Minha crónica no Público de hoje:
Não sabemos o que se vai passar
em 2017, mas sabemos o que se passou há 500 anos ou há 100 anos. A 30 de
Outubro festejar-se-ão os cinco séculos da afixação das 95 teses do monge
agostiniano Martinho Lutero na igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha. E a
7 de Novembro comemorar-se-á um século da tomada de poder pelos sovietes, em
Petrogrado, na Rússia. Estou em crer que o primeiro evento foi mais
determinante para o futuro da Europa e do mundo. Respaldo-me em Eduardo
Lourenço, que, numa conferência em Coimbra, afirmou: “A Europa já existiu
quando se chamava a Cristandade, antes do clash
que é porventura o acontecimento mais importante da história europeia, que
foi a Reforma. A Reforma traçou, dividiu a Europa, por dentro, em duas. É um
drama, mas ao mesmo tempo é uma peripécia absolutamente extraordinária da
História do Mundo, porque não há nada mais importante para a definição de uma
entidade, (...) dum povo, duma nação, do que a sua inserção em qualquer coisa
que nós poderemos chamar da ordem da crença”. O bater de asas da borboleta foi,
em 1517, uma reacção contra o pagamento a Roma de indulgências para remissão
dos pecados. Passados três anos, Lutero era excomungado, vendo-se porém
protegido por sete príncipes alemães que assinaram a Confissão de Augsburg. O
vendaval reformista que se seguiu levou à existência hoje de mil milhões de
protestantes no mundo, cerca de 40 por cento da Cristandade. E, mais do que
isso, à emergência de uma nova mundividência. O sociólogo alemão Max Weber
defendeu, num livro tão famoso quanto controverso, a relação entre a ética
protestante e o espírito do capitalismo. Seja qual for a causa, o certo é que a
Europa do Norte se desenvolveu mais rapidamente do que a do Sul e que, nos
nossos dias, o futuro da Europa tem muito que ver com o modo como evoluirá essa
clivagem.
Lutero foi um professor de Teologia
(para o cardeal francês Yves Congar, “um dos maiores génios religiosos de toda
a história, no mesmo plano que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino”) e, em
particular, um devoto tradutor da Bíblia. A Bíblia luterana, que saiu do prelo
em 1534, ajudou a formar o Hochdeutsch.
Frederico Lourenço, na apresentação da sua recente tradução do Novo Testamento a partir do grego, chama
a atenção para o atraso da tradução da Bíblia em português. Consta que o rei D.
Dinis foi o primeiro tradutor de parte do Génesis
para a língua portuguesa. Mas só – pasme-se! - em 1753 se acabou de publicar em
Jacarta a primeira tradução portuguesa integral dos textos sagrados, pela mão
principal de João Ferreira de Almeida, o pastor da Igreja Reformada Holandesa
que, nascido em Mangualde, viveu na Indonésia. Existia, na época, uma
interdição pela Santa Sé da leitura da Bíblia em qualquer língua que não fosse
o latim da Vulgata, língua que poucos dominavam.
Em Portugal houve, como é sabido,
Contra-Reforma sem haver Reforma. A Inquisição, que aqui chegou em 1536, era
principalmente dirigida aos judeus, mas logo desde o início se encarregou de
quebrar quaisquer veleidades aos luteranos. Um dos casos mais famosos foi o de
Damião de Góis, condenado por ter falado, comido e bebido com o “maldito
Martinho Lutero”. Outro foi o do egresso dominicano Fernão de Oliveira, autor
da primeira História de Portugal e da
primeira gramática de português, culpado por defender, inter alia, que o rei da Inglaterra não era herege. Outro ainda
foi o de três lentes do Colégio das Artes de Coimbra - Diogo de Teive, João da
Costa e George Buchanan, este escocês - que foram sentenciados por opiniões heréticas.
Os estrangeiros eram vistos com especial suspeição e as prevaricações
severamente punidas: William Gardiner, mercador inglês estabelecido em Lisboa,
foi queimado vivo a mando do Santo Ofício por um atentado à Eucaristia na
capela real.
Na Alemanha haverá numerosos eventos
sobre Lutero. Um deles, na Casa de Lutero em Wittenberg, será a exposição “95
tesouros – 95 pessoas”, que falará da influência dele em Johann Sebastian Bach,
Thomas Mann, Martin Luther King e até Edward Snowden, o mais moderno dos cismáticos.
Em Roma o papa Francisco celebrará o ecumenismo. Em Lisboa realizar-se-á, em
Novembro, o congresso internacional “Um Construtor de Modernidades: 500 anos
das teses de Lutero.”
Es lebe Luther!
Es lebe Luther!
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