Alberto Trovão do Rosário, depois de ter estudado Física e Química, licenciou-se pelo Instituto Nacional de Educação Física, tendo-se doutorado pela Universidade Técnica de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana). Além de um percurso universitário que prossegue hoje (dá aulas num Politécnico privado do Norte), teve uma carreira de dirigente na função pública: foi director-geral do FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, o organismo que, após a Revolução de Abril, ficou encarregue do apoio a associações de jovens) e foi assessor de dois ministros da Educação. É autor de dois livros sobre questões do Desporto publicados pelo Instituto Piaget: “O Desporto em Portugal” e “O Sentido e Acção" (com outros autores, como Manuel Sérgio, um filósofo do desporto). Foi grão-mestre da maçonaria entre 2004 e 2007.
Tendo sido recentemente convidado dele e dos seus companheiros para participar numa tertúlia num hotel de Lisboa, obsequiou-me com um seu livro da sua autoria que acabo de ler: “Inventário do meu Mundo” (Edita-me, 2010). Com uma bela capa que junta livros e árvores (lembrando-nos que os livros são feitos de árvores), a obra reúne um conjunto de pequenos textos, em estilo diarístico (mas sem datas), em que o autor reflecte sobre o que viu, ouviu ou leu. “Notas soltas”, como ele diz de início, nas quais “foge das certezas.” Descreve assim o âmbito da sua escrita:
“Pedi às minhas asas que me levem, para onde se canta a poesia, para onde se murmura a filosofia, para onde a ciência encanta e não desancanta, porque é aí que está o maná.”
Achei muito curiosa sua discussão sobre afirmações de cientistas, geralmente a propósito de obras de divulgação científica: Einstein, Bohr, Prigogine, Hawking, Dawkins, Lovelock, Lazlo, Pelt, Thom e Damásio mostrando que o encantamento da ciência chega por esse tipo de livros. Mas ele permeia essas referências com outras enquadradas na filosofia, arte e religião: Pascal, Popper, Heidegger, Ortega y Gasset, Mozart, Beethoven, Strauss, Picasso, Verne (muito sábia a sua releitura de “A Ilha Misteriosa”, que tinha lido em adolescente), Shakespeare, Kerouac, Pascoaes, Pessoa, Buda, Jesus, S. Paulo.
Encheu-me as medidas um dos textos, sobre um velho laboratório de Química, que mostra a qualidade da prosa do autor (fez-me lembrar Primo Levi):
“O laboratório de Química de uma Faculdade que frequentei era, e julgo que ainda o é, não só um local de trabalho como um belo museu. Construído e equipado num período em que algumas pobrezas eram escondidas e eram ostentados simulacros de riquezas, tudo nele era admirável, em especial o anfiteatro adjacente. Os professores, entre os quais exibia a sua nobreza, a sua cultura e os seus gestos estudados, o director da Faculdade, figura que parecia estar naquele local desde o século XVIII, eram, quase todos, representantes do passado e poucos horizontes abriam. Mas o que sempre me desafiou para conjecturas e para toscos passos no labirintos das congeminações foram os frascos com sais, bases e ácidos. Parecia que me olhavam da eternidade perguntando: - E tu, quem dizes que eu sou? Esta pergunta, que não tinha ver com o nome de baptismo de cada reagente, também nada tinha a ver com a leitura, também superficial, da composição das moléculas que caracterizavam cada um. Eu sentia a pergunta de um modo diferente, que tentava abarcar os solutos todos. Parecia-me que cada um era uma pedra da parede de um grande e misterioso tempo. O que me importava, mais do que a quantidade de cada um, era tentar perceber como é que cada composto se integrava no grande, no imenso conjunto de que fazia parte. Ao olhar para o ácido clorídrico associava-o à sua inevitável vocação para criar cloretos, roubando, se necessário, uns átomos aos vizinhos do lado, que, por sua vez, em função das suas valências e vocações e associava a umas outras moléculas, numa marcha onde não era consentido o marcar passo. Já o sulfídrico tinha de, fatalmente, ser pai de sulfuretos ou como o nítrico de ser criador de nitratos.
E, arrumados nas prateleiras, em fileiras cegas e mudas, os frascos, quais actores num proscénio, esperavam a deixa para entrarem em cena, sabendo exactamente cada um qual o papel que os reagentes que guardavam iriam desempenhar. Inexoravelmente.
E é este, para mim, o grande contributo da Química para alimentar as tais conjecturas: pensemos na acção de cada electrão, pensemos na forma como se casam os átomos e moléculas, pensemos nas infinitas combinações da Quimica Orgâmica, no modo como se formam células e tecidos. Como todas as formas de vida dependem de todas as formas de vida, respiremos um pouco e perceberemos porque é q ue os reagentes encarcerados na formatura dos francos nos olham desde a eternidade com olhar de sereno convite à reflexão.”
Pelo meio surgem uns poemas de sua autoria. Escolho um, de tema meteorológico:
“Choveu hoje...
Se um dos pingos de água
Ao contrário dos outros,
Subisse e trepasse.
Até à nuvem donde veio
Ia com ele.
Para voltar
À nuvem donde vim.”
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