quinta-feira, 16 de julho de 2015

UMA CAMPANHA (NADA) ALEGRE PARA UNIVERSITAR OS POLITÉCNICOS


“A história é émula do tempo, repositório de factos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro” (Miguel Cervantes, 1547-1616).

Longos anos porfiei na procura da letra de uma lengalenga da minha meninice (recordada por António José Saraiva como a “lógica do macaco”) que se me negava na neblina da memória. Nela, dedilhando uma guitarra, um símio trauteava: “Do meu rabo fiz navalha / Da navalha fiz camisa /Da camisa fiz farinha/Da farinha fiz menina /Da menina fiz viola ”.

Algo de semelhante se passa hoje com o ensino politécnico: De um curso médio foi feito um curso de curta duração / De um curso de curta duração foi feito um bacharelato / De um bacharelato foi feito uma licenciatura / De uma licenciatura  foi feito um mestrado.

Escreveu André Berdiaevi: “A liberdade é, antes de tudo, o direito à desigualdade”. Não deve, consequentemente, Portugal continuar a assistir, em passividade bovina, a uma campanha dos politécnicos de Coimbra, Lisboa e Porto (desvinculados, em Fevereiro deste ano, do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos) que ponha  em risco um sistema dual de ensino superior por doxomania dos seus dirigentes que, em vez de dignificarem o estatuto do ensino politécnico que representam, buscam insistentemente veredas esconsas que o conduzam aos claustros universitários.

Sobre esta controversa  temática, que se reveste ainda hoje de plena actualidade , escrevi: “O Professor Adriano Moreira, na sua brilhante conferência, subordinada ao tema “Bolonha e as Profissões Liberais”, criticou a orientação de universitar os politécnicos ou politécnizar as universidades, consagrando  a defesa do princípio da ‘identidade separada e da igualdade de dignidade de ambos sistemas de ensino superior’’”. E acrescentou: “Parece muito evidente ser um erro entender a transformação histórica de institutos politécnicos em universidades, como se de uma promoção se tratasse” (“Diário de Coimbra", 01/12/ 2004).

Quase passado um ano, em contramão, Rui Antunes, ao tempo, professor-adjunto da Escola Superior de Educação de Coimbra e ex-vice presidente do Instituto Poitécnico de Coimbra, com a força institucional advinda desses seus cargos, em artigo de opinião, vestiu a beca justiceira de defensor da fazenda pública: “A Universidade faz o mesmo que o Politécnico, embora este último com bem menores meios financeiros” (“Diário de Coimbra”, 10/11/2005).

Proclama ele, ainda, urbi et orbi, “doutrina” que envolve a milenária Universidade de Coimbra: “O País e a cidade de Coimbra, só teriam a ganhar se o Instituto Politécnico de Coimbra continuasse a fazer o mesmo que tem feito até aqui, com o nome de Universidade Nova de Coimbra”.

Ou seja, em época de contenção orçamental  ter,  como solução de truz para Portugal e margens do Mondego, uma política económica de se gastar mais para se fazer o mesmo? Qualquer economista, ou mesmo simples dona de casa, lhe dirão tratar-se de um esbanjamento, ainda mesmo em tempo de vacas gordas. Quanto mais em tempo de vaca magras!

Persistentemente, Rui Antunes volta à carga com a proposta alternativa de crisma das instituições de ensino politécnico para o nome pomposo de “Universidade de Ciências Aplicadas” (“Diário as Beiras”, 05/08/2013).

Segundo a “Agência Lusa”, no dia 10 deste mês de Julho, sem quebranto de vontade, Rui Antunes, em cerimónia comemorativa do “Dia do Instituto Politécnico de Coimbra”, realizada no auditório da Escola Superior Agrária desta mesma cidade, desunha-se em ataques ao actual sistema binário de ensino superior, com argumentos de que se fez cabeça de cartaz. Passo a reproduzi-los:

1) Hoje as universidades também já têm os cursos que começaram por ser “exclusivos’ do politécnico”.

2) A carreira docente nuns e noutros estabelecimentos de ensino [universitário e politécnico] tem “os mesmos níveis de exigência”.

3) “Em casos como Coimbra seria ‘perfeitamente possível’ ter a actual universidade, com vocação internacional, e a universidade resultante do IPC, ‘com uma vocação mais regional’”.

4) “Os suportes do sistema [binário] caíram e, portanto, não faz sentido manter essa dualidade”.

E se para Ortega y Gasset, “há tantas realidades quantos os ponto de vista, criando o ponto de vista o panorama”, vejo-me forçado, pelas circunstâncias, porque, ainda segundo aquele filósofo espanhol, “o homem é o homem e as suas circunstâncias”, a contra-argumentar, ponto por ponto, os princípios supracitados. Assim:

Ponto1: Passou-se precisamente o contrário. Em Coimbra, Porto e Lisboa, onde havia universidades de grande prestígio e com grande oferta de cursos, foram criados, de supetão, estabelecimentos de ensino politécnico em desrespeito pelo princípio de serem implantados em regiões carenciadas de ensino superior. Como se a melhoria da qualidade da docência dependesse da razão inversa da qualidade da formação dos professores, exemplifico com a formação de professores através de escolas superiores de educação (em substituição das antigas escolas do magistério primário) que passaram a ministrar cursos de professores do 2.º ciclo do ensino básico na variante de matemática Reportando-me ao caso da formação universitária anterior destes professores, apenas para a docência da matemática, tinha ela 5 anos, enquanto nos politécnicos passou a ser  ministrada em  4 anos  para o ensino, simultâneo,  das disciplinas de Matemática e Ciências da Natureza.

Ponto 2: Atente-se no testemunho de Cristina, segundo ela própria “setenta por cento marxista”, estudante da Faculdade de Ciências de Coimbra, na Assembleia Magna da  Associação Académica de Coimbra: “Nós [os universitários] suamos mais e trabalhamos mais do que os do Politécnico” (“Público”, 01/11/1996).

Ponto 3: Como quem mata um coelho de uma só cajadada, traça Rui Antunes, numa espécie de aula magistral, orientações  de natureza “internacional”  e “regional” para uma possível duplicação da oferta do ensino universitário na Lusa Atenas.

Ponto 4: Tudo leva a crer que em ditames do coração, por o coração ter razões que a razão desconhece (Pascal), Rui Antunes faz, finalmente,  o anúncio urbi et orbi, de que os suportes do sistema binário “caíram”, quando essa anunciada queda  é desmentida oficialmente, em título  de jornal de página inteira : “MEC recusa acabar com distinção entre universidades e politécnicos” (“Público”, 08/11/2015).

Entretanto, a Fenprof, também ela, na pretensão de extermínio do sistema binário de ensino superior, preparava-se para apresentar para discussão pública uma proposta nesse sentido - dirigida aos reitores das universidades e aos presidentes dos institutos  politécnicos - que abortou à nascença.

Em contraposição, Joaquim Mourato,  presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos  (de que se desvincularam, em Fevereiro passado, os Politécnicos de Coimbra, Porto e Lisboa), declara que a estratégia do órgão a que preside “tem sido no sentido de aprofundamento da diferenciação de missões”.

Igualmente, com o apoio do movimento associativo estudantil, navega a todo o pano em águas agitadas de discordância com o fim do sistema binário de ensino superior, o presidente de Reitores das Universidades Portuguesas, António Cunha, que passo a citar ipsis verbis: “Temos sempre defendido um aprofundamento do sistema binário e uma maior diferenciação entre os sistemas” (“Público”, 08/07/2015).

E se a “história é advertência do futuro”, este meu texto encontra razão no direito de cidadania que julgo assistir-me ao contraditório, agora e em muitas outras ocasiões, como, por exemplo, nesta transcrição que faço de uma notícia, a página inteira, da autoria do jornalista Carlos Picassinos, sobre a contestação dos licenciados pelas escolas superiores de educação poderem vir a leccionar no 3.º ciclo do ensino básico, ensino até então a cargo de licenciados universitários. Noticiou ele: “Inédita, em assembleias magnas, foi a intervenção de um sindicalista. Rui Baptista, presidente da assembleia geral do Sindicato de Professores Licenciados, solidarizou-se com as causas dos universitários” (“Público”, 01/11/1996).

5 comentários:

Ipsis Verbis disse...

Na minha meninice, brinquei muito à macaca. Riscava matematicamente uns quadrados no chão e tentava acertar, com um caco de tijolo finamente partido, o meio da área de cada figura até finalizar todo o puzzle. Percorria o caminho traçado, a pé coxinho. Ia e vinha com um pé suspenso... Quando me sentia cansada, mudava o pé. Às vezes, a força com que atirava o caco era demasiada e ele escorregava para fora do limite e eu perdia a vez. Dava jeito porque descansava de ser só uma perna. Ao fim do dia, a minha mãe gritava as horas, lá do fundo da rua, e eu despedia-me da macaca e entrava em casa com o caco na mão. Sempre tive cacos destes, mas completei sempre a macaca. Quero dizer, consegui aquele preenchimento de vazios sucessivos, aos saltos pequeninos, na passagem de um vazio a outro, até ao fim da composição.
Não sei por que razão inventaram a macaca. Talvez uma analogia que preside à perfeição do movimento estático do mundo. A ordem do mundo desenhada no chão por uma criança, o antepassado e a sua causa, o caco sísmico na motivação do avanço e a humanidade transpondo-se aos saltos para além do seu único pé, ultrapassando todos os riscos se não contiver a força do caco.
Sabe Professor, estes exercícios de realidade são importantes na infância. Jogos de acerto e superação. A disposição das partes umas em relação às outras; a distribuição dos espaços de nada; a relação de sucessão fingindo permanência; a noção de que é no quadrado que tudo se ordena e acontece; que o quadrado é fixo, repetível e nos controla os movimentos; a escolha do material que melhor se adapta ao chão e ao jogo; que a única coisa que muda de sítio é o caco que atiramos; que os fenómenos se constituem passo a passo na perseguição dos cacos; que fora da macaca, o infinito existe imóvel, colado ao céu; que dentro da macaca, nos admitimos ao real, à vacuidade do antes e do depois de o caco lá ter estado. É importante dizer isto às crianças na inconsciência do jogo. Para que não se desiludam quando sonham com canções de vento sobre os direitos que inventaram para elas no intervalo do jogo.
Canto consigo a cacofonia inicial, nesta pastagem de bovina existência, embora a menina já não seja instrumental e tudo se resumir apenas ao que é – um caco.

Ildefonso Dias disse...

Senhor professor Rui Baptista, a orientação de criar e agora universitar os politécnicos tem a sua génese no Partido Socialista. Recordo-lhe que foi este o primeiro partido politico em Portugal a perceber que os interesses do país não são os interesses do partido. Repare só, para o efeito, na figura do Dr. Salgado Zenha dentro do PS, o homem distinto, dotado de uma inteligencia apuradissima e formação académica de grande valor, que não serviu para o país.

Cumprimentos,

Rui Baptista disse...

Começo por saudar o seu texto pela rara beleza de que se reveste.
Quanto ao “statu quo” actual , é perigoso que a Universidade se contente em pensar que a moral está do seu lado. Está, mas é preciso lutar por ela, porque não fazer é deixar que os outros digam, façam ou ajam por nós, limitando-se, a Universidade, com essa possível atitude de uma certa displicência, a esperar que a verdade tal como o azeite, como diz o povo, venha ao de cima. Fazendo uso, uma vez mais, de palavras de Adriano Moreira, é necessário “estar nas decisões para não vir a ser apenas objecto delas”.
Assim, quando o presidente do Instituto Politécnico de Coimbra, Rui Antunes, diz (e passo a citar)que “a Universidade faz o mesmo que o Politécnico, embora este último com bem menores meios financeiros”, numa claro alusão ao desperdício dos dinheiros públicos, assume o papel de um velho criado de Eça de Queiroz, que passou à história como personagem de um dos seus sarcásticos textos literários, alguns deles coligidos em "Uma Campanha Alegre":
“Caso surpreendente! E sobretudo surpreendente para mim, porque descubro que a Academia tem sobre os livros a mesma opinião do meu velho criado Vitorino. Este benemérito, quando em Coimbra lhe mandávamos buscar a um cacifo, apelidado de ‘Biblioteca da Alexandria’, um livro de versos, trazia sempre um dicionário, um Ortolan ou um tomo das Ordenações; e se, por maravilha, nos apetecia justamente um destes tomos de instrução, era certo aparecer Vitorino com Lamartine ou a ‘ Dama das Camélias’. Os nossos clamores de indignação deixavam-no superiormente sereno. Dava um puxão do colete de riscadinho, e murmurava com dignidade: ‘Isto ou aquilo tudo são coisas de letra redonda’”.
Não, de forma alguma, a Universidade e o Politécnico “são coisas de letra redonda”! Ambos têm, e como tal deviam ser respeitadas, funções diferentes.
Em respeito a este princípio “é preciso violentar todo o sentimento de igualdade que sob o aspecto de justiça ideal tem paralisado tantas vontades e tantos génios e que, aparentando salvaguardar a liberdade, é a maior das injustiças e a pior das tiranias”, disse-o Pessoa.

Rui Baptista disse...

Adenda ao meu comentário anterior: "Começo por saudar o seu texto pela rara beleza de que se reveste", e por me fazer reviver, uma vez mais, o tempo saudoso e distante da minha meninice.

Rui Baptista disse...

Senhor engenheiro Ildefonso Dias: Completamente de acordo consigo no diz respeito ao Dr. Salgado Zenha. Ao Partido Socialista cabe o papel de criar universidades privadas de "vão de escada" para dar licenciaturas de pechisbeque à sua clientela ou de, universitar os politécnicos tirando-lhes qualquer ponta de dignidade.

Cumprimentos,

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