quarta-feira, 15 de julho de 2015

QUARENTA ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL


Meu texto, sem as figuras, no livro "Quarenta anos de políticas de ciência e de ensino superior em Portugal" que acaba de sair na Almedina (org. M.L. Rodrigues e M. Heitor)

A revolução de 25 de Abril de 1974 permitiu desenvolver em extraordinária medida a ciência em Portugal [1-3]. Tal aconteceu sobretudo após a entrada de Portugal na União Europeia (à época Comunidade Económica Europeia) em 1 de Janeiro de 1986, uma vez que ela permitiu que consideráveis fundos europeus fossem usados para apoiar bolseiros, projectos, unidades de investigação e infra-estruturas de ciência entre nós. Portugal era, nesta área, um país muito atrasado e deu, nestes 40 anos, um passo de gigante para se aproximar da média europeia. Não alcançou ainda essa posição, mas o lugar actual já não nos envergonha como o fazia antes. Pode falar-se de um Big Bang da ciência, de uma verdadeira explosão em todas as áreas do conhecimento, num processo de crescimento que praticamente não encontra paralelo na Europa

Não há revoluções sem revolucionários. O maior responsável por esse processo foi o físico José Mariano Gago [4-7], que, entre 1985 a 1989, dirigiu a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), organismo que tinha sucedido ao Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC). Foi ele que nessa qualidade organizou em 1987 as primeiras Jornadas de Ciência e lançou o Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia (1986-1989), que haveria de dar frutos. Mas a acção de Mariano Gago não ficou por aqui: foi ele que, num momento de viragem política, assumiu em 2005 a pasta de ministro do recém-criado Ministério da Ciência e da Tecnologia no quadro do primeiro governo de António Guterres. Em 1996 o ministro criou a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que passou a desempenhar as funções antes atribuídas antes à JNICT. Mariano Gago passou de gestor de ciência a político de ciência, passando a representar a ciência à mesa do Conselho de Ministros. Ele acabou por ser um dos ministros mais longevos dos nossos governos democráticos: não só continuou responsável pela mesma pasta no segundo governo Guterres, de 1999 e 2002, onde teve lugar relevante na formulação da chamada Agenda de Lisboa, como em 2005 foi nomeado ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no primeiro governo de José Sócrates, cargo em que foi renomeado no segundo governo de Sócrates, iniciado em 2009, que caiu em 2011 para dar lugar a eleições antecipadas e a um governo de outra cor política, cuja acção tem sido dominada pela ideia fixa e quase única de executar o “reajustamento” imposto pela troika.

O sistema nacional de ciência e tecnologia

A criação do Ministério da Ciência e da Tecnologia foi o marco para a ciência nacional, talvez o maior do ponto de vista político nesta área nestes 40 anos. A ciência é, por excelência, um empreendimento internacional e a ciência portuguesa cresceu abrindo-se: expandiu-se através de um forte e inédito processo de internacionalização. Saíram do país para formação ou complemento de formação (doutoramento ou pós-doutoramento) muitos jovens cientistas em todas as áreas e entraram no país em número significativo investigadores estrangeiros. Mas a transposição de fronteiras não foi apenas individual, foi sobretudo colectiva. O país passou a fazer parte de vários organismos científicos internacionais a começar pela Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), em 1985, e continuando em 2000 com a Agência Espacial Europeia (ESA) e o Observatório Europeu do Sul (ESO). Mais tarde, em 2006, foi iniciado um programa de colaboração de Portugal com algumas das melhores universidades norte-americanas, como Harvard, MIT, Texas em Austin, e Carnegie-Mellon. Portugal beneficiou também de programas competitivos de ciência da União Europeia abertos a todos os países membros, embora aí até agora a contribuição portuguesa tenha sido maior do que aquilo que recebeu. Em particular, alguns cientistas portugueses beneficiaram de bolsas do European Research Council.

Com o impulso da internacionalização e com a ajuda de financiamento, foram alargadas várias unidades de ciência já existentes, embora em geral incipientes, e fundadas muitas outras, expandindo e consolidando o sistema científico-tecnológico nacional. Para atribuição racional de financiamento e para a emulação geral do sistema foi estabelecida uma avaliação regular da actividade de investigação, um processo que foi efectuado por comités de peritos independentes, formados maioritariamente por cientistas estrangeiros de reconhecida competência nas áreas que analisavam. Aumentou-se o número de áreas cultivadas entre nós, combatendo assimetrias existentes no cultivo dos ramos do saber: em particular, as áreas das ciências sociais e humanas conheceram forte crescimento, que resultou em boa medida da internacionalização. Nas infraestruturas, construíram-se edifícios destinados em exclusivo à ciência e instalaram-se neles e noutros equipamentos, alguns dos quais de grande porte, tendo sido planeado o funcionamento em rede.

Perante a dificuldade de as universidades nacionais absorverem rapidamente e de modo adequado os importantes recursos postos à disposição para o crescimento da ciência (em larga medida como foi dito, vindos da União Europeia) surgiram novas formas organizativas, como associações privadas sem fins lucrativos. Formadas por muitos docentes universitários e também por bolseiros e investigadores contratados, elas passaram a funcionar em articulação maior ou menor com as universidades (por vezes dentro e noutras vezes ao lado), mas gozando de maior autonomia. Algumas dessas instituições receberam o selo ministerial de Laboratórios Associados, uma designação que se fez por analogia com os Laboratórios do Estado, que já vinham muito de trás (como o Laboratório Nacional de Engenharia Civil – LNEC, criado com outro nome em 1946). A ideia era a de concentrar em instituições de maior dimensão actividades de investigação, que não só criassem saber como prestassem serviços ao Estado. Os primeiros laboratórios associados foram em 2000 o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra (CNC), o Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) do Porto, o Instituto de Patologia e de Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), e o Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), em Oeiras. Em 2001 juntaram-se-lhes o Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, o Laboratório de Instrumentação e Partículas (LIP), em Lisboa e Coimbra, a Rede de Química e Tecnologia (REQUIMTE), no Porto e em Lisboa, o Instituto de Telecomunicações (IT), em Lisboa, Porto e Coimbra, com ramos noutros sítios do país, o Laboratório de Robótica e Sistemas em Engenharia e Ciência (LARSyS), em Lisboa e no Funchal. o Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN), em Lisboa, e o Instituto de Ciências Sociais (ICS), também em Lisboa. Nos anos seguintes foram criados outros 15 laboratórios, totalizando actualmente 26.

Estas instituições conheceram um extraordinário dinamismo em contraste com a maioria dos Laboratórios do Estado, sob tutelas de outros ministérios: apesar de sucessivas tentativas de reorganização, não se desenvolveram na medida das expectativas e das necessidades. Os Laboratórios de Estado são nove: o Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), em Lishoa, o Instituto Hidrográfico (IH), em Lisboa, o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), sedado em Lisboa com centros no Porto e em Águas de Moura, Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN), em Lisboa (hoje integrado na Universidade de Lisboa), o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), sedeado em Lisboa, o Laboratório Nacional de Recursos Biológicos (INRB), em Lisboa, o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), sedeado em Lisboa com extensões em S. Mamede de Infesta e Beja, e o Instituto de Medicina Legal (IML), sedeado em Coimbra com delegações em Lisboa e Porto. Apesar de alguns estarem sedeados fora de Lisboa, a situação da ciência portuguesa é muito assimétrica do ponto de vista geográfica, com uma centralização em Lisboa que muitos julgam excessiva.

No sector privado da ciência, há a salientar o papel das fundações. Além do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Lisboa, actualmente bastante forte na área da biologia, que remonta em 1961, surgiu em 2010 um centro de investigação na área da biomedicina – Centro de Investigação para o Desconhecido (CID) - na dependência da Fundação Champalimaud, fundada em 2004.

A economia portuguesa conheceu várias vicissitudes nos 40 anos de vida democrática. Acabou por crescer após o solavanco associado ao período revolucionário de 1974. Tendo havido processos de modernização, ajudado em boa parte por fundos dos vários programas-quadro europeus, o certo é que a primeira década do novo século foi um tempo de paragem do crescimento económico, com estagnação do PIB, que culminou no pedido de ajuda externo apresentado à troika em 2011. O facto de várias empresas baseadas no conhecimento terem conhecido evidente sucesso não invalida a realidade de o tecido económico português, baseado em pequenas e médias empresas (PME), não ter forte ligação com a ciência. No entanto, o governo efectuou uma tentativa de apurar estatisticamente quais eram as actividades de investigação e desenvolvimento realizadas em empresas. Com o prémio de um incentivo fiscal, muitas empresas responderam à chamada, tendo aumentado significativamente a participação das empresas no sistema nacional de ciência. No ano de 2007 o sector privado chegou mesmo a assegurar mais de metade do financiamento total (0,6% em 1,1% do PIB), embora não deva ser esquecido, para além da margem de erro dos dados estatísticos, que muitas empresas com práticas de inovação receberam ajudas públicas. A COTEC – Portugal, Associação Empresarial para a Inovação, fundada em 2003, reúne as principais empresas portuguesas com actividade de inovação.

Investimento

O notável crescimento da ciência e tecnologia só pôde ser realizado através de um reforço nítido do investimento. Os números oficiais estão disponíveis na PORDATA [8], base de dados sobre Portugal da responsabilidade da Fundação Francisco Manuel dos Santos (Fig. 1). O investimento na ciência e tecnologia aumentou, em valores absolutos, de 32,667 milhares de euros, dos quais 10.193 do lado das empresas, em 1982 (o primeiro ano da série da PORDATA – ano que corresponde à normalização democrática, com a revisão constitucional e com o fim do Conselho da Revolução) para 2.321.600 milhares de euros, dos quais 1.104.000 do lado das empresas, em 2013, tendo atingido um máximo de 2.771.600 milhares de euros em 2009, dos quais 1.311.070 das empresas. Se referirmos esses valores ao Produto Interno Bruto (PIB) o investimento em ciência e tecnologia passou de 0,3% em 1982, dos quais 0,1 do lado das empresas. para 1,4%, dos quais 0,7% das empresas, em 1013, tendo atingido o máximo em 2009 com 1,6%, dos quais 0,9% das empresas. Para comparação internacional, a média da União Europeia a 28 países em 2013 era 2,0% do PIB em 2012 (estando a Suécia está no topo com 3,2%, logo seguida da Dinamarca e da Alemanha). Por alturas do 25 de Abril o investimento em ciência não deveria exceder 0,1% do PIB, pelo que o aumento em 40 anos foi de 14 vezes! Não foram muitos os crescimentos que atingiram esta ordem de magnitude.

Índicadores de produtividade

Dois indicadores inequívocos sobre os resultados do sucesso desse investimento em ciência são o número de novos doutorados formados em cada ano e o número de novas publicações científicas surgidas também em cada ano. Basta, de novo, consultar a PORDATA.

Foi enorme o incremento do número de doutoramentos (Fig. 2) feitos no país e fora dele (cada vez mais no país e cada vez menos fora dele e reconhecidos depois). O número de doutoramentos, que era em 1974 de 87 (6 realizados em Portugal e 51 no estrangeiro) em 2013 passou a ser de 2668 (463 em Portugal em Portugal e 205 no estrangeiro). Em 1974, a maior parte eram de sexo masculino ao passo que actualmente são de sexo feminino. Se reportarmos esses números ao total de habitantes, o número de doutoramentos por cem mil habitantes passou de 1,0 em 1974 para 25,5 em 2013, um aumento de 25,5 vezes, muito maior que o aumento no investimento. Os actuais números são ainda insatisfatórios, se almejarmos metas europeias: em 2013, a Eslováquia tem 40,3, Alemanha 32,7 e a Irlanda 31,5 doutorados por cem mil habitantes.

 Também aumentou de modo significativo o número de artigos em publicações científicas, assim como impacto destas, que é medido pelo número de citações (Fig. 3). O número de publicações científicas, que era em 1974 de 368 em valor absoluto (3,9 papers por cem mil habitantes) no ano de 1982, passou para 17665 (168 papers por cem mil habitantes) em 2013, cerca de 40 vezes mais. Quer dizer, os resultados na criação de conhecimento foram ainda superiores aos alcançados na formação de pessoas. Apesar de ainda não termos atingido valores da média europeia de produção científica, muito poucos índices subiram tanto em Portugal em tão pouco tempo!

O problema da ciência nas empresas

Apesar do crescimento bem visível nas estatísticas do crescimento do investimento privado na ciência e apesar do aparecimento de ligações cada vez maiores entre universidades e empresas (o que se verifica, por exemplo, pela criação de incubadores de empresas, como o Instituto Pedro Nunes em Coimbra), o certo é que, como foi dito, não é ainda muito visível o impacto do crescimento da ciência na economia [9-11]. O número de patentes cresceu, mas ficou ainda muito aquém de índices com significado internacional. E o contributo para a economia de empresas baseadas em tecnologia, não é ainda suficientemente visível. Um indicador da falta de ligação entre sistema académico e empresas consiste é ainda o número muito baixo de patentes reconhecidas (cresceu, é facto, mas de modo bastante insuficiente na compita internacional). Outro indicador é o baixo número de doutorados que são absorvidos pelas empresas: 3%). No entanto, um índice económico que mostra uma perspectiva animadora é a balança tecnológica, um índice que mede o equilíbrio entre saídas e entradas de serviços de ciência e tecnologia, que tendo sido sistematicamente negativa passou a ficar mais ou menos equilibrada a partir de 2007.   .

A cultura científica

A cultura científica, que é condição indispensável para a sustentação da ciência pela sociedade, também alastrou de modo impressionante. A Ciência Viva – Agência Nacional para Difusão da Cultura Científica e Tecnológica, instituição criada em 1996, alargou o interesse pela divulgação científica, designadamente com a criação e apoio a vários centros de ciência espalhados por todo o país, o maior e mais relevante dos quais é o Pavilhão do Conhecimento, no Parque das Nações em Lisboa. Nesses centros a ciência apareceu em actividades experimentais com um carácter lúdico. Museus de Ciência também se desenvolveram associadas às Universidades de Coimbra, Lisboa e Porto. A iniciativa privada ajudou: a editora Gradiva, com a colecção Ciência Aberta iniciada por Guilherme Valente no princípio dos anos 80, tem realizado um assinalável trabalho de difusão científica e cultural através, num processo que de algum modo emula a Biblioteca Cosmos de Bento de Jesus Caraça nos anos 40. Os media começaram a falar de Ciência como nunca tinham falado antes, a começar pelos jornais de referência como o Público e o Diário de Notícias, o Expresso, o Sol e a Visão. Também a rádio e a televisão, públicas e privadas, passaram a dar mais atenção à ciência. E surgiu em 1993, a meio do período considerado, o fenómeno da World Wide Web, protocolo originado no CERN, e a divulgação da ciência assumiu desde cedo forte presença no ciberespaço mundial e nacional.

O passado recente e preocupações quanto ao futuro

O governo de Pedro Passos Coelho, que tomou posse em 2011, uniu a pasta da Educação com a da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, tendo o ministro Nuno Crato, por razões que nunca explicou, dedicado pouca atenção às questões da ciência. A falta de apoio político à ciência conduziu a uma ruptura na política de crescimento da ciência. Com o pretexto do aperto da despesa pública imposta pela troika e esquecendo que o pequeno investimento em ciência é semente de um futuro mais próspero para todos, Nuno Crato pouco fez para contrariar a queda do investimento na ciência.

É certo que o abrandamento no investimento já vinha de trás. Desde 2009 que se verificava uma queda do investimento, mas ela tornou-se com o governo de Passos Coelho brutal: a diminuição de 2010 a 2013 é de cerca de 436.000 milhares de euros, que foi quase o investimento total em 1995, quando foi criado o Ministério da Ciência e da Tecnologia. A queda ocorreu em todos os domínios de investimento: bolsas, projectos, unidades. A inversão da FCT na concessão de bolsas individuais de doutoramento por concurso nacional foi muito nítida no ano de 2014 (cerca de 40%), conduzindo a um enorme protesto dos bolseiros e dos cientistas em geral. A FCT viu-se obrigada a alargar o número de bolsas concedidas. Olhando para a PORDATA verifica-se que o número de doutorados continuava em 2013 a subir em bom ritmo, não acompanhando a queda do investimento público: mas isso deve-se ao financiamento e nalguns casos endividamento das famílias, que continuam a acreditar nas vantagens da formação avançada. Em breve será também aí visível o impacte da queda recente das bolsas de doutoramento. Em 2013 a maior parte dos doutoramentos (44%) ocorria em ciências sociais e humanidades, uma área que não exige tanto investimento em meios materiais como outras.

Na PORDATA [8] pode olhar-se para a evolução recente do número de publicações científicas. Das sete áreas do conhecimento, só sobem de 2012 para 2013 as Ciências Naturais, as Ciências Médicas e da Saúde (muito: cerca de 10%) e as Ciências Agrárias. Todas as outras descem: Ciências Exactas, Ciências da Engenharia, Ciências Sociais e Humanidades. Deste modo o total de publicações de autores nacionais sobe muito pouco: abranda o crescimento e a continuar assim o abrandamento, em breve esse índice dos resultados da ciência estará a descer, pela primeira vez desde 1974.

No ano de 2014 deu-se um exercício de avaliação desastroso encomendado pela FCT à European Science Foundation, uma instituição sem suficiente experiência e que estava em dificuldades organizativas [12]. Essa avaliação decorreu com várias ilegalidades e anomalias, a começar logo por uma cláusula escondida no contrato que mandava eliminar à partida metade das unidades do sistema científico.nacional (um processo que foi designado por “poda”). Seguiu-se o incumprimento da lei, ao prescindir das visitas de avaliação na primeira fase avaliativa que se destinava a escolher a metade a liquidar. Os próprios regulamentos elaborados pela FCT não foram cumpridos: os avaliadores nem eram em suficiente quantidade nem tinham suficiente qualidade (o que se reflectiu na deficiência dos pareceres emitidos em certas áreas). De resto, a FCT disponibilizou aos júris dados bibliométricos errados. Finalmente, como cereja podre em cima de um bolo mal cozinhado, a FCT atribui um financiamento às unidades sem correlação directa e clara com a classificação atribuída. O principal critério não era afinal a classificação obtida, mas sim aquilo que elas tinham pedido. Numerosos centros, tanto na primeira fase eliminatória como na segunda fase, apresentaram recursos, tendo, para além dos processos internos, entrado acções nos tribunais administrativos e no Ministério Público. Das 322 unidades iniciais, só 178 passaram à segunda fase, tendo as outras ficado sem meios suficientes para trabalharem. Das 178 que passaram, 123 recorreram apontando erros e injustiças. Em Abril de 2015, perante a situação de caos na gestão da ciência nacional e pouco antes de ser anunciada publicamente a sua situação de acumulação de funções em Portugal e no estrangeiro, o Presidente da FCT demitiu-se.

A política do governo para a ciência, se é que existe, está profundamente errada. Por um lado descontinuou a aposta, que até aí tinha sido politicamente consensual, na formação de recursos humanos e no emprego científico, uma decisão que tem levado à emigração de numerosos jovens altamente qualificados que não encontram condições de trabalho na sua terra natal. Os quadros das universidades e politécnicos não se renovaram (há ainda debilidades na ligação entre o sistema de ciência e o sistema de ensino superior) e as empresas não absorveram os numerosos doutorados. Para se justificar, o governo passou a repetir o chavão da “excelência”, afirmando em nome dessa ideia que tinha de haver um número reduzido de bolsas, projectos e centros. Acontece porém que essa noção de “excelência” nunca foi objectivada e não foi de resto credibilizada por uma avaliação competente. Não se pode promover a excelência com uma avaliação que o não é. Por outro lado, não faz sentido limitar a investigação do país, privilegiando disciplinas e locais. Na prática verificou-se a afirmação de alguns grupos, como a área das ciências da biomedicina, próxima de alguns responsáveis governamentais. Estranhamente, alguns centros ligados a fundações privadas na Grande Lisboa (Fundação Gulbenkian e Champalimaud) passaram a ser subsidiadas, desviando para o sector privado financiamentos que antes eram dados ao sector público, nas universidades espalhadas pelo país. Por outro lado, e em claro contraste com esse discurso da “excelência”, o governo passou a falar da necessidade da investigação em ambiente empresarial, querendo orientar os fundos comunitários do novo programa comunitário, o Portugal 2020, para esse sector. O certo é que o governo pouco tem feito para resolver o problema da ligação da ciência às empresas.

O governo diminuiu o apoio à cultura científica. A única iniciativa nova, o programa “O Mundo na Escola”, um conjunto de conferências escolares resultou num fiasco, pois tendo começado com a Ciência foi interrompida a esperada continuação com a Literatura e a Arte.

Precisa-se de uma nova política de ciência e tecnologia, apostando nos recursos humanos qualificados, que são afinal a nossa maior riqueza, retomando a convergência de Portugal com a Europa.

Um testemunho pessoal

Tendo vivido estes 40 anos de expansão da ciência em Portugal, seja-me permitido para terminar um breve testemunho pessoal. Sendo caloiro da Universidade de Coimbra à data da Revolução de 1974 e tendo terminado a minha licenciatura em Física cinco anos depois, pude acompanhar de perto o extraordinário crescimento do sistema científico-tecnológico nacional, tendo inegavelmente beneficiado dele. Apesar de não existir quando terminei o meu curso ensino pós-graduado institucionalizado, tive oportunidade de frequentar em 1978-1979 na Universidade de Coimbra um curso de pós-graduação de física teórica, enquanto me iniciava no ensino como assistente. Tendo sido convidado a fazer um doutoramento na Alemanha, trabalhei na Universidade Goethe, em Frankfurt am Main, entre 1979 e 1982. No ano em que fiz o meu doutoramento só houve 130 doutorados portugueses, a maior parte dos quais tal como eu obtidos no estrangeiro.

Regressado a Portugal com 26 anos tive, como professor auxiliar e membro de um centro de investigação em Física que beneficiava do apoio do INIC, a oportunidade de participar em lutas pela manutenção e alargamento dos apoios desse instituto. Ainda foi do INIC que recebi apoio para uma estada sabática na Universidade Tulane, em Nova Orleães, nos Estados Unidos, em 1990 (não tive, por necessidade de assegurar serviço docente, oportunidade de fazer pós-doutoramento, como hoje é relativamente comum). Foi com júbilo que vi o aparecimento do Ministério da Ciência e da Tecnologia, com a criação da FCT e da Ciência Viva. Em 1998 contribuí para a criação do Centro de Física Computacional, na minha Universidade, em cujo âmbito ajudei a criação de um Laboratório de Computação Avançada que tem albergado os mais potentes supercomputadores nacionais (esse laboratório foi inaugurado pelo ministro Mariano Gago em 1999).

Interessei-me desde cedo pela difusão da cultura científica: Participei nos primeiros projectos do Ciência Viva, com actividades de “Ciência a Brincar”, interessei-me pela produção e experimentação de software educativo, e no ano de 2008 pude criar, no quadro da rede de centros Ciência Viva, o Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, um moderno centro de recursos educativos. Fui participando no esforço de difusão na ciência com livros (Física Divertida, saído na Gradiva em 1991 foi um best-seller), com artigos em jornais (Público, Sol, etc.) Um ano marcante da ciência em Portugal foi 2005 - Ano Internacional da Física, quando se celebrou o centenário dos principais trabalhos de Einstein. Ajudei como consultor, a criação e desenvolvimento do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, aberto ao público em 2006 e premiado internacionalmente.

Interessei-me pela modernização das bibliotecas, ajudando a concretizar repositórios digitais na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. E interessei-me mais recentemente pela análise da política de ciência. Primeiro como autor e depois como responsável pela área do Conhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos, tive oportunidade de escrever dois livros sobre o sistema científico nacional (Ciência em Portugal, 2011 [1], e Ciência e Tecnologia em Portugal - Métricas e impacto (1995-2011), 2015, com Armando Vieira [2]). A actividade empresarial também me aliciou: ajudei a fundar em 2013 uma empresa – a Coimbra Genomics – instalada no Biocant, em Cantanhede, que visa aproveitar as potencialidades que a moderna genómica coloca à disposição do sistema de saúde.

Se muito foi feito, sinto que há muito ainda a fazer

Bibliografia

[1] Carlos Fiolhais, Ciência em Portugal, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos: 2011.
[2] Armando Vieira e Carlos Fiolhais, Ciência e Tecnologia em Portugal - Métricas e impacto (1995-2011), Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015 https://www.ffms.pt/estudo/1005/ciencia-e-tecnologia-em-portugal
[3] Análise SWAT do Sistema de Investigação e Inovação Português, Lisboa: Fundação par a Ciência e Tecnologia, 2013.
[4] José Mariano Gago, Manifesto para a Ciência em Portugal, Lisboa: Gradiva, 1990.
[5] José Mariano Gago, Ciência em Portugal, Comissariado para a Europália 91 – Portugal, Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1991.
[6] O estado das ciências em Portugal / coord. José Mariano Gago ; org. Comissariado para a Europália 91-Portugal. 1.ª ed. Lisboa : D. Quixote, 1992. 
[8] PORDATA, base de dados de Portugal da Fundação Francisco Manuel dos Santos, http://pordata.pt
[9] Manuel Mira Godinho, Inovação em Portugal, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013.
[10] Lino Fernandes, Portugal 2015: uma segunda oportunidade?, Lisboa: Gradiva, 2014.
 [11] Augusto Mateus, 25 Anos de Portugal Europeu, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013.



1 comentário:

Nuno Passos disse...

Obrigado pela sua generosa partilha

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