Por Que Escrevo e Outros Ensaios, de George Orwell, estará à venda a partir de 22 de Maio, numa edição da Antígona, com selecção, introdução, tradução e notas minhas. Eis a introdução que escrevi para esta edição:
"George Orwell" é o nome literário de Eric Arthur Blair, que nasceu a 25 de Junho de 1903 no estado de Bengala, na Índia, e morreu de tuberculose em Londres no dia 21 de Janeiro de 1950, sem chegar a completar 47 anos. Hoje em dia é conhecido sobretudo como autor de A Quinta dos Animais (1945), publicado com o título O Triunfo dos Porcos, em Portugal, e A Revolução dos Bichos, no Brasil, e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949), ambas denúncias vívidas e subtis de estados totalitaristas.
Contudo, a obra de Orwell não se esgota nestas obras ficcionais mais conhecidas. Orwell foi também um dos mais importantes ensaístas de meados do séc. XX. A selecção de ensaios que John Carey preparou para a Everyman's Library (2002) tem 1369 páginas. São artigos de dimensão variável que Orwell publicou entre 1928, altura em que assinava ainda como Eric Blair, e 1949. Entre esses ensaios encontra-se trabalhos curtos, de apenas duas páginas, e outros de maior fôlego, que chegaram a ser publicados em livro. São ensaios que abordam temas políticos e literários, publicados em revistas e jornais, e servidos por uma prosa magistral. Esta antologia reúne uma pequena amostra desses ensaios.
Seleccionaram-se textos historicamente mais influentes, como "Por Que Escrevo", "Política e a Língua Inglesa" e "Um Enforcamento". Outros textos seleccionados foram menos influentes mas são representativos do estilo, argúcia e preocupações de Orwell: "Verdade Histórica", "Linguagem Religiosa", "As Fronteiras da Arte e da Propaganda" e "Literatura e Totalitarismo". Finalmente, incluiu-se também "O Leão e o Unicórnio", representando o aspecto mais intervencionista e quase panfletário do autor; é também o único ensaio desta selecção mais fortemente contextual. Os textos foram ordenados por afinidade temática e não cronologicamente.
Ao contrário do que se poderia esperar, "Por Que Escrevo" (1946) não é uma confissão intimista, ainda que seja realmente íntima e de extrema sinceridade. O interesse principal de Orwell não é a sua interioridade, mas antes a realidade exterior. É um escritor descentrado, contrastando profundamente com autores que têm como único objecto de interesse, seja estético seja ensaístico, o seu próprio Eu — as complexidades psicológicas do próprio autor, ou a expressão dos seus afectos, ainda que recorrendo a personagens ficcionais. Como o próprio Orwell declara numa passagem notável deste ensaio, "Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar" (p. 12).
"Política e a Língua Inglesa" (1945) é um dos mais importantes, conhecidos e estudados ensaios de Orwell, e apresenta com mestria as conexões entre a linguagem obscura e a manipulação política. Esta sensibilidade à manipulação do pensamento por via da linguagem está presente tanto em A Quinta dos Animais como em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, que introduziu o termo newspeak, que entrou já para os dicionários de língua inglesa. Não se trata apenas de dizer o óbvio: que a linguagem tanto serve para dizer a verdade como para mentir. O que Orwell sublinha é o modo como se mente e manipula com linguagem falsamente sofisticada, e o modo como o próprio autor pode estar a ser manipulado pela linguagem que usa, sem se dar conta disso.
A sua preocupação com o aspecto estilístico da linguagem, presente neste ensaio mas também referida em "Por Que Escrevo", poderá parecer estranha, se Orwell for erradamente visto como um autor sem estilo. Na verdade, Orwell cultiva deliberadamente um estilo extremamente cuidado e muito difícil de dominar. É um estilo preciso e espartano mas de extremo poder expressivo.
Nos ensaios "Verdade Histórica" e "Linguagem Religiosa" (ambos de 1944), o tema da manipulação linguística é aplicado a dois casos particulares. No primeiro, trata-se de manipular a verdade histórica para conseguir fins políticos. No segundo, trata-se de manipular a expressão do pensamento para ocultar de nós mesmos a falência do pensamento religioso.
Estes ensaios que abordam a linguagem exibem claramente o forte interesse de Orwell pela verdade. E é por causa deste interesse que Orwell não é um escritor ideológico: é um escritor político, mas não ideológico, no sentido em que não procura distorcer a realidade para melhor a adaptar às suas ideias. A ideologia é uma forma inautêntica de pensar, de costas voltadas para a realidade. Atento a isto, Orwell chama a atenção uma vez e outra para a necessidade de olhar cuidadosamente para a realidade e de não deixar os lugares-comuns da nossa ideologia preferida pensar por nós. A mentira que Orwell quer denunciar é tanto mais difícil de detectar quanto mais firmemente acreditamos nela, e por isso é tão importante para ele não apenas a denúncia da mentira do estado totalitarista, referida em "Verdade Histórica" e "Política e a Língua Inglesa", mas também a mentira de nós para nós, referida em "Linguagem Religiosa".
Os ensaios "As Fronteiras da Arte e da Propaganda" e "Literatura e Totalitarismo", ambos de 1941, retomam o tema do envolvimento político do escritor, abordado em "Por Que Escrevo". Não se trata apenas de defender que em conturbados períodos históricos toda a arte tem de ser política. No primeiro ensaio, Orwell defende que ao dar atenção ao conteúdo político da arte, a crítica literária se enriqueceu, abandonando a ideia da arte pela arte. No segundo, defende que o totalitarismo moderno destrói a possibilidade da boa literatura por estar constantemente a manipular a verdade. Segundo Orwell, o principal obstáculo à literatura nos estados totalitaristas não é tanto as perseguições políticas e a censura, mas a interferência emocional que decorre da manipulação constante da verdade.
Os primeiros seis textos desta antologia apresentam-nos Orwell no seu melhor, enquanto ensaísta de peças relativamente curtas. O sétimo, "Um Enforcamento" (1931), foi um dos primeiros trabalhos publicados de Orwell, assinado ainda como Eric A. Blair. Nele descreve com precisão um enforcamento a que assistiu enquanto membro da Polícia Imperial, na Birmânia. Não é pois um ensaio no sentido estrito do termo, mas um memorial. Apesar de muito precoce na carreira de Orwell, exibe os seus traços característicos: um estilo ático e preciso, um comprometimento político e uma precisão milimétrica. Não é um panfleto retórico contra a pena de morte, mas antes um retrato preciso, objectivo e distanciado — tanto mais tocante por isso mesmo — da desumanidade de um enforcamento. Este texto ilustra bem como a literatura pode ser política, mesmo não sendo ensaística no sentido mais estrito do termo.
A última selecção desta antologia, "O Leão e o Unicórnio: O Socialismo e o Génio Inglês" (1941), apresenta-nos o aspecto mais intervencionista de Orwell. Este longo ensaio foi publicado em livro em plena segunda guerra mundial, começando com a inesquecível frase "Enquanto escrevo, seres humanos civilizadíssimos sobrevoam-me, tentando matar-me" (p. 50). Orwell critica fortemente a passividade inglesa no que respeita ao totalitarismo de Hitler, tece fortes críticas à estrutura económica da sociedade inglesa e defende a sua visão socialista da economia. Contudo, critica fortemente o pensamento de esquerda inglês, quer por ser favorável à tirania soviética, quer por ser o produto de intelectuais desligados da realidade.
Seria possível escolher outros textos de Orwell igualmente representativos para esta antologia, e é certamente possível fazer mais antologias desta dimensão. Orwell tinha o dom de escrever com rara lucidez e elegância sobre os mais diversos assuntos literários, políticos ou sociais. Lemo-lo hoje porque precisamos da sua lucidez, do seu apego à verdade e do seu inimitável estilo ático. Em grande parte, porque o mundo da política é hoje mais manipulador, a sociedade mais controlada pela publicidade e pelas grandes corporações, os governos mais ficcionais e a vida em geral menos livre e honesta.
terça-feira, 13 de maio de 2008
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