quarta-feira, 13 de junho de 2012

O DISCURSO DE RELVAS


Minha crónica no Público de hoje:

Li no Jornal de Negócios on-line de 6 de Junho a notícia do anúncio, em Santarém, do programa Impulso Jovem por Miguel Relvas, ministro-adjunto e dos assuntos parlamentares: “Relvas explicou a necessidade deste programa com o facto de o mercado e trabalho estar ‘dificultado’ e de a economia ‘ainda não estar a crescer o suficiente para absorver e gerar oportunidades’ ”. Não pude deixar de pasmar com as palavras do ministro (as aspas dentro das aspas). Mercado de trabalhodificultado”? Ainda não está a crescer para absorver oportunidades”? A estranha enxurrada de termos mais não é do que um eufemismo para referir o desemprego. Em comparação com esse palavreado, o termo “coiso”, cunhado por outro ministro, até parece preferível. Relvas podia ter explicado a necessidade do novo programa, com evidente economia de palavras, dizendo pura e simplesmente que queria atacar o “coiso”.

O jornal dava mais espaço ao ministro, que, no seu círculo eleitoral, estava com grande veia retórica: "Nós hoje já não exportamos só futebolistas, exportamos cientistas, exportamos pintores,artistas plásticos. Hoje temos essa capacidade, esse é o grande bem de um pequeno país. É isso que nós temos para exportar, a capacidade de afirmação que a nossa história sempre demonstrou". Ao confessar o seu orgulho pela purga de talentos, o ministro que se ocupa do futebol, da televisão e das autarquias, passou a ser também o ministro da exportação da ciência e da cultura. Estará ele convencido de que o país lucra com o abandono de cérebros?Será assim tão difícil perceber que, ao contrário da exportação de um produto ou mesmo de um futebolista, a exportação de um cientista ou de um artista não ajuda a equilibrar a balança comercial? Bem pelo contrário, essa saída retira ao país rendimento, pois as obras científicas ou artísticas ficam lá fora e rendem lá fora. Se as quisermos aqui, teremos naturalmente de as comprar,aumentando com isso o défice. O país investiu e outros têm lucro. Fica,obviamente, mais pobre.

Mas a oratória de Relvas continuava imparável: “A aposta nos ‘activos humanos’ permitiu que ‘haja jovens portugueses por todo o lado’ ” (de novo as palavras do ministro entre aspas dentro das aspas). Voltei a pasmar e desisti de acompanhar o argumento. “Activos humanos”? “Jovens portugueses por todo o lado”? Será que o actual governo vê Portugal como um ninho de onde os jovens esvoaçam alegremente para horizontes mais auspiciosos? Será incapaz de pensar numa política que dê trabalho a quem queira ficar?

Ainda pensei que um discurso tão confuso tivesse a ver com a trapalhada em que se tinha metido com os SMS ao super-espião e as ameaças à jornalista do Público. Haveria ali alguma mensagem secreta? Estaria o Jornal Económico a fazer “jornalismo interpretativo”, seleccionando as frases mais frágeis? Fui, por isso, procurar o registo anterior do ministro, noutros jornais, e encontrei que, muitos antes das declarações recentes, já Relvas tinha defendido abertamente a emigração juvenil.Considerou, por exemplo, no Parlamento, em Novembro de 2011, que a emigração de jovens portugueses qualificados podia ser algo "extremamente positivo". Em viagens a África, tem propagandeadoasoportunidades” ultramarinas. Além de achar fantástico o despovoamento do país da sua maior riqueza – os jovens com mais formação - o ministro, revelando algum défice de cultura histórica e política, acha que o nosso futuro está em Angola ou no Brasil. Encontrei uma“pérola” dita por ele em Moçambique, em Dezembro de 2011, que nem o calor dos trópicos desculpa: “a verdade é que nos últimos 20 anos estivemos demasiado preocupados com a Europa”. “Demasiado preocupados com a Europa”? Não deve antes ser “a Europa demasiado preocupadaconnosco”? Pois não foi Portugal que pediu para entrar na União Europeia,que usou à tripa forra fundos prodigamente fornecidos pela União e que, depois de ter chegado à iminência de bancarrota, pediu ajuda aos seus parceiros europeus?

O que diz a isto o primeiro-ministro? De facto, Passos Coelho não hesitou em caucionar recentemente Relvas na sequência do escândalo das secretas. Já o ouvimos também elogiar as “oportunidades” e a emigração”. Os dois estão profundamente ligados por uma longa militância na juventude partidária, para não referir o facto de terem em comum licenciaturas tardias em universidades privadas. Sem dúvida que Passos Coelho é mais educado e simpático do que o seu ministro adjunto, mas o governo começa a ter um problema de credibilidade. Enquanto fala em “oportunidades” e “emigração”, o povo está a vender o ouro para comer, conforme alguém lembrou em Santarém. Se Relvas continuar a falar e o primeiro-ministro continuar a caucioná-lo, o governo vai ter um problema muito sério de credibilidade.

10 comentários:

Rui Baptista disse...

Pelo andar da carruagem, Portugal é um país de "coisos"!

Joachim disse...

O melhor é mesmo coisar o Relvas.

José Batista da Ascenção disse...

O governo já tem um problema muito sério de credibilidade.

O ministro Relvas é um erro de "casting", não é assim que se diz?

E por isso não sabe(rá) que há muito que devia ter deixado o governo.

Mas não faz mal que fique. Assim todos sabemos o que a casa gasta. Sem

possibilidades de dizermos que não sabíamos.

Agora, o problema sério sério é a falta de alternativas.

Os partidos são em Portugal, ilegitimamente, órgãos de poder. E os seus

quadros, desde as juventudes, parecem formar-se numa "escola" de muito

poucas virtudes.

Por isso, talvez os cidadãos tenham a obrigação de reclamarem uma verdadeira

democracia na eleição dos deputados. Por que razão havemos de estar

condenados, durante décadas seguidas, a suportar os mesmos monos? Salvam-se

as duas, três dúzias do costume e os outros são máquinas de levantar e

baixar o corpo à ordem do chefe... Ora, para isso, bastava estar um em cada

bancada.

Diferente seria se eu pudesse, enquanto cidadão, candidatar-me ao lugar de

deputado pelo meu circulo eleitoral ou apoiar a candidatura de qualquer

outro cidadão, militante de partido ou não, que me parecesse capaz.

Só dessa maneira a democracia estaria no povo, fazendo jus à etimologia da

palavra. E também só dessa maneira a Assembleia da República seria

efetivamente o segundo órgão do estado, a que o governo teria que se

sujeitar (agora é ao contrário...)

A continuar como até aqui, pelo que a prática demonstra, estamos fritos,

sujeitos à esperteza organizada de corjas da pior espécie.

Por que havemos de suportar tal coisa.

PS: nada tenho contra os partidos, entenda-se. Só que a democracia é muito

mais do que os partidos. E é isso que temos que exigir.

Helena Araújo disse...

"O governo vai ter um problema muito sério de credibilidade"?
Pensei que já tínhamos chegado a essa fase há muito. Um ministro continuar ministro depois dos escândalos em que o Relvas tem estado envolvido é sinal de um governo sem credibilidade, e pior ainda: de um país que se demitiu de si próprio.

A ideia de ser motivo de orgulho para nós andarmos a exportar cientistas parece saída das páginas da "Hola". E nem vale a pena falar da traição ao país que é o facto de os seus governantes dizerem aos jovens mais qualificados que tratem de arranjar emprego noutro sítio. Um ministro que não sabe lutar para defender o futuro de Portugal, tentando reter no país *ao menos* as pessoas cujo desempenho profissional trará mais efeitos multiplicativos, é a pessoa errada para o cargo que ocupa. Mais valia emigrar (o problema é que o estrangeiro não costuma estar interessado em importar incompetentes de luxo).

Já a questão que ele coloca sobre a Europa e a África me parece pertinente. Retoma a divisão dos anos sessenta, quando se discutia se Portugal devia ser "Europa" ou "Alântico". À parte a péssima escolha das palavras ("preocupados" em vez de "concentrados"), a questão é importante. Embora pessoalmente não me tenha dado conta de Portugal ter virado as costas ao Atlântico durante os últimos vinte anos.

Finalmente, sobre a expressão "activos humanos": porque é que ele fala em "activos humanos" e não em "capital humano"? Será que é um lapso, ou será que ele prefere designar as pessoas com vocabulário da Contabilidade, em vez de usar o conceito da Macroeconomia? É que se dissesse "capital humano", e se soubesse o significado da expressão que estava a usar, necessariamente tinha de se dar conta que estava a dizer disparates.

A propósito: a expressão "capital humano" foi considerada "não-palavra" na Alemanha em 2004. "Não-palavra" são as expressões cujo uso aponta para uma degradação dos valores da sociedade. O júri dizia que falar em "capital humano" era degradar o ser humano, considerando apenas o seu rendimento (e de novo a sombra do III Reich). Houve protestos da parte dos mundos da ciência e das empresas, que argumentavam que o júri não tinha entendido o valor positivo dessa designação: considerar as capacidades das pessoas como factor de desenvolvimento do país e das empresas é um enriquecimento importante para os princípios da condução dos países e da actividade económica.

Carlos Ricardo Soares disse...

Sobre a nossa democracia, penso que o povo só lhe viu as bandeiras e o folclore. Em democracia, o saber é "inerente" ao povo e toda a gente sabe que a liberdade é que importa. Só que a liberdade de uns, muitas vezes, choca e impede a liberdade de outros. E, enquanto uns aspiram à liberdade como ao maior bem e são, por isso, chantageados pelos "políticos", estes e outros, exercem uma espécie de liberdade sem barreiras, teoricamente legitimada por aqueles. A democracia e o nosso sistema democrático sempre nos foram apresentados como algo de sagrado e venerável e quem os ousasse questionar abertamente era interpretado (perseguido/acusado/diabolizado) de inimigo do povo, como «reaccionário», ou, pior ainda, como «fascista». Vai ser preciso questionar abertamente a bondade e a eficácia, a funcionalidade e as bases de um grande conjunto de ideias feitas, as quais, só por si, não são solução para os problemas. O Estado é um aparelho e é o aparelho do poder e do domínio. Um Estado democrático, no plano dos princípios, é um aparelho do povo ao serviço do povo. Na prática é um aparelho altamente apetecível para os partidos políticos e não apenas por serem partidos políticos, mas também por "representarem" interesses e poderes que se sobrepõem, ou conflituam, ou são contrários, ou são incompatíveis, com os do povo. E o povo, ao sentir isso, percebe que está entregue "à bicharada". Os elevados níveis de abstenção nas eleições não podem ser entendidos como apatia, antes pelo contrário. A participação política de quem vai votar só significa isso, que os partidos concorrentes conseguiram "mobilizá-los". A abstenção significa que os partidos concorrentes não conseguiram mobilizar esses eleitores. Não votar é um comportamento político cujo significado não pode ser escamoteado, apesar de os partidos políticos terem um especial interesse em valorizar quem vota e desvalorizar quem não o faz. No fundo, quem não vai votar comporta-se como se o seu voto não alterasse nada. E sabendo que, qualquer que seja o resultado eleitoral, se sujeitará, isso não significa que esteja de acordo ou que aceite esse resultado. É que, na realidade, mesmo que todos votassem, "a priori" já sabemos que resultado seria. Qualquer dos partidos concorrentes que ganhasse as eleições não alteraria aquilo que verdadeiramente importa alterar. O nosso sistema democrático é uma espécie de sistema fechado que não comporta soluções que o não comportem a ele. É um sistema de gestão de si mesmo. E, no entanto, é um sistema que já provou a sua inutilidade e, até, a sua grande inconveniência. Mas é um sistema que não comporta a possibilidade de o reconhecer, porque vive de se enaltecer a si mesmo.

Anónimo disse...

Que tristeza !

Eu também ouvi. E que dizer então da tirada sobre o facto de o governo pretender dar uma oportunidade de implementar a possibilidade de vermos a economia criar condições para que os estagiarios colocados gratuitamente ao serviço das empresas façam com que surjam os requisitos para que valha a pena dar-lhes trabalho (cito de memoria).

Temos um sério candidato a Américo Tomas.

O problema é que, salvo erro, estamos em 2012 e não propriamente em 1962...

Boas

joão viegas

José Batista da Ascenção disse...

Oh, desculpem:

Onde escrevi "talvez os cidadãos tenham a obrigação de reclamarem uma verdadeira democracia" devia ter escrito "talvez os cidadãos tenham a obrigação de reclamar uma verdadeira democracia"
E, mais abaixo, na antepenúltima linha devia estar uma interrogação onde está um ponto final, assim:
"Por que havemos de suportar tal coisa?"

Anónimo disse...

Em relação a um dos comentários anteriores acho todo este governo em enorme erro de casting... De qualquer modo, anunciaram hoje que o governo tem uma nova solução para combater o desemprego para os formados no ensino superior. Decidiram limitar as vagas nos cursos que não têm saídas profissionais. Não foi referido qualquer acção do género de aumentar vagas em relação aos cursos que têm bons prospectos de empregabilidade, suponho porque poderia assemelhar-se a uma tentativa de gestão o que vai claramente contra a política de 'corta e ponto final'. Lá se vai acabar a exportação de formados...

joana silva

Dis aliter visum disse...

O despacho do secretário de Estado do Ensino Superior, que regulamenta a fixação de vagas para o Ensino Superior,

• determina que "o número total de vagas oferecidas por cada instituição de ensino superior [universidades ou politécnicos públicos] não pode exceder a soma das vagas fixadas para essa instituição, para o ano lectivo 2011/2012";

• recomenda que as universidades e politécnicos públicos redistribuam as vagas que têm, de modo a aumentarem as vagas nos cursos de Ciências, Matemática, Informática e Engenharia e a reduzirem 20%, pelo menos, as vagas dos cursos de formação de educadores de infância e de professores dos 1º e 2º ciclos, por causa do desemprego entre os licenciados em Educação Básica.

A empregabilidade passa, portanto, a ser o critério essencial na fixação de vagas: "na fixação das vagas, as instituições devem ter em consideração a informação disponível sobre a empregabilidade dos seus ciclos de estudos" e "sempre que uma instituição pretenda aumentar o número de vagas deve demonstrar, fundamentadamente, que o nível de desemprego [nesse curso específico] é inferior ao nível geral de desemprego dos diplomados com um curso superior".

Sobre a empregabilidade dos cursos das instituições do ensino superior, tanto públicas como privadas, a Direcção-Geral Ensino Superior divulga no seu sítio na Internet "a informação disponibilizada pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência sobre a empregabilidade dos mesmos".


Esta é a informação dura e crua.
Sobre a bondade desta medida, permita-me que exprima a minha opinião que é a seguinte: prefiro que o critério de abertura de vagas seja a empregabilidade, portanto dependente do tecido empresarial do País, que é o que é, do que o apadrinhamento de lóbis.

Dis aliter visum disse...

A emigração dos nossos melhores profissionais tem de ser sentida como um grave problema do País.
Mas, como recorda o Professor Carlos Fiolhais, Relvas e Passos Coelho "estão profundamente ligados por uma longa militância na juventude partidária, para não referir o facto de terem em comum licenciaturas tardias em universidades privadas. É pouco provável que pessoas com este percurso de vida estejam preocupadas com a hemorragia intelectual que o País está a sofrer.
Além disso, professando uma fé inquebrantável na economia de mercado, esperam que esta resolva o problema por eles.

MANIFESTO PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM EM TEMPO DE GenAI

  Por Maria Helena Damião e Cátia Delgado Assinado por académicos de diversos países do mundo, foi publicado no passado dia 29 de Novembro, ...