Meu artigo no número mais recente do Boletim de Ensino Superior da FENROF:
O nosso sistema de ciência e tecnologia desenvolveu-se
extraordinariamente nas décadas de 1990 e 2000. O Ministério da Educação e
Ciência (MEC) foi criado em 1995 por António Guterres, tendo José Mariano Gago
como titular. Em 2005, Mariano Gago voltou, tendo o Ministério passado a ser da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Em 2011, no governo de Pedro Passos
Coelho, Nuno Crato assumiu a pasta de Educação e Ciência: passados quatro anos, é hoje consensual que tanto a ciência como o ensino superior estão piores. É justo
sublinhar o papel que Gago desempenhou no desenvolvimento da ciência nacional.
Convicto de que a ciência era uma mola para o desenvolvimento, ele colocou a
ciência na agenda política. E, de facto, nessa área, o país conheceu enorme
transformação. O braço armado do ministério foi a Fundação para a Ciência e
Tecnologia (FCT), fundada em 1996. No mesmo ano nasceu a Agência Ciência Viva
para a Cultura Científica e Tecnológica, por Gago considerar a cultura
científico-tecnológica essencial para o florescimento da ciência. Contrariando
a política anterior, Crato é o responsável por um óbvio retrocesso quer na
ciência quer na cultura científica.
Para verificar como o sistema de ciência
cresceu, basta consultar a PORDATA, base de dados da Fundação Francisco Manuel
dos Santos. O investimento em investigação e desenvolvimento subiu de 0,4% para
1,5% do PIB desde 1986, ano da entrada de Portugal na União Europeia (UE), para
1,5% em 2011. Dois bons indicadores dos resultados desse investimento são o
número anual de novos doutorados formados e o número de novas publicações
científicas. Em 1996 obtiveram o diploma de doutor 216 pessoas, mas em 2011 já
foram 1845. O número de publicações científicas em revistas indexadas, que era
de 664, passou para 15233 em 2011. Se o investimento subiu quase quatro vezes,
o número de novos doutores subiu nove vezes e o número de publicações subiu 23
vezes. Poucas coisas subiram tanto em Portugal em tão pouco tempo!
Em 2011
parou o crescimento no investimento. A percentagem do PIB investida em ciência,
depois de ter atingido o cume em 2009 com 1,6%, tem descido nos últimos anos,
com a agravante de o PIB português estar comparável ao que era no final do
século passado. O impulso vindo de trás fará crescer no imediato tanto o número
de pessoas formadas ao mais alto nível como o número de artigos científicos,
mas receia-se que, a médio prazo, à enorme ascensão do passado recente se siga
uma queda nos resultados. O número de doutorados continua a crescer em bom
ritmo, graças ao esforço dos próprios e das famílias, mas o crescimento do
número de artigos já abrandou significativamente.
Por que razão é preciso
continuar o crescimento do sistema científico nacional? Pela simples razão de
que, apesar de termos dado um grande salto no ranking europeu, ainda não
estamos perto da média da União Europeia (EU). Vejamos, do lado do input: em
média, a UE investiu, em 2012, 2,1% do PIB em ciência e tecnologia, falando-se
de uma meta de 3%. E, do lado do output, o número médio de doutoramentos na UE
foi, em 2011 de 23 por cem mil habitantes, ao passo que em Portugal foi de
apenas 15 por cem mil habitantes. Por sua vez, o número de artigos por cem mil
habitantes na UE é hoje de mais de 250 por cem mil habitantes, bem acima do
nosso valor.
O que se passou nos últimos quatro anos? Para Crato a ciência não
foi uma prioridade política. Mandou fazer cortes e mais cortes, esquecendo que
a ciência representava o meio por excelência de ganhar o futuro. Mas foi
bastante pior do que o desinvestimento no sistema científico. Os recursos
disponíveis deviam ter sido atribuídos de uma maneira aberta e racional. Mas,
com uma tenebrosa gestão na FCT, passaram a ser atribuídos de um modo secreto e
irracional, completamente ao revés do espírito científico. Em vez de uma política
participada, houve um exercício autocrático de poder. Em vez de uma política
inteligente houve uma lassidão mental.
Um exemplo do descalabro
A pseudo-avaliação
das unidades científicas foi um dos exemplos mais evidentes do descalabro. A
FCT, com o apoio do ministro, encomendou à European Science Foundation (ESF)
uma avaliação das unidades científicas nacionais que, soube-se depois, continha
uma cláusula escondida: Metade das unidades devia ser excluída logo na 1.ª fase
do processo. Quando houve a percepção de que os resultados catastróficos dessa
“avaliação” provinham dessa regra nunca anunciada e nunca justificada, a FCT
tentou iludir a realidade, mentindo a esse respeito. Não se tratou apenas da
eliminação sumária de metade das unidades. Acontece que a metade escolhida não
era formada pelos melhores centros em várias áreas (bastava consultar a
produção científica). Acontece que os peritos da ESF eram em número
insuficiente e, em muitos casos, pouco qualificados. Não existiu, em muitos
casos, uma avaliação por especialistas. Muitos pareceres não faziam qualquer
sentido. Tal resultou em parte do facto de, na 1.ª fase, as unidades nem sequer
terem sido visitadas, como manda a lei. O Conselho de Reitores (CRUP),
reconhecendo a validade de muitas reclamações, afirmou que o processo era um
“falhanço pleno”.
Na 2.ª fase, a arbitrariedade continuou, com atropelo das
regras estabelecidas pela FCT e visitas feitas, nalguns casos, por não
especialistas. Em suma, a “avaliação” da ESF não teve nunca a necessária
qualidade. Em verdade se diga que os financiamentos também não seguiram a
avaliação, tendo sido feitos para os centros apurados na 2.ª fase com base nos
pedidos que eles tinham efectuado. Não admira que os protestos tenham de novo
chovido. Das 178 unidades da 2.ª fase (eram 322 à partida) 123 protestaram. Tal
como na 1.ª fase, a reclamações da 2.ª fase permaneceram sem resposta atempada
e adequada. Só para dar um exemplo do despautério governamental: numa altura de
austeridade do orçamento de Estado, a FCT decidiu atribuir chorudos
financiamentos públicos a fundações privadas. Lá fora, as fundações privadas
ajudam o Estado, em Portugal é o Estado que ajuda as fundações privadas.
A
“avaliação” da FCT
Em 7 de Abril, demitiu-se o presidente da FCT, confrontado
não só com os continuados protestos perante o desconchavo, mas também com a sua
ocupação do cargo a tempo parcial. A manifesta falta de qualidade da gestão da
FCT poderia ter a ver com a falta de tempo do seu presidente, que continuava
professor no Imperial College de Londres. Foi então nomeada uma presidente
interina, que ainda não reconheceu os erros que prejudicaram gravemente o
sistema científico. A “avaliação” da FCT caucionada por Crato lançou o
descrédito sobre a FCT e o Ministério, não podendo ser reparada com remendos.
Não há, de facto, nenhuma maneira de endireitar a sombra de uma vara torta. Resumindo: é preciso agora restaurar a confiança
na FCT, como pilar do sistema científico. É preciso que a nova presidente
trabalhe a tempo inteiro para reparar os estragos enormes já feitos. Por outro
lado, é preciso restaurar a credibilidade do Ministério da Educação e Ciência.
Nuno Crato, ao manter durante demasiado tempo o ex-presidente da FCT, viu a sua
reputação manchada. De início, os cientistas acreditavam no ministro, hoje
quase ninguém acredita. Sentem que é um político como os outros, um entre
tantos outros que não realizam as expectativas que criam. Neste momento é claro
para a maioria dos investigadores que não existe, como já existiu no passado,
um representante da ciência à mesa do Conselho de Ministros.
Estimular a
emigração de jovens…
A mesma FCT não errou apenas ao tentar eliminar metade das
unidades de investigação Errou também ao efectuar colossais cortes nas bolsas
de doutoramento e pós-doutoramento. O crescimento da ciência foi feito com base
no crescimento dos bolseiros e, com a política de recuo nessa área, a
produtividade científica vai ser afectada. A FCT e o ministro podiam ter pedido
desculpa, reconhecendo a falha. Mas não, ao defender o indefensável, o que
fizeram na prática foi estimular a emigração de jovens altamente qualificados.
Ao mais alto nível – foi o próprio primeiro-ministro a fazê-lo – o governo
lançou um anátema sobre os cientistas, dizendo que o investimento feito na
ciência não tinha dado frutos. Está profundamente equivocado e o ministro da
Educação e Ciência podia ter esclarecido o primeiro-ministro. A ciência em
Portugal tem dado frutos e vai continuar a dar. Existe, é certo, um problema de
emprego científico nas empresas, mas essa questão não foi ajudada pela
“avaliação”, que não valorizou a contribuição que muitas unidades têm dado
nessa área, designadamente unidades ligadas a politécnicos. A preocupação mais
visível do governo consistiu em favorecer um sector, a biomedicina, no qual de
facto não são patentes resultados na indústria. Mas nessa como noutras áreas há
que esperar, pois a aposta na ciência é muito recente em Portugal.
Por último:
a ciência só poderá ser sustentada se a sociedade tiver consciência da relevância
da actividade dos cientistas, isto é, se houver suficiente cultura científica.
As sociedades modernas baseiam-se na ciência, embora nem sempre haja percepção
pública dessa íntima ligação. Há que continuar os esforços feitos até agora em
favor da cultura científica. A ciência pode parecer cara, mas a ignorância é-o
muito mais.
3 comentários:
“A Universidade não pode justificar a sua existência, a Industria não pode legitimar os seus lucros, senão na medida em que, fatores essenciais da economia da Nação, se tornem elementos ativos e conscientes da elevação do nível de vida do povo português.” [O valor social da Investigação Cientifica – Por Ruy Luis Gomes]
Este é o drama que devia pesar sobre a consciência do professor Carlos Fíolhais quando insiste em “salvar a pele” de uma governação moribunda do Partido Socialista invocando a ciência e o mérito de Mariano Gago. A riqueza de uns, poucos, e a miséria de muitos portugueses, diz tudo. São primeiramente as palavras de Ruy Luis Gomes que a sociedade deve tomar consciência e com isso impedir quem se torne obstáculo à sua concretização. Era isso que o professor Fíolhais aqui deveria pedir em nome da ciência.
A retórica do costume.
Se não tivéssemos investido 1,6% do PIB em ciência... o país tinha ido á falência e teríamos sido obrigados pedir auxilio á Troika !
Realço o ultimo paragrafo em especial a última frase:
Por último: a ciência só poderá ser sustentada se a sociedade tiver consciência da relevância da actividade dos cientistas, isto é, se houver suficiente cultura científica. As sociedades modernas baseiam-se na ciência, embora nem sempre haja percepção pública dessa íntima ligação. Há que continuar os esforços feitos até agora em favor da cultura científica. A ciência pode parecer cara, mas a ignorância é-o muito mais.
Em vez do o triste apelo á culpabilização do pagador de impostos para tudo e mais alguma coisa , os cientistas portugueses assumissem a sua "culpa", trabalhassem no sentido de com menos recursos fazerem melhor isso seria digno de pessoas que constituem a "massa cinzenta" do País.
Os n/ cientistas ainda não chegaram á concussão que somos um pais de recursos limitados. E estaria também nas v/ mãos a saída desta situação.
Mas os cientistas nacionais estão mais preocupados com o seu umbigo (com honrosas excepções ) . Chegamos ao cumulo dos reitores fazerem greve. Grandes elites tem o nosso país que recorrem á greve para que não lhe cortem o subsidio...
Tenho para mim que este corte de "subsídios" vai acabar com muita da investigação da treta que se inventa por aí.
Os bons cientistas que são apanhados na enxurrada, vão conseguir com a sua inteligência "dar a volta", e provavelmente ao deixarem um ambiente pernicioso , contribuirão com certeza para a recuperação do País.
cumps
Rui SIlva
O senhor parece estar muito seguro que a maioria da investigação em Portugal é "a brincar", ou, como você diz, "da treta". O senhor sabe dar exemplos disso? Sabe explicar como essas investigações poderiam ser melhor orientadas? Senão, dizer isso ou estar calado vale exactamente o mesmo...
Você só pode estar a gozar com essa da greve... Então as pessoas dos transportes públicos podem fazer greves que impedem pessoas de ir trabalhar como normalmente, as pessoas das cantinas podem fazer greves que impedem pessoas de comer como normalmente, e os investigadores não têm direito a fazer greve? Que fizeram eles de mal para serem a única classe que aparentemente não tem direito À greve, na sua opinião?
Quanto ao "fazer mais com menos", você sabe tão bem como qualquer outro que é muito mais fácil dito que feito. Por muito boa vontade que exista, sem equipamento adequado, e sem equipas adequadas, o bom trabalho torna-se impossível.
Só espero que perceba este ponto de vista, porque o seu comentário é de facto totalmente desviado da realidade.
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