segunda-feira, 11 de abril de 2016

AUTOBIOGRAFIA

Texto recebido do Professor Galopim de Carvalho.

Passou este ano, no dia 26 de Janeiro, o centenário do nascimento de Virgílio Ferreira, e no passado dia 1 de Março completaram-se 20 anos sobre o seu falecimento. 


 AUTOBIOGRAFIA
Vejo o meu pai, no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses depois o corredor da casa da minha avó amontoa-se de gente, na despedida de minha mãe e da minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de dentro da charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. Dessa vez houve choro pela noite adiante - tia Quina contava, conta ainda. Mas não conta de choro algum dos meus dois irmãos que ficavam também. Deve-me ter vibrado pela vida fora esse choro que não lembro. É dos livros, suponho. Depois a infância recomeçou. Três irmãos, duas tias e avó maternas, depois a vida recomeçou. Mas toda essa infância me parece atravessar apenas um longo inverno. É um inverno soturno de chuvas e de vento, de neves na montanha, de histórias de terror, contadas à luz da candeia no negrume da cozinha, assombrada de tempestade. Até que um dia um tio de minha mãe, que era padre na aldeia, se pôs o problema de eu não ser talvez estúpido. E imediatamente se empolgou para me consagrar ao Altíssimo. E para me ir desbravando a alma, juntamente com a doutrina, atacou-me a memória com o latinório todo da missa. Aprendi-o sem falhas, ia eu nos seis anos. E quando aos sete o fui ver esticado na cama, a face toda negra, e me obrigaram a beijar-lhe a mão morta, já tinha o destino talhado para o Senhor. Minhas tias apoderaram-se logo de mim, negligenciando um pouco os meus irmãos, e sufocaram-me de religião. Na instrução primária cumpri. Deus mostrava à evidência que me chamava ao seu serviço. Era forte em contas, mais atrapalhado em História, de qualquer modo, os desígnios de Deus eram evidentes. E assim, para se cumprir a sua vontade, parti. Ficava à distância de um dia de comboio, o Seminário. Saio na estação ao anoitecer, há uma multidão de seminaristas à minha volta, todos vestidos de preto. Estou entre eles, não conheço ninguém. Avançamos pelo escuro estrada fora, no tropear confuso de uma enorme massa negra. O Seminário espera-nos numa curva da estrada. É um casarão enorme, olho-o do fundo do meu pavor. Há outono à minha volta, respiro-o agora em todo esse passado morto, nos castanheiros a desfolharem-se na cerca, no espaço dos salões, nos longos corredores ermos, nos ângulos cruzados pelos espetros perfeitos. Mas seis anos depois, levantado de heroísmo, saí. Fiz o liceu, entrei na Universidade. Mas não o fiz assim em três palavras como o faço aqui. Meu irmão corpo. Como foi difícil acomodarmo-nos um ao outro. A vida que me coube não a pude utilizar toda. Numa fração dela acumulei assim aquilo com que se realiza - o sonho, o trabalho, a alegria. 
E eis que se me levantam os sete anos de Coimbra. Sombrios, longos, penosos. Mas o que acede desse tempo à evocação tem apenas o halo de uma balada. Ruas da Alta, e a Torre, e o plácido rio do alto da Universidade, e os mestres que eu julgava um prodígio da Natureza, quando cheguei à cidade, e fiquei a julgar também, a vários deles, quando saí, mas com outro sinal, e a praxe estúpida, e os namoros estúpidos, e a descoberta, enfim, da literatura, que só então descobri, embora trabalhasse há muito o verso com obstinação, e as tertúlias, as rixas, o próprio futebol, as próprias desgraças físicas - tudo me ressoa agora a uma toada de legenda. Da festa juvenil, como da festa literária eu só conhecia as margens do rumor que transbordava da alegria dos outros. Isso basta, porém, a que a legenda se me levante e o seu eco me ondeie ao espaço da evocação. Assim Coimbra, só no ressoar do seu nome tem já um timbre de guitarra. Música de miséria, não é nela que eu a ouço, mas no passado que a transcende e é da memória inatingível, da memória absoluta. Coimbra da saudade difícil, Coimbra de sempre e de nunca. Comigo a levei, longo tempo me acompanhou, presente, obsessiva. Mas havia tanta coisa ainda à minha espera. Faro do ar marinho, da laguna das águas mortas, Bragança das invernias, Évora, Lisboa. Professor sou-o por fatalidade. Mas alguma coisa se me impõe na avidez dos alunos que me escutam, na necessidade de responder à sua descoberta do Mundo - e assim me invento o professor que não sou, e eles imaginam em verdade o que é em mim só ficção. Mas dos centros de irradiação da minha atividade, apenas Évora transbordou de emoção para a lembrança. E como a Coimbra, é de novo a música, agora o coral dos camponeses, que a levanta ao espaço da minha comoção. Ouço-o ainda agora, a esse coro de amargura, raiado à infinidade da planície. Évora do silêncio com sinos nas manhãs de domingo, estradas abandonadas à vertigem da distância, ó cidade irreal, cidade única, memória perdida de mim. Sou do Alentejo como da serra onde nasci, a mesma voz de uma e outra ressoa em mim a espaço, a angústia e solidão. 
E a minha biografia deve ter findado aqui. Lisboa é um sítio onde se está, não um lugar onde se vive. Mesmo que se lá viva há 18 anos como eu. Eu o disse, aliás, a alguém, na iminência de vir: quando for para Lisboa, levo a província comigo e instalo-me nela. E assim se fez. Os livros que aqui escrevi são afinal da província donde sou. Terrorismo do trânsito, das relações pessoais, da luta em febre pela glória por que se luta ou do ódio surdo pela que calhou aos outros, terrorismo das distâncias, das relações humanas ao telefone, das cartas que nos escrevemos para de uma rua a outra ao pé, da cultura tratada a uísque nos salões do mundanismo, da individualidade perdida, da vida massificada. Vejo-me numa enfermaria do hospital, acordando estranhamente de não sei que tempo de inconsciência, com vários médicos conversando entre si e sobre mim. Pergunto de que se trata, porque estou ali. «Foste atropelado» - diz-me o meu filho, que é um dos médicos. Tenho fratura do crânio, várias contusões pelo corpo. Lisboa, selvagem, cidade bonita na claridade dos prédios, no rio das descobertas, no aéreo das colinas, meu veneno e minha sedução. Fui atropelado. Mas é talvez justo que o fosse. Porque eu não sou daqui. 
maio, 1977
Fonte: Godinho, Helder e Ferreira, Serafim (organização), Vergílio Ferreira - fotobiografia, Bertrand Editora, outubro de 1993.

1 comentário:

Jaime A. disse...

Sinto-me tão próximo deste professor "por fatalidade", com (alguns) alunos imaginando em verdade a minha própria ficção.
Embarco, pois, num caminho em que talvez me reveja; no fundo quantos mais caminhos conheço?

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