, porque tendo relido o "Só" ("o livro mais triste que há em Portugal") não pude deixar de voltar a ficar impressionado por esse retrato tão pungente de Portugal e dos portugueses patente em poemas como "Lusitânia no Bairro Latino" ou "Carta a Manuel".
Canteiro adopta uma apresentação cronológica, começando com a vida do autor e terminando com a sua morte, baseando-se não só no "Só", que é uma espécie de autobiografia em verso, mas também na volumosa correspondência que Nobre nos deixou e que foi reunida por Guilherme de Castilho (Imprensa Nacional, 1982) e que nos permite seguir as difíceis relações consigo próprio e as relações, ainda mais difíceis, com o mundo à sua volta. "Logo à noite vai estar frio" é, portanto, literatura sobre literatura, um livro a chamar por outros livros, como fazem aliás de uma maneira ou de outra todos os bons livros. A escrita, dando voz a Nobre na primeira pessoa, revisita as datas e lugares das vida do poeta, com um intermezzo a meio que se passa muito perto da actualidade, na cidade de Coimbra, e que não pode deixar de representar um retrato da experiência de vida de Canteiro em Coimbra onde ele, tal como Nobre, estudou. Com efeito, durante o período coimbrão de Nobre (1888-1890), Canteiro empreende no livro um salto temporal de um século até 1988 para, 40 páginas volvidas, regressar ao passado, em 1889. Sai da Torre do Anto (a torre medieval onde Nobre viveu uns dias, que figura na capa ao livro,e que tem hoje o nome do diminutivo de "António") para subir pelas vizinhas escadas do Quebra Costas e, após uma história que se passa na Coimbra moderna, voltar atrás no tempo para o Beco da Carqueja (perto da Sé Velha, onde também viveu José Afonso). O romance faz pois uma viagem no tempo e no espaço, com uma ida e volta ao futuro. A última parte do romance (de 1889 em diante ) refere-se à ida de Nobre para a Sorbonne em Paris, dado o seu falhanço académico em Coimbra, à publicação do seu singular livro, à doença (posterior ao "Só" embora haja neste uma estranha premonição), e uma acelerada peregrinação por vários locais do mundo em busca de cura (França e Suíça, mas o poeta também foi a Inglaterra e aos Estados Unidos, para não falar da sua estância na Madeira) até à morte anunciada. No trecho de Coimbra Canteiro coloca uma história ficcional com outro António que conhece na Biblioteca Joanina uma sua colega, Afrodite (o nome diz tudo) e a tragédia também assoma: em vez da bactéria da tuberculose a fatalidade é o vírus da SIDA. Nobre teve namoradas, a mais conhecida das quais a "Purinha", mas, talvez devido aos eu carácter solitário (ou, se quisermos, ao seu narcisismo) nunca teve uma paixão que lhe enchesse as medidas.
A escrita de Canteiro obedece a um compasso nostálgico aparentado ao ritmo saudoso de "Só". Tal como o "Só" é poesia em prosa, esta é uma prosa poética. Vejamos, como exemplo, o início, que relata o nascimento do poeta (o itálico são versos do "Só"), o nascimento a respeito do qual Fernando Pessoa (nascido em 1888) declarou que "com ele, nascemos todos":
"Rua de Santa Catarina — Porto
IOutros autores têm-se apropriado literariamente da vida curta e trágica do autor do "Só". O caso mais notório é talvez o de Mário Cláudio, autor da peça de teatro "Noites do Anto" (1988), e de um texto inserto em "Triunfos do Amor Português" (2004) sobre a "amizade amorosa" entre António Nobre e Alberto de Oliveira, o "Purinho" (este suposto caso de homossexualidade tem feito correr rios de tinta, mas Canteiro não a explora).
Sonhei como fui nascer (em terça‑feira, um sino ouvia‑se dobrar!); era noite de agosto quando vim ao mundo... espera!, não há chão para este pé em desequilíbrio, como no inverso de cair à água, como se, bruscamente, me sentisse esvair no fundo de um poço, irremediavelmente descendo, a ficar sem fôlego, com o ar à volta a tomar conta de mim, a ocupar as reentrâncias do meu corpo por dentro; todo nu, um frio que me afagava a pele, um vento leve, estranho, e, tomado de um sopro, iniciei um choro... a par com o sino, ouviu‑se um grito!...
II
Vê lá tu, o que é nascer!: um choque, um gemido, um grito... e já está!; disse a parteira."
Canteiro dá-nos um livro breve muito agradável de ler, que para mim teve o mérito de me fazer mergulhar não só na biografia de António Nobre (há uma bela fotobiografia da autoria de Mário Cláudio, na Dom Quixote, 2001) mas também, e acima de tudo, na obra literária do grande poeta. Não ficou só o autor do "Só", pois postumamente o irmão, o professor de Zoologia da Universidade do Porto Augusto Nobre, resgatou e publicou os "Primeiros Versos", 1921, e "Despedidas", 1902. Lendo estes dois livros, percebe-se por que razão ele não os publicou: António Nobre quis ficar só autor de "Só", o livro da sua vida e o livro sobre a sua vida.
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