quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ciência em Portugal: ASCENSÃO E QUEDA

Meu artigo no número mais recente do Boletim de Ensino Superior da FENROF:

O nosso sistema de ciência e tecnologia desenvolveu-se extraordinariamente nas décadas de 1990 e 2000. O Ministério da Educação e Ciência (MEC) foi criado em 1995 por António Guterres, tendo José Mariano Gago como titular. Em 2005, Mariano Gago voltou, tendo o Ministério passado a ser da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Em 2011, no governo de Pedro Passos Coelho, Nuno Crato assumiu a pasta de Educação e Ciência: passados quatro anos, é hoje consensual que tanto a ciência como o ensino superior estão piores. É justo sublinhar o papel que Gago desempenhou no desenvolvimento da ciência nacional. Convicto de que a ciência era uma mola para o desenvolvimento, ele colocou a ciência na agenda política. E, de facto, nessa área, o país conheceu enorme transformação. O braço armado do ministério foi a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), fundada em 1996. No mesmo ano nasceu a Agência Ciência Viva para a Cultura Científica e Tecnológica, por Gago considerar a cultura científico-tecnológica essencial para o florescimento da ciência. Contrariando a política anterior, Crato é o responsável por um óbvio retrocesso quer na ciência quer na cultura científica.

Para verificar como o sistema de ciência cresceu, basta consultar a PORDATA, base de dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos. O investimento em investigação e desenvolvimento subiu de 0,4% para 1,5% do PIB desde 1986, ano da entrada de Portugal na União Europeia (UE), para 1,5% em 2011. Dois bons indicadores dos resultados desse investimento são o número anual de novos doutorados formados e o número de novas publicações científicas. Em 1996 obtiveram o diploma de doutor 216 pessoas, mas em 2011 já foram 1845. O número de publicações científicas em revistas indexadas, que era de 664, passou para 15233 em 2011. Se o investimento subiu quase quatro vezes, o número de novos doutores subiu nove vezes e o número de publicações subiu 23 vezes. Poucas coisas subiram tanto em Portugal em tão pouco tempo! 

Em 2011 parou o crescimento no investimento. A percentagem do PIB investida em ciência, depois de ter atingido o cume em 2009 com 1,6%, tem descido nos últimos anos, com a agravante de o PIB português estar comparável ao que era no final do século passado. O impulso vindo de trás fará crescer no imediato tanto o número de pessoas formadas ao mais alto nível como o número de artigos científicos, mas receia-se que, a médio prazo, à enorme ascensão do passado recente se siga uma queda nos resultados. O número de doutorados continua a crescer em bom ritmo, graças ao esforço dos próprios e das famílias, mas o crescimento do número de artigos já abrandou significativamente.

 Por que razão é preciso continuar o crescimento do sistema científico nacional? Pela simples razão de que, apesar de termos dado um grande salto no ranking europeu, ainda não estamos perto da média da União Europeia (EU). Vejamos, do lado do input: em média, a UE investiu, em 2012, 2,1% do PIB em ciência e tecnologia, falando-se de uma meta de 3%. E, do lado do output, o número médio de doutoramentos na UE foi, em 2011 de 23 por cem mil habitantes, ao passo que em Portugal foi de apenas 15 por cem mil habitantes. Por sua vez, o número de artigos por cem mil habitantes na UE é hoje de mais de 250 por cem mil habitantes, bem acima do nosso valor. 

O que se passou nos últimos quatro anos? Para Crato a ciência não foi uma prioridade política. Mandou fazer cortes e mais cortes, esquecendo que a ciência representava o meio por excelência de ganhar o futuro. Mas foi bastante pior do que o desinvestimento no sistema científico. Os recursos disponíveis deviam ter sido atribuídos de uma maneira aberta e racional. Mas, com uma tenebrosa gestão na FCT, passaram a ser atribuídos de um modo secreto e irracional, completamente ao revés do espírito científico. Em vez de uma política participada, houve um exercício autocrático de poder. Em vez de uma política inteligente houve uma lassidão mental. 

Um exemplo do descalabro 

A pseudo-avaliação das unidades científicas foi um dos exemplos mais evidentes do descalabro. A FCT, com o apoio do ministro, encomendou à European Science Foundation (ESF) uma avaliação das unidades científicas nacionais que, soube-se depois, continha uma cláusula escondida: Metade das unidades devia ser excluída logo na 1.ª fase do processo. Quando houve a percepção de que os resultados catastróficos dessa “avaliação” provinham dessa regra nunca anunciada e nunca justificada, a FCT tentou iludir a realidade, mentindo a esse respeito. Não se tratou apenas da eliminação sumária de metade das unidades. Acontece que a metade escolhida não era formada pelos melhores centros em várias áreas (bastava consultar a produção científica). Acontece que os peritos da ESF eram em número insuficiente e, em muitos casos, pouco qualificados. Não existiu, em muitos casos, uma avaliação por especialistas. Muitos pareceres não faziam qualquer sentido. Tal resultou em parte do facto de, na 1.ª fase, as unidades nem sequer terem sido visitadas, como manda a lei. O Conselho de Reitores (CRUP), reconhecendo a validade de muitas reclamações, afirmou que o processo era um “falhanço pleno”. 

Na 2.ª fase, a arbitrariedade continuou, com atropelo das regras estabelecidas pela FCT e visitas feitas, nalguns casos, por não especialistas. Em suma, a “avaliação” da ESF não teve nunca a necessária qualidade. Em verdade se diga que os financiamentos também não seguiram a avaliação, tendo sido feitos para os centros apurados na 2.ª fase com base nos pedidos que eles tinham efectuado. Não admira que os protestos tenham de novo chovido. Das 178 unidades da 2.ª fase (eram 322 à partida) 123 protestaram. Tal como na 1.ª fase, a reclamações da 2.ª fase permaneceram sem resposta atempada e adequada. Só para dar um exemplo do despautério governamental: numa altura de austeridade do orçamento de Estado, a FCT decidiu atribuir chorudos financiamentos públicos a fundações privadas. Lá fora, as fundações privadas ajudam o Estado, em Portugal é o Estado que ajuda as fundações privadas. 

A “avaliação” da FCT 

Em 7 de Abril, demitiu-se o presidente da FCT, confrontado não só com os continuados protestos perante o desconchavo, mas também com a sua ocupação do cargo a tempo parcial. A manifesta falta de qualidade da gestão da FCT poderia ter a ver com a falta de tempo do seu presidente, que continuava professor no Imperial College de Londres. Foi então nomeada uma presidente interina, que ainda não reconheceu os erros que prejudicaram gravemente o sistema científico. A “avaliação” da FCT caucionada por Crato lançou o descrédito sobre a FCT e o Ministério, não podendo ser reparada com remendos. Não há, de facto, nenhuma maneira de endireitar a sombra de uma vara torta. Resumindo: é preciso agora restaurar a confiança na FCT, como pilar do sistema científico. É preciso que a nova presidente trabalhe a tempo inteiro para reparar os estragos enormes já feitos. Por outro lado, é preciso restaurar a credibilidade do Ministério da Educação e Ciência. Nuno Crato, ao manter durante demasiado tempo o ex-presidente da FCT, viu a sua reputação manchada. De início, os cientistas acreditavam no ministro, hoje quase ninguém acredita. Sentem que é um político como os outros, um entre tantos outros que não realizam as expectativas que criam. Neste momento é claro para a maioria dos investigadores que não existe, como já existiu no passado, um representante da ciência à mesa do Conselho de Ministros.

Estimular a emigração de jovens…

A mesma FCT não errou apenas ao tentar eliminar metade das unidades de investigação Errou também ao efectuar colossais cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. O crescimento da ciência foi feito com base no crescimento dos bolseiros e, com a política de recuo nessa área, a produtividade científica vai ser afectada. A FCT e o ministro podiam ter pedido desculpa, reconhecendo a falha. Mas não, ao defender o indefensável, o que fizeram na prática foi estimular a emigração de jovens altamente qualificados. 

Ao mais alto nível – foi o próprio primeiro-ministro a fazê-lo – o governo lançou um anátema sobre os cientistas, dizendo que o investimento feito na ciência não tinha dado frutos. Está profundamente equivocado e o ministro da Educação e Ciência podia ter esclarecido o primeiro-ministro. A ciência em Portugal tem dado frutos e vai continuar a dar. Existe, é certo, um problema de emprego científico nas empresas, mas essa questão não foi ajudada pela “avaliação”, que não valorizou a contribuição que muitas unidades têm dado nessa área, designadamente unidades ligadas a politécnicos. A preocupação mais visível do governo consistiu em favorecer um sector, a biomedicina, no qual de facto não são patentes resultados na indústria. Mas nessa como noutras áreas há que esperar, pois a aposta na ciência é muito recente em Portugal.

Por último: a ciência só poderá ser sustentada se a sociedade tiver consciência da relevância da actividade dos cientistas, isto é, se houver suficiente cultura científica. As sociedades modernas baseiam-se na ciência, embora nem sempre haja percepção pública dessa íntima ligação. Há que continuar os esforços feitos até agora em favor da cultura científica. A ciência pode parecer cara, mas a ignorância é-o muito mais.

3 comentários:

Ildefonso Dias disse...

“A Universidade não pode justificar a sua existência, a Industria não pode legitimar os seus lucros, senão na medida em que, fatores essenciais da economia da Nação, se tornem elementos ativos e conscientes da elevação do nível de vida do povo português.” [O valor social da Investigação Cientifica – Por Ruy Luis Gomes]


Este é o drama que devia pesar sobre a consciência do professor Carlos Fíolhais quando insiste em “salvar a pele” de uma governação moribunda do Partido Socialista invocando a ciência e o mérito de Mariano Gago. A riqueza de uns, poucos, e a miséria de muitos portugueses, diz tudo. São primeiramente as palavras de Ruy Luis Gomes que a sociedade deve tomar consciência e com isso impedir quem se torne obstáculo à sua concretização. Era isso que o professor Fíolhais aqui deveria pedir em nome da ciência.

Anónimo disse...

A retórica do costume.
Se não tivéssemos investido 1,6% do PIB em ciência... o país tinha ido á falência e teríamos sido obrigados pedir auxilio á Troika !


Realço o ultimo paragrafo em especial a última frase:

Por último: a ciência só poderá ser sustentada se a sociedade tiver consciência da relevância da actividade dos cientistas, isto é, se houver suficiente cultura científica. As sociedades modernas baseiam-se na ciência, embora nem sempre haja percepção pública dessa íntima ligação. Há que continuar os esforços feitos até agora em favor da cultura científica. A ciência pode parecer cara, mas a ignorância é-o muito mais.

Em vez do o triste apelo á culpabilização do pagador de impostos para tudo e mais alguma coisa , os cientistas portugueses assumissem a sua "culpa", trabalhassem no sentido de com menos recursos fazerem melhor isso seria digno de pessoas que constituem a "massa cinzenta" do País.
Os n/ cientistas ainda não chegaram á concussão que somos um pais de recursos limitados. E estaria também nas v/ mãos a saída desta situação.
Mas os cientistas nacionais estão mais preocupados com o seu umbigo (com honrosas excepções ) . Chegamos ao cumulo dos reitores fazerem greve. Grandes elites tem o nosso país que recorrem á greve para que não lhe cortem o subsidio...

Tenho para mim que este corte de "subsídios" vai acabar com muita da investigação da treta que se inventa por aí.
Os bons cientistas que são apanhados na enxurrada, vão conseguir com a sua inteligência "dar a volta", e provavelmente ao deixarem um ambiente pernicioso , contribuirão com certeza para a recuperação do País.


cumps

Rui SIlva

Anónimo disse...

O senhor parece estar muito seguro que a maioria da investigação em Portugal é "a brincar", ou, como você diz, "da treta". O senhor sabe dar exemplos disso? Sabe explicar como essas investigações poderiam ser melhor orientadas? Senão, dizer isso ou estar calado vale exactamente o mesmo...

Você só pode estar a gozar com essa da greve... Então as pessoas dos transportes públicos podem fazer greves que impedem pessoas de ir trabalhar como normalmente, as pessoas das cantinas podem fazer greves que impedem pessoas de comer como normalmente, e os investigadores não têm direito a fazer greve? Que fizeram eles de mal para serem a única classe que aparentemente não tem direito À greve, na sua opinião?

Quanto ao "fazer mais com menos", você sabe tão bem como qualquer outro que é muito mais fácil dito que feito. Por muito boa vontade que exista, sem equipamento adequado, e sem equipas adequadas, o bom trabalho torna-se impossível.

Só espero que perceba este ponto de vista, porque o seu comentário é de facto totalmente desviado da realidade.

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