sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O PENACHO DA CULTURA


Minha habitual crónica quinzenal no jornal "Público" saída hoje (na foto, Eduardo Lourenço na sua aldeia natal de S. Pedro de Rio Seco):

Se a cultura é uma alavanca de mudança, o interior está a mudar graças a iniciativas municipais. Depois de em Junho ter aberto em Bragança o Centro de Arte Contemporânea Graça de Morais, acaba de abrir na Guarda a Biblioteca Eduardo Lourenço.

Que o génio pode brotar dos sítios mais recônditos mostram estes dois exemplos: A pintora Graça Morais nasceu em Vieiro, Vila Flor, distrito de Bragança, e o escritor Eduardo Lourenço nasceu em S. Pedro de Rio Seco, Almeida, distrito da Guarda. Num caso e noutro as memórias da infância ficaram indeléveis. Graça Morais sobre a escola primária de Vieiro: “Tenho ideia de uma grande confusão de coisas, a geografia e a gramática, a tabuada e a história. Eu desenhava. Cerejas, uma chávena e um bule que havia lá em casa.” Eduardo Lourenço sobre a aldeia de S. Pedro, colada a Espanha: Eu só tenho um espaço particular, reservado, que é o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que aí vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo ou o mundo estava em mim. Depois, nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei.” A pintora, depois de ter estudado no Porto, andou pelo mundo mas regressou. O escritor, depois de ter estudado e ensinado em Coimbra, ficou pelo mundo, embora regresse sempre que possa. Mostrando uma generosidade que, por não sere comum entre nós, merece os maiores encómios, ofereceram a primeira um conjunto das suas telas e o segundo um conjunto dos seus livros às cidades em cujos liceus ingressaram, ao deixarem as suas pobres aldeias. A oferta é a todos nós. Os novos Museu e Biblioteca não podiam deixar de ter os seus nomes.

Estive na inauguração da Biblioteca Eduardo Lourenço, um edifício bastante acolhedor contíguo a um velho solar que desde há três anos está ocupado pelo Centro de Estudos Ibéricos, uma iniciativa conjunta da Câmara Municipal da Guarda e das Universidades de Coimbra e Salamanca em resposta a uma sugestão de Eduardo Lourenço. Não foi sem emoção que encontrei os livros do nosso “maître à penser” vindos da sua casa francesa. Deles disse o doador: “Com esta doação e outra futura que se prepara dos meus outros livros, eu estou dizendo adeus a mim mesmo e preparando o mais confortável dos túmulos que é o de saber que assim continuarei entre gente que teve alguma consideração por aquilo que sou e que escrevi”. Os livros ficam infelizes se não forem lidos e os de Lourenço esperam impacientes, na sua nova casa, por novos leitores.

Na cerimónia não foi visto o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, que, honra lhe seja feita, tinha há pouco distinguido Eduardo Lourenço na Gulbenkian. Parece que o ministro não se tem dado muito a ver, embora tenha sido visto no Parlamento a lamentar-se da escassez do seu orçamento e nos jornais a queixar-se amargamente da má execução orçamental dos seus antecessores. Confesso que, quando ele tomou posse, fiquei contente, por pressentir que ia parar o extravagante pólo do Hermitage em Lisboa (este é o tema de uma das outras crónicas do meu livro “O Engenho Luso e Outras Crónicas”, Gradiva, 2008). Mas o meu ânimo logo esmoreceu quando o ouvi dizer que queria “fazer mais com menos”. Adivinhei que ia ser vítima das suas próprias palavras. A fatia de 0,4 por cento do Orçamento de Estado para a cultura é pouco, muito pouco, escandalosamente pouco. A anterior ministra terá comentado, irónica: “O ministro das Finanças fez-lhe a vontade”. Receio que o orçamento não dê para fazer crescer e multiplicar museus e bibliotecas tão exemplares como o de Bragança e a da Guarda, que ajudem a mudar o interior desertificado. O dinheiro, que era pouco, será ainda menos. E não deve chegar para pagar projectos tão extravagantes como o agora divulgado Centro de Arte Africana Contemporânea “África.cont”, tal como o do Hermitage na capital (dizem que cont é de contemporâneo, mas pode apenas indicar que falta dinheiro para o resto das letras). A cultura continua a ser um parente pobre do governo. Dá a ideia que é um enfeite, um penacho no chapéu dos governantes. É uma pena!

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