terça-feira, 31 de janeiro de 2017

NAQUELES TEMPOS BÁRBAROS E GÓTICOS

Saído no último número do "Jornal de Letras", é com o deleite de sempre que se reproduz mais um texto mordaz  do ensaísta e crítico literário Eugénio Lisboa sobre, como ele próprio escreve, "aclamados turcos do nosso mercado literário":

Sofro, com frequência, semanalmente, diariamente, horariamente, quando me ponho a ler colunas, livros, ensaios, ficções, testemunhos dos jovens e aclamados turcos do nosso mercado literário. Sinto-me, ai de mim, posto de lado, excluído, arrumado numa prateleira, de cada vez que mergulho naquela algaraviada debitada numa prosa “inovadora”, que ofende o bom senso, a gramática essencial e a mais elementar lógica do discurso. As palavras combinam-se, ali, naquela prosa intemerata e louca, de modo anárquico e perturbante – e deixam-me os olhos e o espírito enviesados. Palavra puxa palavra, na razão directa da falta de senso e na inversa da mais desejável higiene mental. Escreve-se uma prosa “fresquinha” e “novinha”, em que nada faz muito sentido, mas em que tudo soa muito a uma “revolução de linguagem” (sic). Aquela prosa não dá para pensar, para reflectir, para exprimir, dá apenas para parecer que está ali para prospectar territórios “novos”, mesmo à custa de uma total falta de senso e de uma pungente ausência de sentido de ridículo.

O grande escritor americano James Baldwin observou que “a função radical da linguagem é a de controlar o universo, na medida em que o descreve.” Descrever com acuidade o universo exige rigor, honestidade mental e um cuidado particular com a manipulação das palavras. Não é com combinações arbitrárias de palavras, com aproximações “novinhas” entre aquelas que mutuamente se não desejam, que se poderá descrever adequadamente o universo, quanto mais controlá-lo.

Leio, diariamente – e disso sofro – afirmações tontas, debitadas em ar de grande regozijo e descoberta. Observava Cervantes que uma observação tonta pode ser feita tanto em latim como em espanhol. Eu acrescentaria que o português também se presta maravilhosamente a acolher o dislate. Fazer isto à linguagem, agredi-la, levianamente, desta maneira, é coisa mui piadosa de ver. “Talvez que, de todas as criações do homem, a linguagem seja a mais assombrosa”, disse esse grande biógrafo que se chamou Lytton Strachey. Talvez, por isso mesmo, essa assombrosa criação devesse estar cuidadosamente preservada de tanta irresponsável e quotidiana agressão. Tal como Churchill sentia, até aos ossos, a estrutura essencial da frase inglesa mais comum, eu sinto, também, até aos meus ossos lusitanos, a estrutura essencial da frase lusa. Por isso me confrange este mergulho diário nesta prosa contentinha e magnificamente festejada – e galardoada! – com que os nossos jovens turcos inundam a praça literária. Confrange-me até porque seria de supor que um mínimo de bom senso lexical e gramatical presidisse, geneticamente, à empresa dos perpetradores de prosa. Dizia o grande linguista Noam Chomsky que “cada pessoa tem, programada nos seus genes, a faculdade chamada gramática universal.” Seria como se os nossos próprios genes nos impedissem de derraparmos em relação a um discurso claro e límpido.  “Fazer sentido” estaria por assim dizer inscrito no nosso código genético. Como se enganava o grande linguista! Derrapar, vagabundear, juntar, à toa, elementos lexicais que mutuamente se não toleram – parece ser a grande vocação dos geniais inovadores que atordoam a nossa praça literária.

Meditando sobre tudo isto, Anatole France, que, no seu tempo fora atingido por um sofrimento não muito diferente do meu, observava melancolicamente: “Era naqueles tempos bárbaros e góticos, em que as palavras tinham um significado; naqueles dias, os escritores exprimiam pensamentos.” Tempos remotos, bárbaros e góticos, em que o pensamento era claro e as palavras se não manipulavam de modo leviano ou mesmo arbitrário…


Ponho-me a ler estes textinhos “inovadores” e sinto a maior dificuldade em navegar no meio daquela frondosa “floresta de enganos”. Tudo me perturba, me intriga, me coloca fora de qualquer realidade palpável. A sintaxe, a morfologia, o bom senso – retraem-se, afrouxam, fazem caretas, dissolvem-se. Sinto-me, não no meio de um discurso clarificador e enriquecedor, mas, sim, no centro de um ruído ensurdecedor e altamente criador de vertigem e de confusão. “As palavras, como é sabido”, observava Joseph Conrad, “são grandes inimigos da realidade.” Estas palavras, manuseadas à balda, pelos jovens turcos bafejados pela glória, bloqueiam qualquer minguado acesso à realidade. Fazem um ruído novo, inesperado, intrigante, mas é um ruído que veda, obstrui a entrada do mais pequeno raio de luz. Uma análise combinatória focada nestes textos enviesados lega-nos um tecido estranho, feito de arranjos de palavras contra-natura, de acasalamentos improváveis e de um guião sintáctico arrevesado. Busca-se, não a finura e a luz, mas, antes, a obscuridade sonora e espessa. Tropeça-se, a cada passo, no contra-senso, na metáfora mal amanhada, na adjectivação forçada ou absurda, na dedução claudicante… Em vez da pureza gramatical, o pântano linguístico, que nos enlameia a alma e conspurca o espírito.

Esta prosa imatura feita de palavras que não apanharam sol – estou a lembrar-me do saudoso João de Araújo Correia – perturba-me de um modo quase físico: lê-se mal, ouve-se mal, respira-se mal. Causa dor física porque entope os pulmões e ofende a respiração. Feita de palavras míopes que mal enxergam outras cuja companhia melhor lhes convenha, vive de associações enviesadas e trôpegas que entulham o texto de neoplasias incómodas e dolorosas. Alheia ao discurso límpido concebido para gente chã, a prosa dos jovens turcos desconhece a claridade do amanhecer, saltando directamente de uma noite para outra noite.

O velho Samuel Johnson, que Boswell laboriosamente biografou, para a posteridade, observou um dia que tinha trabalhado “para refinar a linguagem até uma pureza gramatical e para a clarear de barbarismos coloquiais, de idiomas licenciosos e de combinações irregulares.” É este trabalho de refinaria da linguagem, para a libertar de “combinações irregulares”, que proponho aos jovens perpetradores de atropelos gramaticais que visam inculcar como inovações aurorais, mas que não passam de tumores incómodos e opacos. As palavras dão para tudo: para fazer luz ou para fazer noite. Tudo depende de quem as usa e de como as usa. Ou nos elevam acima dos brutos ou nos põem ao nível deles: escolha quem pode.
Eugénio Lisboa

2 comentários:

Onésimo T. Almeida disse...

Eu bato palmas, meu caro Eugénio, muito embora não sirva de nada.
Um abraço do
Onésimo

Anónimo disse...

Logo de manhã, alimento.
Professor, que bom gosto!

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...