quarta-feira, 1 de julho de 2015

Minha entrevista à Revista de Ciência Elementar

Publicada no último número da Revista de Ciência Elementar, editada pela Casa das Ciências, realizada por Manuel Silva Pinto.


Quem é David Marçal? Se, ao cruzar-se com alguém que o não conhecesse, tivesse a súbita necessidade de lhe dizer quem é, o que diria?
Que é um comunicador e um defensor da ciência, que sabe que a ciência tem falhas porque é feita por pessoas, mas que por assentar em princípios robustos, como a transparência e a reprodutibilidade de resultados, permite obter conhecimento fiável de modo consistente. À medida que foi sabendo mais sobre a ciência, descobriu que tinha motivação para procurar envolver outras pessoas nesse entusiasmo.

Sabe que hoje é conhecido sobretudo pelo que tem feito na área da divulgação da Ciência, usando a sua faceta humorística. Porquê o Humor e a Ciência? Surgiu do conhecimento da realidade e da História da Ciência, ou foi resultado de uma reflexão sobre a necessidade de “humanizar” a Ciência no sentido comum do termo? Ou não tem nada a ver com isto?
São duas coisas de que gosto, fundamentalmente diferentes, embora talvez tenham em comum a procura de novas perspectivas da realidade. Tem a ver com meu percurso. Durante o doutoramento era também colaborador do Inimigo Público, a dada altura as duas coisas convergiram e comecei a escrever piadas sobre ciência. Mais tarde isso levou aos Cientistas de Pé e a outras coisas. O humor é uma excelente ferramenta de comunicação, muitos dos bons comunicadores usam o humor.

E a escrita? Nomeadamente a escrita nos jornais e, já agora, a escrita um pouco corrosiva, porque satírica, do inimigo público. É fácil encontrar temas e ideias? É um desafio permanente ou acontece apenas quando o tema incita à escrita? De outro modo, procura a escrita ou espera por ela?
As duas coisas acontecem. Quanto temos um compromisso de escrever regularmente para um fim específico, como no caso do Inimigo Público, é inevitável procurar temas e abordagens. Por vezes também há coisas que despertam uma urgência de intervir no debate público, é o que acontece quando envio espontaneamente uma crónica para um jornal, por exemplo.

De um modo geral a maioria das pessoas, mesmo as que possuem uma razoável formação científica, associam os químicos, os físicos, biólogos, etc. a seres humanos sisudos, embrenhados no seu pensamento e nas suas conjecturas, nomeadamente os investigadores. Como dizer de forma consistente a todos os que nos rodeiam que a Ciência pode ser divertida, podemos rir, e muito, com ela e mesmo divertirmo-nos com os cientistas e os seus laboratórios?
A forma de contrariar isso é através da intervenção no espaço público, para que as pessoas saibam quem são os cientistas de carne e osso e que a sua única referência não sejam os personagens loucos da ficção. Não haverá uma fórmula universal para promover a cultura científica, mas um conjunto de abordagens, em que escola tem  um papel fundamental, mas que abarca também os centros e museus de ciência, jornalistas de ciência, eventos e obras de divulgação científica, etc. É uma questão complexa, tanto, que o modo como se pode promover a cultura científica é, em si mesmo, um tema de investigação.

Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciências, é hoje uma obra de referência que escreveu com Carlos Fiolhais e que leva ao leitor comum, e também aquele que se interessa pela Ciência uma visão muito interessante dos “acidentes” das curiosidades e dos “devaneios” que muitas vezes se faz à volta dela. Que ecos têm do que escreveu e como é que gente da Ciência e gente que não o é apreciou esse trabalho.
As reacções são muito positivas, o livro já vai na oitava edição. É um livro de histórias, com algum humor, que aproveita as histórias para abordar alguns conceitos científicos. Mesmo pessoas ligadas à ciência encontram facilmente nele histórias que não conheciam. 

A sua ligação ao Teatro, nomeadamente à 'stand-up comedy', permite-lhe ter uma visão do que é que o público mais aprecia em termos de conteúdo e forma do que é a Ciência a rir. Pode dar-nos um pouco o retrato da sensibilidade do espectador padrão no que respeita a uma visão critica, por vezes caustica mesmo, do que é a evolução do conhecimento?
Quando duas pessoas se riem de uma mesma coisa é porque têm algo em comum. Nós rimo-nos mais quando estamos acompanhados do que quando estamos sozinhos, e ainda mais quando estamos com amigos do que com desconhecidos. Num espectáculo ao vivo procuramos o riso como experiência social. Assim, temos que encontrar referências comuns, algo que nós e a maioria do público possa reconhecer como familiar, e que possamos partilhar. Nos Cientistas de Pé procuramos cruzar temas de ciência com coisas que não precisamos de explicar o que são, porque fazem parte da cultura popular e da nossa identidade comum. Por exemplo, se eu disser que se as proteínas fossem mono-volumes, então o ribossoma seria a Autoeuropa, eu não tenho que explicar o que é um mono-volume ou a Autoeuropa. Se tivesse, estaria a usar referências que não resultam para esse público. Esta piada não poderia ser feita assim na Austrália. Teria que fazer referência a uma grande fábrica de qualquer coisa, que fosse conhecida, para comparar com a fábrica de proteínas da células.

Hoje, David Marçal é, para além de um cientista,sobretudo um divulgador de Ciência, através das formas que podem trazer ao destinatário um modo mais interessante e sobretudo alguma componente lúdica. Qual o papel do cientista neste caminho da divulgação. O “fazedor” de informação? Ou o instrumento dessa mesma divulgação? E, Já agora, qual a eficácia dessa divulgação em forma de espectáculo? Fica algo ou, isso acontece apenas quando o público é seleccionado?
Um dos papéis do cientistas é sempre de comunicar a ciência. Pode fazê-lo através de artigos e conferências para especialistas, mas também é necessário comunicar ciência para outros públicos, como decisores políticos, empresários, jornalistas, etc. Disso depende o papel da ciência no mundo. Os cientistas não são os únicos agentes com responsabilidade na promoção da ciência. Mas a sua participação, como classe, é importante, afinal são os protagonistas da ciência. Quanto aos Cientistas de Pé, os estudos de público que fizemos indicam que a quase totalidade das pessoas se declara satisfeita ou muito satisfeita com o espectáculo e que este melhora a imagem dos cientistas. Cerca de 70% consideram ter ficado a saber mais sobre os temas abordados. É verdade que o público que vai a eventos de divulgação científica tem tendêncialmente qualificações bastante elevadas, com uma grande percentagem de pessoas com ensino superior. Mas também já actuámos noutros contextos, não identificados com a ciência, como centros comerciais, bares e festivais de humor. A resistência do público nesses casos é um bocadinho maior, começa desconfiado e demora mais a começar a rir-se. Mas acaba por resultar e o balanço desses espectáculos  costuma ser muito positivo.

Sendo frequente a sua ida, com os espectáculos obviamente, a escolas e instituições de formação, diga-me como é recebido e, sobretudo, o que fica no fim? As pessoas interessam-se pelo conteúdo das peças? Ou são mais dedicadas à forma como vêem o que lhes é oferecido?
Os espectáculos que apresentamos nas escolas não são dos Cientistas de Pé, mas outros, interpretados por actores profissionais, no formato de falsa conferência humorística. Na maior parte das vezes, após o espectáculo, que dura cerca de 20 a 30 minutos, há uma conversa entre um especialista no tema e os alunos. Depende um pouco  do contexto, da idade dos alunos e do tema, mas em geral os alunos fazem perguntas, interessam-se bastante. O espectáculo funciona como um estímulo para a sua participação. Os Cientistas de Pé também resultam muito bem com público escolar, mas infelizmente essas apresentações são muito raras, porque os horários escolares são difíceis de conciliar com as obrigações profissionais dos Cientistas de Pé, que são investigadores.

A exemplo do que aconteceu num passado recente, nomeadamente no séc. XX, muito do que hoje se estuda nos grandes centros de investigação, mesmo que comprovado perante a academia, só vai chegar ao conhecimento da população em geral daqui a alguns (por vezes muitos) anos. Acha que a comédia, o texto de um jornal, um livro, poderão ser instrumentos que potenciem o interesse sobre a investigação?
Apenas uma parte muito pequena da investigação alguma vez chegará ao conhecimento do público em geral. E isso é normal. Mesmo um físico, por exemplo, terá conhecimento de uma fracção pequena da investigação noutras áreas, como biotecnologia ou sociologia. Penso que às vezes o problema é o contrário, é chegar cedo de mais. Muitas vezes publicam-se notícias que têm como base um único estudo, ou até uma especulação ou opinião de um cientista ou médico. As novas ideias em ciência precisam de tempo para se afirmarem, é necessário que haja vários grupos de investigação a trabalhar no tema, que confirmem ou refutem os resultados uns dos outros. Muitas novas ideias em ciência estão, pura e simplesmente, erradas. Não necessariamente por má fé, simplesmente porque são indicações ténues que acabam por não se confirmar. Por vezes chagam ao conhecimento do público coisas como “Casais que bebem vinho juntos são mais felizes” ou “Dançar o tango é a melhor dança para o coração”, que são o que eu chamo a ditadura do engraçadismo. Em muitos casos nem há investigação suficiente sobre o tema para que ela possa adquirir alguma maturidade, é só uma coisa engraçada. Mas isto traça um retrato errado sobre a ciência, como um conjunto de curiosidades avulsas e delirantes, em que tudo e o seu contrário é possível. E esse retrato é prejudicial. É o terreno fértil para a pseudociência. O bom jornalismo científico, as boas colecções de livros de divulgação de ciência podem, sem dúvida, ajudar a traçar um melhor retrato da ciência junto do público. 

Um dos seus temas predilectos é um combate contínuo à pseudociência. Quer explicar-nos, na sua leitura, qual o mal efectivo que a pseudociência traz para a evolução do pensamento e, de uma forma porventura mais crítica ao processo de aprendizagem daqueles que percorrem esse caminho de forma nem, sempre fácil?
Quando são apresentadas como ciência coisa que não têm um fundamento científico, isso projecta uma imagem distorcida da ciência, faz com que se perceba pior o que é a ciência e o que não é, e isso tem consequências graves. Por exemplo, quando alguém não vacina os filhos porque pensa que as vacinas não funcionam ou que são a causa de doenças como o autismo (o que é totalmente falso), está a pôr em risco não só a saúde dos filhos como a de todos nós, porque a protecção das vacinas assenta em boa parte na imunidade de grupo. Quando alguém compra remédios homeopáticos para a gripe está a deitar dinheiro à rua, porque a gripe em condições normais passa sozinha e os remédios homeopáticos nenhum efeito têm para além do placebo, porque são só água e açúcar. As consequências da pseudociência são a criação de grandes mentiras, que até podem ser muito sofisticadas e por causa disso parecer que são mesmo verdade.

Na sequência da questão anterior, tem alguma ideia que queira partilhar connosco do modo como a Comunidade Científica e Educacional na sua articulação, poderão fazer para que muito do conhecimento transversal em Ciência que não é fiável nem cientificamente válido possa ser de algum modo mostrado como tal sobretudo a quem aprende?
O ensino experimental das ciências é fundamental para que os alunos saibam que a base do conhecimento científico é a observação e a experiência, e não a autoridade de gúrus ou o uso de jargão científicos sem qualquer significado, que é o que faz a pseudociência. Infelizmente hoje em dia pede-se à escola, nomeadamente ao ensino superior, que ensine pseudociência. Num conjunto de portarias publicadas no dia 5 de Junho de 2015 em Diário da República, definem-se os requisitos para os graus em várias medicinas alternativas. Por exemplo, para o grau de licenciado em naturopatia elenca-se a formação em auricologia e iridologia. A primeira parte do princípio que na orelha estão representados todos os órgãos do corpo humano, e a segunda parte do mesmo princípio para a íris. Que sentido faz convidar as universidade portugueses, com graves problemas de financiamento, a venderem licenciaturas em banha da cobra? A comunidade científica e educativa deveria recusar esse papel e deixar as pseudociências remetidas aos seus guetos de incenso e cítaras.

Em poucas linhas, como seria capaz de se descrever a si próprio?
Uma pessoa com um grande interesse pela ciência, mas que sabe que há mais coisas que interessam na vida, que nada têm de científico nem pretendem ter. E com uma grande motivação para partilhar esse interesse pela ciência com outras pessoas.

Manuel Silva Pinto

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