segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
Teoria e realidade
Uma das características da pseudociência é a irrefutabilidade, e foi nesta base que Popper tentou explicar o que demarcava a ciência da pseudociência. Popper pensava que a irrefutabilidade se devia às próprias teorias pseudocientíficas, que eram feitas de maneira a nunca serem refutadas pela experiência. Assim, quando um homeopata afirma que o produto x cura a doença y e afinal não cura, ele diz que outro factor explica a ineficácia naquele caso, mas que noutros o produto é eficaz. E faz isto sempre que as coisas não funcionam.
Mesmo com este exemplo deveria ser óbvio que Popper se enganou, pondo a ênfase nas teorias, em vez de a pôr nos investigadores, nas pessoas. Como é evidente, qualquer teoria tem exactamente os mesmos recursos que tem a homeopatia para que continuemos a insistir que a teoria está correcta face aos dados experimentais em contrário. Os cientistas comuns fazem isso o tempo todo; as pessoas não deitam fora uma teoria de cada vez que há um resultado que não bate certo. Isto foi o que Kuhn viu na história da ciência e o que o levou a defender posições relativistas, de que depois tentou afastar-se sem sucesso.
Assim, nada nas teorias pseudocientíficas nos impede de ser virtuosos e de abandonar teorias face aos dados experimentais em contrário. E nada nas teorias científicas nos impede de ser viciosos e continuar a sustentar uma teoria face aos dados experimentais em contrário. A diferença está na atitude epistémica: de um lado, estamos realmente a tentar descobrir a verdade, do outro estamos apenas interessados em confirmar as nossas esperanças e crenças e tudo isso.
Vem isto a propósito de uma atitude epistémica viciosa muito comum entre intelectuais e típica da atitude das pseudociências: a insistência numa ideia que a experiência mostra ser pelo menos duvidosa. Quando se é epistemicamente vicioso e se tem uma ideia que parece colidir com o que a experiência nos diz, acrescenta-se uma adenda à ideia que tínhamos para que deixe de colidir. O homepata diz que x cura y, quando se vê uma vez e outra que isso não acontece, ele inventa um factor F que é responsável pelo falhanço: se eliminarmos F, tudo corre bem.
Muitos intelectuais nunca saíram à rua, mergulhados que estão no seu mundo de fantasia. Não conhecem as pessoas reais, só ouviram falar delas ao longe. Fazem então das pessoas uma imagem completamente falsa: que toda a gente é igual a eles mesmos. Toda a gente se interessa pelas coisas do espírito, pela ciência e pela literatura, pela filosofia e pelo pensamento, pelas artes sofisticadas e pela conversa inteligente e culta. A humanidade recomenda-se!
Depois, o intelectual olha casualmente para fora da sua fantasia e apercebe-se que a dura realidade é algo diferente: qualquer Justin Bieber é apreciado por milhões de fãs; qualquer Paulo Coelho é mais lido do que Eça de Queirós, qualquer inanidade televisiva é vista com mais agrado do que um documentário científico.
A experiência contradiz a teoria.
E é aqui que entra o homeopata das ideias. Inventa então a conspiração: os capitalistas, os políticos, os extraterrestres ou as almas dos mortos é que conspiram para fazer as pessoas gostar mais de Britney Spears do que de Bach, e para gostarem mais de Harry Potter do que de Marguerite Yourcenar. Não fosse a conspiração, e isto era só malta a ler Shakespeare no metro, pessoal a fazer bicha à porta das exposições de pintura e documentários de ciência non-stop nas televisões.
Tudo isto é mentira, claro. A experiência europeia e norte-americana mostra que, quase um século depois da educação universal, os gostos das pessoas são o que seria de esperar para quem conhece melhor a humanidade: uma desgraça completa. A maior parte das pessoas sofre de frivolite aguda: a frivolidade é a sua característica mais saliente. Não têm paixão por coisa alguma, nada levam a sério, são incapazes de sair do seu horizonte limitado e privado, entregam-se ao prazer boçal e divertem-se com isso. É assim que as pessoas são, na sua grande maioria. E temos de saber aceitá-las.
As pessoas têm o direito de ser boçais e frívolas. Desde que não prejudiquem ninguém de forma clara e inequívoca. Eu também preferiria que a humanidade fosse diferente. Mas se para fazer essa humanidade de ouro precisamos do Admirável Mundo Novo com que sonham tantos intelectuais desde Platão, prefiro-a tal como está porque não quero as minhas mãos sujas de sangue.
Hoje damos às pessoas inúmeras oportunidades para descobrir a ciência, a literatura e outras artes, a filosofia e outras áreas de estudo. Oportunidades como as pessoas nunca tiveram. É tudo o que é virtuoso da nossa parte fazer. Se lhes enfiarmos essas coisas pela goela abaixo e se desatarmos a inventar teorias da conspiração, conspurcámos o que de outro modo teria sido um trabalho virtuoso.
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20 comentários:
Eu também acho que as pessoas têm o direito de ser boçais e frívolas, embora me entristeça (e muito). Aquilo que acho mais chocante é tantas pessoas saírem do Ensino Superior e continuarem boçais e frívolas. Para mim, é a maior falha do Ensino Superior em Portugal.
Eu penso que isso acontece devido uma das grandes injustiças do nosso tempo: obrigar as pessoas a conseguir qualificações académicas que não lhes interessam para poderem ter uma vida melhor. Fizemos ao contrário: em vez de termos valorizado socialmente as profissões que não exigem qualificações académicas, em vez de termos denunciado e rejeitado a atitude aristocrática de pensar que o doutor tem mais valor humano e social do que o pedreiro e o lojista, aceitámos tudo isso e decidimos mandar toda a gente estudar matemática e física e filosofia e história.
O resultado são horas intermináveis de tédio para toda a gente: para os alunos, que não têm e nunca terão interesse naquelas coisas, para os professores, a maioria dos quais eram antes os alunos entediados, mas acabaram por ter de ficar com aquela profissão porque não tinham outra, e os professores que realmente gostam da vida do espírito mas têm de aturar a boçalidade dos filhos dos outros e fazer strip-tease em cima da mesa para “motivar” os alunos.
Teríamos uma sociedade muitíssimo mais harmoniosa e feliz se as pessoas fossem mais livres para escolher o que realmente gostam e se acabássemos com as escolas e universidades centralizadas. A escola é o grande mal do nosso tempo. Nela, nada se cria, nada se transforma, tudo se perde.
O que Desidério diz é terrivelmente doloroso.
E terrivelmente... verdadeiro.
E, em minha opinião, extraordinariamente honesto e... brilhante.
Aqui também estou com Desidério.
Mas só até às últimas três linhas do último parágrafo.
A escola não tem que acabar. A escola não pode acabar. A escola tem é que ser digna, que ser melhor. A escola não pode é ser obrigatória para lá de certo limite que, aos dezoito anos, me parece muito tardio. E devia organizar-se de outra forma.
Não. A escola, mesmo má, mesmo péssima como está a ser, não é o grande mal, nem um dos grandes males do nosso tempo. A prostituição da escola e a "dança do varão" dos professores é que é um grande mal. Eu diria um grande crime. Organizado.
E por isso reconheço que na escola, em muita da porcaria que há na escola, muito se transforma no que não devia e assim... se perde.
Mas é de melhor escola que precisamos. E de não permitir que ninguém perturbe, dificulte ou impeça quem quer que seja de aprender.
E, já agora, o que se aprende também tem que começar muito (mais) cedo a ser da responsabilidade dos alunos e das suas famílias. Que isto de uns iluminados e de o estado se substituírem a cada cidadão pagador de impostos é, de algum modo, ditadura consentida. No mínimo.
Desidério Murcho,
Em parte tem razão, mas na minha opinião considero bem mais preocupantes as carências educativas ao nível da ético e da moral. E digo que isto é preocupante porque nos dias que correm é algo bastante desestruturado. A sociedade laica de que fazemos parte ainda não conseguiu ter (ou sequer vislumbrar) uma resposta alternativa à educação moral que era feita através da cultura religiosa dos nossos pais, avós, bisavós, ... (e mais tem uma tremenda desconfiança dessa tradição).
O Estado, seja através da constituição, seja através dos partidos (e há que considerar que tanto os partidos como a constituição, como o próprio estado, são estruturas mais ou menos adoptadas, mais ou menos impostas do exterior)ficciona uma série de coisas a que atribui importância e valor. O Estado é uma entidade "delirante" dentro de um sistema internacional delirante (sem comas). O Estado não assume, porque é tabu, mas é uma máquina sem sentimentos e com muitas calculadoras. O Estado tem objetivos próprios de Estado, submetido numa hierarquia de Estados, ainda que ocupe o topo da mesma, que nada têm a ver com os objetivos das pessoas de carne e osso, com os seus objetivos de boa vida, saúde e alegria, ainda que tenham de trabalhar muito para isso. Uma boa parte da população limita-se a viver com as regras que lhes impõem, a outra, com as regras que lhes são impostas. Por escolha própria, ninguém. As pessoas nascem e vivem num mundo feito, num jogo de forças, quer queiram, quer não, quer gostem, quer não. Beber cerveja ou estudar química, ir ao futebol ou trabalhar na empresa de fogo preso, encher frascos de drogas, ou de água mineral, tirar fotografias ou escrever poemas, fazer tiro aos pombos ou rezar o terço todos os dias...pode ser essencial para o indivíduo, mas o Estado faz outras contas. A vida das pessoas...As pessoas não querem saber do Estado senão na medida em que o Estado as obriga. Pode ser uma heresia, mas há pessoas que, pura e simplesmente, detestam o Estado e outras que, por todas as razões, o amam. Seja como for, o Estado é um poder que se exerce de fora. E isto é muito estranho.
Acabemos com A escola porque é a única maneira de termos Escolas.
Pior ainda é quando se introduz algo desse cariz nas escolas. Porque fica logo tolo, cheio de idiotices e com pretensões parvas de educar o carácter. Como se pode educar o carácter quando quem educa não o tem? Quando quem escreve os programas não o tem?
Uma vez mais, Vasco, precisamos de acabar com A escola para podermos ter Escolas. E aí, inevitavelmente, surgirão escolas que respondem às reais necessidades das pessoas e não ao que um pretenso iluminado no Ministério decide que são as necessidades das pessoas. Se as pessoas quiserem orientação moral, se quiserem aprender a raciocinar eticamente, se quiserem conhecer essa imensa tradição do pensamento moral europeu que remonta a Platão, certamente que muitas pessoas há que terão gosto em ensinar, competência para ensinar e vontade de ensinar. Mas tudo isto tem de ser fora da alçada do centralismo estatal da escola igual para todos.
Sim tem razão, creio que a introdução desse tipo de responsabilidade à escola seria um erro crasso, que é um bocado o que se tenta fazer (sem qualquer sucesso). Mas creio que um debate na sociedade sobre o valor da ética e da moral talvez servisse de alerta. E creio que fazia sentido o próprio estado (sem estar directamente envolvido) patrocinar iniciativas nesse sentido, nomeadamente sobre o papel e responsabilidade da família na educação.
Tenho sérias dúvidas de que seja preciso (ou de que fosse possível...) ir tão longe. Mas a ideia é pertinente, sim senhor. E muito séria.
Aliás, só discutir esta ideia já era um enormíssimo contributo para a melhoria de "A escola".
E disso precisamos como de pão para a boca.
Obrigado.
Caro José Baptista,
A função essencial da escola é transmitir conhecimento e isso não pode ser perdido de vista. A escola não deve servir de suporte a todas as restantes insuficiências educativas. É claro que como entidade participante deverá servir também de referêncial (da sociedade) na educação da criança.
Há uma aspecto que me perturba no sistema educativo, que tem a ver com o papel passivo dos professores quanto à atitude dos alunos. Creio que muitas vezes no sistema educativo se acha razoável e normal encarar o aluno como alguém que não quer aprender e para além do mais têm alguma incapacidade na aprendizagem.
Caro Vasco Gama
Concordo com o seu primeiro parágrafo.
Já relativamente ao segundo, eu, que ando lá todos os dias, não vejo os professores a assumir um papel passivo, no sentido de encarar como normal o aluno que não quer aprender. O problema é muito fundo, muito preocupante e muito triste: o professor vive com medo da lei, da hierarquia, dos encarregados de educação, dos meios de comunicação social e... dos próprios alunos. Permita-me que lembre os tempos da famigerada MLR em que havia "encarregados de educação" que iam de propósito, e declaradamente, à escola para dar tareia em professores.
Quer saber mais: esta mesma tarde, enquanto me deslocava a uma mesa para corrigir o trabalho de alunos, nas minhas costas três grandalhudos divertiam-se, engalfinhados e ruidosos. E foi então que me virei e preguei um cachaço em cada um deles. Saiu-me. Foi assim. É claro que logo lhes recomendei que venham lá com os paizinhos amanhã. E se vierem, estou frito. E ninguém me defenderá, suponho. Mas, não sei porquê, não estou com medo nenhum.
Só mais um pormenor: aqueles grandalhaços ficaram caladinhos o resto da aula.
Não sei se lhe transmiti um pouco do ambiente que se vive nas escolas...
Caro José Batista,
A situação que descreve como real é completamente absurda, esse tipo de comportamento por parte dos alunas é absolutamente inaceitável e quando falei em passividade refiro-me exactamente ao facto do corpo docente encarar esse tipo de situações com resignação (como se essas situações fossem uma fatalidade). Considero que os docentes podem (e devem) reflectir e interpelar o sistema educativo (o ministério e a sociedade) para que situações deste tipo não ocorram, a responsabilidade da educação das crianças é dos pais e estes devem ser responsabilizados pela educação (ou falta dela) das suas crianças (note que não estou a falar de castigos ou nada do género, mas os pais têm de assumir as suas responsabilidades e a sua ausência na educação dos seus filhos não deve prejudicar terceiros).
Devia ser como diz, caro Vasco Gama. Concordo consigo.
E no entanto...
Bem sei que não é nada simples, mas ignorar os problemas (que é o que se escolheu fazer),é que não resolve nada.
Para contrariar estas ideias mal fundamentadas no post vale a pena ouvir isto:
http://www.youtube.com/watch?v=tEOc83OVQok
O sistema manipula as pessoas a toda a hora. O sistema procura carneiros e pouco mais e por isso tudo faz para promover um sistema caótico que só beneficia sempre os mesmos e penaliza sempre os do costume.
Por isso a escola serve para quê??
Tudo isso é uma grande bobagem e perda de tempo... a única saída para qualquer dificuldade em todas as esferas da humanidade, é deixar de lado 100% o egoísmo ( 100% em absoluto ) e ser transformado pelo perfeito amor. É deixar de lado, a teoria, a especulação, e viver a realidade... é deixar de lado tudo o que não é real, todos deveriam parar em absoluto de viver de teorias, de artifícios ou de aparências.
As vezes, não é conhecimento que precisamos, mas sim, sabedoria para agir em prol de valores maiores do que os interesses egoístas, por exemplo o maior bem geral, e a promoção e defesa da verdade, mesmo que isso signifique perder.
O conhecimento ensoberbece... mas, o amor edifica e transforma qualquer situação confusa ou difícil. Aqui me refiro AO amor real e puro, é claro. O amor inocente que não busca seus interesses... este sentimento, quando genuíno, é a única base e a singular solução pra tudo o que está errado no mundo... e, também, é o único meio de alcançar a realidade da felicidade e satisfação pessoal em toda e qualquer situação.
Duas coisas:
A ciência não é completamente ad-hoc quanto ao que aceita ou regeita. Existem vários principios epistémicos, como a quantidade e qualidade da prova e a um nivel acima no surgimento de planos de investigação progressivos ou degenerativos-
Depois, existem razões para crer que o Harry Potter de há 200 anos nem sequer existia. O comum cidadão nada sabia de música ou literatura. Beber de manhã à noite era a regra.
Condensar todos os génios da humanidade num passado sem medida e pensar que eram populares para lá de uma elite (a grossa maioria nem sabia ler até há muito pouco tempo) é algo que é relativamente popular acreditar, mas não é sustentado pelos dados históricos. Ler harry potter ou ouvir justin bierber é muito melhor que o que fazia o cidadão médio até à bem pouco tempo.
Recomendo a leitura da autobiografia do politico e cientista Benjamin Franklin que é de graça tirado da net em Inglês ( e hoje em média sabe-se ler ingles) assim como o Better Angels of our Nature do Stephen Pinker.
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