Diálogo entre João Paiva e Carlos Fiolhais para o jornal "Correio de Coimbra" a propósito da última Encíclica do Papa Francisco (texto do vídeo com ligeira edição):
João Paiva - O meu nome é João Paiva. Sou professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Está comigo o Carlos Fiolhais, Professor de Física na Universidade de Coimbra. Somos amigos e vamos ter de uma forma pública uma conversa como costumamos ter em privado. Vamos falar sobre ciência e fé. Estamos no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, onde aconteceram coisas de Deus e coisas da ciência...
A minha ideia é que as coisas de Deus e as coisas da religião são absolutamente compatíveis. Mais ainda, como crente, acho que quanto mais ciência, melhor religião. Mas, para essa compatibilidade acontecer, tem que se fazer a devida separação e perguntar aos livros certos as perguntas certas. Quer para crentes, quer para não crentes Deus é um ponto de interrogação que permanece de pé em qualquer resposta, seja esta de ciência ou de religião A questão está sempre presente. À Bíblia, concretamente, não podemos fazer perguntas cuja resposta está no Livro da Natureza, que a ciência tenta ler. A Bíblia não é um livro científico, nem jornalístico, mas sim um livro que nos pode inspirar quando procuramos o sentido da vida. Não o podemos ler à letra. Portanto, quando eu quero saber algo sobre a origem do Universo, da vida, ou outras questões de natureza eminentemente científica, pergunto ao Livro da Natureza, pergunto à ciência, que tem uma metodologia própria para responder a essas questões.
Isto é muito relevante e nem sempre é óbvio. Digo-o com algum sentido autocrítico, como pessoa crente, e em relação à Igreja Católica a que pertenço, porque nem sempre esta clareza de formulação existe. Por vezes existe alguma confusão. Os crentes católicos, por exemplo, quando na missa professam a sua fé, dizem "creio em Deus que criou o céu e a terra" (e está a criar) , mas nada dizem sobre a forma como essa criação está a ser feita... e a Bíblia não é o livro indicado para responder a essa questão. Para isso, vamos ao Livro da Natureza e obtemos, por exemplo, a teoria do Big Bang, que é bastante útil para nos dar uma ideia sobre o modo como o Universo pode ter nascido a partir de uma explosão, digamos assim. Portanto, a ideia que eu proponho como ponto de partida para a nossa conversa é que a compatibilidade entre religião e ciência precisa da capacidade de discernirmos a abordagem da religião da metodologia da ciência.
Carlos Fiolhais - É um gosto estar com o João a falar deste tema, ciência e religião, num espaço que hoje é o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, mas que já foi um Colégio jesuíta. Foi aqui que os jesuítas se instalaram, no século XVI, quando vieram para Portugal. Estamos no acesso ao refeitório, onde os padres tomavam as suas refeições, onde oravam, não longe das salas de aulas. Esse tempo precedeu um grande momento da humanidade, que foi a Revolução Científica, que se dá no século XVII, com Galileu e Newton. Depois, este espaço haveria de ser transformado pelo Marquês de Pombal no Laboratório de Química. É conhecida a história da expulsão dos jesuítas, um confronto, não necessariamente entre ciência e religião, mas antes uma questão de poder: o Marquês de Pombal queria o poder absoluto, e fez uma campanha, podíamos dizer, "negra", uma campanha mistificadora, acusando os jesuítas de serem a fonte de todos os males do reino. Não eram. Os jesuítas foram, pelo contrário, grandes transmissores do saber, da ciência, em Portugal, aqui na Universidade de Coimbra, e no mundo. No século XVIII já não estariam tão atualizados como outros, mas cumpriam ainda assim um papel muito relevante. O próprio Descartes, que é um personagem da Revolução Científica, estudou em França num colégio de jesuítas baseado em livros que foram escritos aqui em Coimbra.
A Revolução Científica traz-nos logo à mente o nome de Galileu. A ele associamos o embate entre ciência e religião. De facto, esse embate existiu e não podemos dizer que não teve impacto. Mas é um embate que está hoje ultrapassado. Os problemas eram: "quem é que tem autoridade para interpretar a Bíblia? e “Como é que se faz essa interpretação?" A interpretação da Igreja de Roma era uma interpretação literal. Por exemplo, no caso da posição da Terra e do Sol, a Igreja dizia que a Terra era o centro, porque estava na Bíblia que a Terra era o centro do mundo e, por isso, não Galileu não podia dizer, apoiado em Copérnico, que o Sol é era o centro. Hoje em dia não temos dúvidas de que a Terra anda à volta do Sol e portanto esse problema não divide ninguém. O Papa João Paulo II reabilitou Galileu, reconhecendo que ele tinha razão. Disse-o com palavras cuidadas, como é normal, mas não deixou dúvidas de que ele tinha razão. E, mais do que isso, o cardeal Ravasi, que está hoje à frente da Conselho da Cultura da Santa Sé, disse uma coisa muito curiosa: disse que Galileu tinha razão não apenas como cientista, mas tinha razão também, e principalmente, como teólogo. Isso quer dizer que Galileu estava mais à frente na teologia do que os dignitários da Igreja que o confrontaram na Inquisição. E porque é que Ravasi diz isso? Porque, para Galileu, que era um católico assumido, um católico que não perdeu a fé durante a provação, havia compatibilidade entre ciência e religião. Para Galileu, com certeza Deus existia, estava acima de todas as coisas, era o criador de tudo, mas tal não impedia o homem de interrogar a Natureza e de saber quais eram os lugares do Sol e da Terra. Ele escreveu uma frase muito elucidativa: "o Espírito Santo ensina-nos a ir para o céu e não nos ensina como é o céu". Com certeza a palavra "céu" é aqui usada em dois sentidos diferentes, mas a frase é significativa e encontra utilidade nos dias de hoje. Podemos, de facto, interrogar a Natureza, interrogar os céus, fazer ciência; e podemos, ou não, acreditar em Deus.
João Paiva - Portanto, temos de ter um certo cuidado com a modernidade de algumas afirmações uma vez que aquilo que eu disse, a ideia da separação entre ciência e religião, já tinha sido dito por Galileu. Eu penso que uma abordagem da relação da ciência com a religião poderá ser feita a partir da recente Encíclica do Papa Francisco, "Louvado sejas", que é sobre o cuidado da casa comum...
Carlos Fiolhais - "Louvado sejas" é um verso magnífico de S. Francisco de Assis. O Papa Francisco reconhece-se em S. Francisco de Assis e "Louvado sejas" é o início de uma poesia extraordinária, uma poesia de deslumbramento perante o mundo, que, com certeza, o autor atribui a Deus. Mas o deslumbramento perante o mundo é uma experiência humana e, por isso, é um sentimento que pode ser partilhado por todos os seres humanos.
João Paiva - Estamos no antigo refeitório dos jesuítas, que alberga hoje uma exposição sobre a luz e a matéria. Eu, como químico, interesso-me de modo particular por estes assuntos, porque os químicos vivem do que conseguem ver, precisamente com a luz. De algum modo, este espaço remete-nos para a Encíclica do Papa Francisco, cujo subtítulo "o cuidado da casa comum", nos centra na questão ecológica. A palavra ecologia tem a ver com o oikos, que é casa, a casa comum. E, na realidade, na linha a que o Papa nos tem habituado – bastante ecuménica e humanista –, se há um tema que nos leva para o humanismo partilhado é, de facto, a ecologia, a questão da "casa comum". Eu, que sou cristão e que acredito num Deus um tanto paradoxal, um Deus que é totalmente divino e também totalmente humano, sinto-me particularmente confortável na universalidade da mensagem desta Encíclica. O Papa Francisco, logo no princípio, apresenta citações de autores que vão desde os irmãos ortodoxos aos místicos indianos, e poderia mesmo ter citado outras pessoas que nada têm a ver com a religião, porque é completamente humana esta preocupação pela casa comum. Se há assunto em que eu me sinto irmanado com pessoas de qualquer denominação religiosa ou sem religião alguma é precisamente esta ideia da defesa da casa comum. O Papa João Paulo II já tinha falado da "ecologia humana", no sentido de se perceber que o tratamento da nossa casa respeita também ao combate à poluição, à preservação das espécies, ao respeito pela vida. O Papa Francisco esmiúça ainda mais esse tema, e fala em "ecologia integral" e em "ecologia social", dando-nos a entender que as questões económicas, sociais e humanas estão fortemente relacionadas com a questão da preservação da Natureza. O Papa tem um background de engenharia química, ao qual provavelmente não é alheio o estilo da sua escrita. Escreve com uma robustez que é também científica, mas sem deixar nunca a questão religiosa. Aliás, a citação de S. Francisco de Assis, o santo que tinha uma relação de irmandade com a Natureza, é relevante porque é eminentemente religiosa. S. Francisco, como hoje os crentes, atribui obviamente ao Criador tudo aquilo que é belo e fala da beleza de Deus. Por isso tratava por "irmãs" todas as criaturas: a "irmã lua", o “irmão lobo", etc. Esse tratamento extremamente afetivo é retomado pelo Papa nesta mensagem, que é bastante universal. Temos que ter um cuidado especial, referido na Encíclica, com o aumento da temperatura da Terra que daqui a uns tempos poderá subir de alguns graus, o que trará consequências climáticas adversas. A ideia de usar energias alternativas é indiscutível, é uma ideia que temos todos de pensar e partilhar, tratando-a c
Carlos Fiolhais - No tempo da Revolução Científica houve um grande filósofo, Francis Bacon, que disse "saber é poder". E, de facto, poucas coisas são tão verdadeiras como esta. O saber, que é um imperativo humano – interrogamo-nos perante a Natureza, tentamos decifrar os mistérios da Natureza –, tem consequências quanto à nossa vida na Terra. Nós hoje vivemos de maneira diferente em virtude do saber que temos. E desde o tempo de Bacon houve uma evolução extraordinária causada pelo conhecimento. À Revolução Científica no século XVII seguiu-se a Revolução Industrial no século XIX e, no século XX, uma Revolução Tecnológica. Hoje o mundo onde vivemos é completamente diferente. A questão é saber se é melhor, se é pior... Eu direi que é melhor nalguns aspetos (por exemplo, a vida humana é muito mais longa) e é pior noutros aspetos (por exemplo, pairam ameaças sobre a Natureza). O Papa, que é uma voz autorizada, reconhecida dentro e fora da Igreja, que é um líder - e não apenas um líder espiritual mas também um líder social, que é ouvido por pessoas dentro e fora da Igreja – chama a atenção para um problema real, um problema com o qual nos confrontamos hoje: o problema da destruição do planeta, do nosso ambiente, em particular com o aquecimento global. Hoje em dia a ciência não tem dúvidas – e o Vaticano tem um Conselho para a Ciência, está certamente bem informado sobre o assunto – de que a temperatura do planeta está a aumentar e de que a causa desse fenómeno é humana. Há pessoas que ainda dizem que não é bem assim, mas o Papa é claro a juntar-se às vozes mais autorizadas da ciência que dizem que é assim. Essa questão coloca dúvidas sobre o nosso futuro. Como é que vai ser o nosso futuro? Como é que vão viver os nossos filhos e os nossos netos? Como é que viveremos nesta casa, que para já é a única casa que temos? Não temos outro sítio para onde ir! Temos de viver juntos nesta nossa casa, que vista ao longe não passa de um pequeno ponto. Enfim, tantas guerras, tantas discussões, tantos problemas e, no fundo, tudo isso se passa num pequeno ponto do cosmos! Todos nós habitamos esse pequeno ponto e todos nós somos precisos para salvar esse ponto. Um grande astrofísico e divulgador de ciência, Carl Sagan, dizia que os seres humanos, independentemente das suas opiniões, das religiões que possam ter, têm que estar unidos no bom uso da casa comum, quando é o futuro comum que está em jogo. Naquela altura era o problema da Guerra Fria, da eventual destruição da humanidade por uma ameaça atómica; hoje, felizmente, já não vivemos esse contexto, mas temos o problema do ambiente. O aquecimento global, em particular, é um problema que nos interessa a todos. Então, porque não nos juntarmos todos para o resolver? Numa altura em que o Tratado de Quioto expirou, em que se prepara uma grande reunião em Paris de líderes mundiais para tratar do nosso futuro comum, ouve-se a voz da Igreja, apelando tanto a crentes, crentes católicos ou de outras proveniências religiosas, como a não crentes. Eu acho que aqui se pode ensaiar uma aproximação entre ciência e religião, que têm papéis diferentes. A ciência pode ser fonte de poder, mas não pode ter o poder. A ética está muito para lá da ciência. A chamada de atenção para a ética, para a consciência que a humanidade deve ter de si mesma, feita por líderes religiosos respeitados e reconhecidos, tem muita força. Pode ser que consigamos levar a vida neste planeta a um destino melhor para todos. Portanto, o Papa fez muito bem nesta ocasião, num dos seus primeiros documentos, em dirigir uma carta à humanidade, para que ela tome mais consciência daquilo que a une e ponha de lado divisões que, naturalmente, existem mas que não interessam ao nosso futuro comum.
João Paiva - Estamos agora noutra zona do "refeitório", no setor das Ciências Naturais, onde se releva a vida. Continuemos a nossa reflexão sobre ciência e fé, agora com base na vida.
Carlos Fiolhais - A vida é uma coisa extraordinária! A exposição mostra a evolução do olho, desde os organismos mais antigos, passando pelo olho da mosca, até aos nossos próprios olhos. É a luz que nos permite ver o mundo. Estamos no Ano Internacional da Luz e a visão, que muitos animais têm e nós temos, consiste na entrada do mundo pelos olhos dentro…
João Paiva - A vida é também um tema central na Encíclica do Papa. Há pouco, falaste nesta questão muito importante de saber se as alterações climáticas eram antropogénicas, isto é, se eram devidas à ação do homem. Na realidade, embora seja consensual que provavelmente são, as questões climáticas dizem-se não lineares. O seu estudo é muito difícil porque estão em jogo muitos factores. Mas aceitemos que a forma como o homem gananciosamente tem usado os recursos naturais e maltratado a Natureza causa grandes danos no presente e no futuro, pelo que convém mudar de atitudes; há boas razões para, concretamente, usar menos recursos energéticos fósseis. Gostava de sublinhar dois pontos importantes que têm a ver com a vida e com o facto de a ecologia dizer respeito à nossa vida e ao nosso estilo de vida. Um deles, na perspetiva cristã, é a urgência de uma certa frugalidade. Principalmente o mundo ocidental, para preservar a casa comum, terá de fazer um esforço, eu diria, um esforço escolhido, que venha de dentro para fora, de ter menos e de se contentar com o menos que se tem. As famílias deverão refletir sobre a quantidade de automóveis que têm, sobre o número de peças de vestuário ou de calçado que têm... Este elemento da frugalidade escolhida, vinda de dentro, está nas entrelinhas do documento papal. Depois, obviamente a ideia da partilha é extremamente cristã. Eu, se quero salvar o planeta, não só deverei refletir sobre a minha frugalidade pessoal, que é uma escolha, como devo partilhar com os outros, partilhar a Natureza como ela é, partilhar os bens, partilhar a cultura, partilhar o saber. Este é um aspeto que, não deixando de ser universal, tem uma marca cristã assaz relevante. Confesso ainda que ao ler a Encíclica, várias vezes me lembrei de Teilhard de Chardin, e que essa figura me volta à mente neste espaço. Teilhard de Chardin é um pensador que, porventura, terá vivido fora do seu tempo; era um paleontólogo, mas também um filósofo e teólogo, e pediu emprestada a Nietzsche – é curioso referir Nietzsche – a experiência da fidelidade à Terra. Eu queria ler, da Encíclica, a oração final que o Papa Francisco propõe, uma oração que acho razoavelmente universal e que me fez pensar em Chardin. Diz ele "curai a nossa vida, para que protejamos o mundo e não o depredemos, para que semeemos beleza e não poluição nem destruição". Estas palavras são simples, tão ao jeito do Papa Francisco, mas são também bastante profundas e com um potencial impressionante de mudança para vivermos melhor. Acho que são suficientemente inspiradores para que coloquemos as mãos na massa e sejamos as mãos de Deus para fazer um mundo melhor.
Carlos Fiolhais - Ainda bem, João, que falas do Padre Teilhard de Chardin, um cientista que mostra, como outros casos, que ciência e religião podem coexistir. Ele procurou a origem da vida, tendo avançado novidades. E procurou seguir por novos caminhos na teologia. Infelizmente, como dizias, ele não foi ouvido como merecia no seu tempo. Os seus escritos foram censurados, pelo que praticamente não publicou nada em vida. E ele, obediente à Igreja, cumpriu esse caminho de apagamento. Mas hoje é citado pelo próprio Papa na Encíclica. Hoje em dia concordamos que a procura da origem da vida é uma busca científica, uma busca que prossegue. É um dos grandes mistérios da ciência. A ciência interroga os mistérios que se podem desvendar usando o método científico. A religião também fala de mistérios, mas não o faz da mesma maneira. O interrogador do mistério é o mesmo, é sempre o ser humano que se interroga. Só que a religião não usa o método da ciência; e, por isso, os mistérios de que trata não podem ser arredados. Dizia Santo Agostinho: "se compreendeis, não é Deus". Para ele, Deus está para lá de toda a compreensão. A ciência trata dos mistérios solúveis ao passo que a religião trata dos mistérios insolúveis, os mistérios que umas pessoas tentam resolver sem o conseguir e que outras nem sequer tentam resolver. O problema da origem da vida é um problema científico que estamos a tentar resolver. No Universo todo, no vasto universo – que provavelmente é infinito – , só se conhece vida nesta planeta. Daí a necessidade e a urgência de preservar a vida neste planeta. S. Francisco tem razão quando fala da “irmã árvore”, do “irmão lobo”, porque há algo que temos em comum com as plantas e os animais, que é o ADN, o código de quatro letras que une todas as formas de vida. Este foi um mistério decifrado nos anos 50. Os cientistas de hoje, ao interrogar-se sobre a origem da vida, andam à procura de vida no espaço. E é um problema da ciência saber se há seres, e eventualmente seres inteligentes, fora do nosso planeta. Não sabemos, mas queremos saber e estamos a fazer tudo o que é possível para saber.
Saber é um bem. Concordas decerto comigo, João, que a curiosidade é uma mola que impele todo o ser humano. Não é a única dimensão do ser humano, mas é uma das suas dimensões mais importantes. Quando eu ponho a ênfase no saber, não quero dizer, por exemplo, que a crença não seja também uma dimensão importante e que essas duas dimensões não possam coexistir. Estou até convencido de que, se existirem seres noutros planetas que venham a comunicar connosco, a dimensão espiritual não lhes será estranha. A dimensão espiritual é uma marca do homem, uma dimensão que pode organizar-se ou não em religiões. Também o poderá ser de outros seres inteligentes que tenham chegado a esse estádio através de uma evolução semelhante à que se deu na Terra, uma evolução que vamos decifrando através da ciência.
Vivemos num universo misterioso, mas uma parte do mistério está ao nosso alcance, e uma das nossas ambições, não sendo a única, deve ser a de saber. Do saber vem o poder. E vêm as questões da economia, da sociedade, da desigualdade. O Papa Francisco analisa esses problemas, que são problemas para além da ciência. A ciência é uma parte da vida humana, mas não é, está longe de ser, toda a vida humana. Mas é justo reconhecer que, sem ciência, a vida humana seria muito pobre, não gozaria das possibilidades que hoje tem.
João Paiva - Então, uma última pergunta que podíamos fazer a ambos é muito simples. Ela cruza-se com a Encíclica do Papa e com as relações entre ciência e religião: há esperança para o mundo?
Carlos Fiolhais - Sim, há esperança. E o primeiro passo para haver esperança é querermos que haja esperança. Temos que ter uma atitude pró-ativa. Tem de haver futuro porque queremos que haja futuro. Os cientistas são otimistas e gostam de partilhar o seu otimismo. Eu quero acreditar no amanhã – e mais do que isso, quero ajudar a fazê-lo. Para isso é preciso muito mais do que ciência. É preciso diálogo, é preciso paz. Carl Sagan, que não era religioso, dizia: "Ama o teu próximo". E explicava logo: "Ama o teu próximo, porque não encontrarás outro nos milhões de galáxias à tua volta". Somos nós que aqui estamos, o futuro diz-nos respeito e nós e temos de cuidar do nosso futuro comum.
João Paiva - Eu também acho que há esperança para o mundo. Antes de mais, como pessoa que trabalha na ciência, diria que a ciência nos dá motivos para isso, entre outras coisas pela maior esperança de vida, minha, dos meus filhos e das pessoas que hoje nascem. Mas, além disso, obviamente como crente cristão. E o cristianismo é uma religião da esperança: a experiência de Jesus Cristo é precisamente a experiência de que a fragilidade, a contingência e a incompletude não são a última palavra. É próprio dos crentes, e em particular dos crentes cristãos, ter esperança. E a esperança é, de facto, não só esperar, como esperar melhor. Há uma atitude, em todo o caso, às vezes também religiosa, nada interessante, no contexto em que estamos a falar, que é a daquelas pessoas que entendem a esperança como ficar a rezar para que as coisas acontecem. Mas Deus, que nos criou à sua imagem e semelhança, deu-nos o dom da liberdade, pelo que temos de ser nós, com as nossas mãos, a construir a esperança. O Papa que tem, ao jeito jesuítico, um estilo de eficácia, lança-nos aqui este repto que, mais do que reflexivo, é provocativo. Que a humanidade, através das suas organizações, possa, de facto, realizar essa esperança. A sua mensagem é um sinal de esperança.
Carlos Fiolhais - Haja então esperança num mundo melhor.
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