sexta-feira, 3 de julho de 2015

"CATEDRAIS DA TERRA"

Texto da autoria do professor Galopim de Carvalho, que o De Rerum Natura muito agradece.


Foi assim que Louise Young (1983) se referiu às grandes montanhas, comparando-as às magníficas expressões arquitectónicas da religiosidade humana . Disse a autora, doutorada em Geofísica pela Universidade de Chicago, em bom estilo literário: "Gradualmente, pico após pico, toda a cordilheira [os Himalaias] se embebia de luz, enquanto o Sol se espraiava e dourava as cúpulas e os pináculos desta catedral de terra".

Um dos problemas que, durante mais tempo, intrigou filósofos, naturalistas, geógrafos e, mais tarde, geólogos, foi, sem dúvida, a OROGÉNESE, maneira erudita de dizer "a formação das cadeias de montanhas".

Inicialmente, os trabalhos e reflexões destes últimos incidiram sobre as estruturas particulares de algumas delas, tomadas isoladamente, combinando-as com o estudo das respectivas rochas e dos fósseis nelas encontrados. Uma tal abordagem permitiu conhecer partes das suas histórias, sem que delas constassem as forças que as haviam elevado.

O árabe Avicena, no século X, afirmava que um tremor de terra elevava o solo, podendo criar uma montanha. Dois séculos mais tarde, o filósofo e teólogo alemão, Alberto, o Grande, admitia que o calor libertado pelo interior da Terra erguia o relevo, fazendo nascer as montanhas. No séc. XIII, o filósofo italiano Ristoro d’Arezzo ensinava que as estrelas, ao atraírem a Terra (como o íman atrai o ferro), as elevavam. No século XV, Leonardo da Vinci afirmava que os fósseis encontrados nas montanhas eram restos de seres vivos depositados no fundo do mar, no que foi corroborado, dois séculos depois, pelo dinamarquês Nicolau Steno. Estes dois ilustres mestres do saber deram corpo a uma ideia vinda da Antiguidade, concebida por Estrabão (63 a.C. - 24 d.C.). Para este geógrafo grego, a existência de conchas marinhas, nas camadas rochosas das montanhas, eram prova da formação destas a partir da elevação de materiais acumulados no mar, elevação que atribuía ao mesmo fogo central que alimentava os vulcões.

Parecia, pois, evidente, que as montanhas eram porções da crosta terrestre que se haviam elevado muito acima da superfície geral. Que forças colossais poderiam, então, ter edificado tão extensas e volumosas porções de crosta?

Uma outra interrogação, à época, era suscitada pela ocorrência de camadas de rochas, que sabiam ser rígidas, mas que se apresentavam intensamente dobradas, testemunhando uma plasticidade (ductilidade) que, aparentemente, não têm. Foram diversas as teorias que tentaram explicar as causas destes enrugamentos e das forças misteriosas a elas associadas.

No século XVII, o filósofo e matemático francês, René Descartes explicava a formação das montanhas como uma consequência do arrefecimento da Terra, uma ideia retomada pelo seu conterrâneo, o matemático e astrónomo, Pierre Simon Laplace, nos começos do século XIX e pelo, igualmente francês, Émile de Beaumont, a meados do mesmo século. Nesta hipótese admitia-se que, inicialmente formada por rochas em fusão, a Terra, ao arrefecer, teria formado uma crosta sólida. Na continuação do seu arrefecimento, o globo terrestre teria reduzido o seu volume e, portanto, também a sua superfície. Tal diminuição implicaria que, por exemplo, dois ou mais pontos da superfície se aproximassem entre si, criando as forças tangenciais de compressão necessárias ao enrugamento. Podemos ter uma imagem susceptível de visualizar esta concepção numa maçã, cuja pele engelha, devido à redução de volume, em resultado da secagem do fruto. Esta hipótese era ainda aceite pela generalidade dos geólogos de finais do século XIX, entre os quais o americano James Dwight Dana e o austríaco Edward. Swess, dois geólogos de grande prestígio no seu tempo.

Em resultado deste tipo de enrugamento por contracção tangencial da crosta estimava-se que, por exemplo, a largura actual da cadeia alpina, na Europa, correspondia apenas a um quqarto da largura total dos seus estratos, imaginando-os desdobrados. Tinha havido, portanto, uma contracção tangencial, de cerca de três quartos, um valor que apontava para um arrefecimento do planeta demasiadamente acentuado (cerca de 2400ºC), para ser admissível. Por outro lado, uma tal contracção exigiria uma redução de cerca de 2 km, no raio da Terra, o que, segundo os cálculos do geofísico americano de origem alemã, Beno Gutenberg, necessitaria de cerca de 200 milhões de anos, um valor incompatível com a modernidade, conhecida, desta cadeia de montanhas.

Em começos do século XX, a Teoria das Translações Continentais, do geógrafo e meteorologista alemão, Alfred Wegener, trouxe uma nova explicação para a génese das montanhas. Segundo esta teoria, que mobilizou a comunidade científica com apoiantes e opositores, os continentes ocupam actualmente uma posição diferente da que ocuparam no passado e acrescentava que, na sua deslocação, à superfície da Terra, iam empurrando e levando à sua frente os sedimentos depositados no mar, enrugando-os, edificando, assim, as montanhas. Por exemplo, a cordilheira dos Andes, que margina a oeste o continente sul-americano, parece coadunar-se a este modelo concebido para uma deriva de Este para Oeste, modelo que, também ele, acabou por ser abandonado.

Em 1939, David Griggs deu a conhecer a sua explicação da orogénese, assente, sobretudo, na ideia das correntes de convecção do manto, imaginada pelo geofísico inglês Osmond Fisher, no século XIX. Griggs admitia que, numa faixa de convergência deste tipo de correntes, se formava uma depressão alongada que se enchia de sedimentos, constituindo uma massa de materiais erodidos a partir das terras emersas e, portanto, menos densa do que o substrato oceânico em que se afundara. Terminada a convecção, esta massa tenderia a elevar-se para alcançar o inevitável equilíbrio isostático . Segundo ele, por um lado, a convecção criava a bacia de sedimentação e, por outro, a isóstase, ao elevar os sedimentos ali acumulados, gerava a correspondente cadeia montanhosa.

Nos anos 60 do século XX, a Teoria da Tectónica de Placas não só encontrou explicação para a deriva dos continentes, mas também para a orogénese, relacionando-a com as faixas de aproximação ou de colisão de duas placas. É o que se passa na cintura orogénica peripacífica, com relevância para os Andes e as Montanhas Rochosas, e na cintura mesogea a que pertencem os Alpes e os Himalaias. Estas cinturas constituem zonas instáveis, essencialmente formadas por crosta jovem, de idade mesocenozóica. Inicialmente horizontais, como é regra da sedimentação, as camadas desta crosta jovem encontram-se intensamente pregueadas pela compressão actuante nessas faixas.

São conhecidas várias cadeias orogénicas antigas, escalonadas no tempo e anteriores à formação da Pangea. Duas delas tiveram lugar ao longo dos trezentos milhões de anos de duração do Paleozóico e as restantes no decurso dos milhares de milhões de anos dos tempos pré-câmbricos. Das duas orogenias paleozóicas, a mais recente, referida entre os geólogos por hercínica ou varisca , teve lugar entre o Devónico e o Pérmico. As correspondentes cadeias tiveram extensão mundial, encontrando-se hoje fragmentadas e deslocadas, em consequência da deriva mesocenozóica (ainda actual). Na Europa, a cadeia hercínica estende-se pela Alemanha, França, sul de Inglaterra, de onde inflecte para a Península Ibérica e Marrocos. Um ramo desta cadeia está hoje do outro lado do Atlântico, fazendo parte dos Montes Apalaches. Todo o maciço antigo português, à semelhança do de Espanha, é formado por rochas sedimentares metamorfizadas e por rochas magmáticas, em especial, granitos, que integraram essa cadeia, cujo relevo já está muito reduzido pela acção erosiva do tempo que se lhe seguiu (cerca de 280 Ma). Testemunhos ainda imponentes da orogenia hercínica são, entre outros, os Montes Urais, na Rússia.

Mais antiga, a orogenia caledónica desenvolveu-se ao longo de cerca de cem milhões de anos, entre o final do Câmbrico e o Devónico. Na Europa está representada na Escandinávia, na Escócia e na Irlanda, territórios que são parte de uma cadeia mais longa que se continua na América do Norte, constituindo a outra parte dos Montes Apalaches. De extensão igualmente global, a orogenia caledónica é testemunhada por cadeias montanhosas já muito degradadas pela erosão, na Ásia, na Austrália, na América do Sul e na Antárctica. Ainda mais antigas, as cadeias orogénicas do Pré-câmbrico encontram-se totalmente arrasadas pela erosão, constituindo os escudos e o substrato das plataformas.

São as cadeias antigas, anteriores à actual deriva, isto é, as paleozóicas e as pré-câmbricas, total ou parcialmente esventradas e, de há muito, estabilizadas (cratonizadas), que possibilitaram a exposição, à superfície, de rochas geradas em profundidade, no decurso dos respectivos processos orogénicos. Foram estas antigas montanhas que permitiram aos geólogos compreender a transformação das rochas sedimentares em metamórficas, a deformação plástica (dúctil) de rochas que se comportam, à superfície, como materiais rígidos e quebradiços e, ainda, o magmatismo profundo (plutonismo) e a correspondente formação dos granitos. Uma tal exposição à superfície dificilmente acontece nas montanhas alpinas, ainda demasiado jovens para revelarem o que ainda guardam nas suas entranhas .

A uma cadeia de montanhas correspondeu, anteriormente a ela e durante muitos milhões de anos (250, em média), um oceano funcionando como bacia de sedimentação, complexa e alongada, na ordem dos milhares de quilómetros, que se encheu de sedimentos, oriundos das terras emersas adjacentes, cujas espessuras ultrapassam, frequentemente os 10 km. Estas bacias foram muito mais largas do que a cadeia a que deram origem por compressão lateral e o correspondente enrugamento.

A fase orogénica, que se segue à fase de afundamento e acumulação sedimentar, é relativamente mais curta, não ultrapassando, em média, os 50 milhões de anos. Os sedimentos depositados nestas bacias têm fácies marinhas. Porém, nos casos em que o mar não invadiu as terras emersas, os sedimentos revelam fácies continental.

O Mediterrâneo é exemplo de uma bacia de oceano residual entre dois continentes que se aproximam, a África e a Eurásia. O fecho desta bacia continua a elevar os Alpes e conduzirá a um orógeno de colisão continental como são os Himalaias.
A. Galopim de Carvalho

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