sexta-feira, 17 de setembro de 2021

PIO ABREU E A HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA

José Luís Pio Abreu (n. 1944 em Santarém) é um psiquiatra com actividade em Coimbra, onde foi professor na Faculdade de Medicina e médico nos Hospitais da Universidade (hoje Centro Hospitalar Universitário de Coimbra). Tornou-se conhecido do público pelos seus livros sucessivamente reeditados – destaca-se o best-seller Como Tornar-se Doente Mental (Quarteto, 2001; 24.ª ed., Dom Quixote, 2016) – e pela sua intervenção cívica, que passou por crónicas na imprensa (o livro Estranho Quotidiano, saído na Dom Quixote em 2010, com prefácio de Maria Filomena Mónica, reúne as curiosas crónicas que publicou no jornal Destak).

Acaba de sair na Dom Quixote o seu último livro Pequena História da Psiquiatria. Os desafios das doenças mentais, que é um resumo, naturalmente na óptica do autor, da evolução da ciência psiquiátrica. Em 192 páginas o autor passa em revista os marcos mais importantes da psiquiatria. Isso é feito na primeira parte (intitulada “O Passado”), que ocupa dois terços do livro, a começar com o alemão Franz Mesmer, o médico criador da teoria do magnetismo animal no final do século XVIII, e com o francês Philippe Pinel, representado na bela capa a libertar os alienados do asilo de La Salpêtrière, em Paris, no ano de 1795 (numa pintura muito posterior). Pinel é considerado o «pai da psiquiatria», por ter passado a tratar humanamente as pessoas com perturbações mentais e a classificar estas perturbações, depois de ter sabido do suicídio de um amigo. Como não podia deixar de ser, Pio Abreu dedica espaço ao francês Jean-Martin Charcot, fundador da neurologia moderna, e ao austríaco de origem judaica Sigmund Freud, criador da psicanálise. Pio Abreu não esconde as críticas que a ciência hoje faz a Freud, mas aponta também os seus méritos, entre os quais o de fazer passar os tratamentos psiquiátricos para consultórios privados. Explica que o êxito de Freud se deve, em grande medida, aos seus continuadores judeus nos Estados Unidos depois do Holocausto no Velho Continente. É também destacado o alemão Emil Kraepelin, o fundador da psiquiatria científica moderna, ao defender que as doenças mentais são causadas por transtornos biológicos, tendo algumas delas base genética.

Pio Abreu dá grande atenção ao uso de drogas para tratar de doenças mentais, começando no século XIX com a morfina e continuado ao longo do século XX com a insulina, o lítio, a clorpromazina e a levodopa. E dá também o devido realce aos manuais norte-americanos de classificação de doenças mentais, os DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. A primeira versão foi o DSM-1, de 1952 e a última o DSM-5, de 2013. Para que se veja a evolução face à homossexualidade: esta só deixou de ser considerada doença no DSM em 1974!

O autor historia a evolução em Portugal da psiquiatria, desde o Abade Faria, nascido em Goa e com actividade em França, um dos primeiros estudiosos da hipnose. Uma personagem inspirada por ele aparece no romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Pio Abreu discute o papel de António Egas Moniz, o nosso único Prémio Nobel na área das Ciências (de Fisiologia ou Medicina, em 1949): ele foi o autor de uma tese doutoral intitulada A Vida Sexual (1901), onde a homossexualidade é considerada uma doença curável por psicoterapia e hipnose, e o precursor de uma técnica de psicocirurgia assaz criticada, a leucotomia pré-frontal, que deixou de ser usada graças aos avanços dos psicofármacos. Egas Moniz foi também pioneiro na recepção de Freud entre nós, o que passou por uma biografia de Júlio Dinis (de cuja morte passam este ano 150 anos), onde há uma leitura psicanalítica de Uma Família Inglesa. No livro de Pio Abreu não está, mas Egas Moniz foi médico de Fernando Pessoa e de Mário de Sá Carneiro. O autor descreve também em traços gerais o trabalho de grandes médicos como Miguel Bombarda, António de Magalhães Lemos, Júlio de Matos e José Sobral Cid, cujos nomes estão associados a hospitais psiquiátricos respectivamente em Lisboa, Porto, Lisboa e Coimbra. Quem quiser saber mais sobre a história da psiquiatria ganha em consultar a tese defendida em 2015 na Universidade de Coimbra pelo médico José Morgado Pereira A Psiquiatria em Portugal. Protagonistas e história conceptual (1884-1924), que se encontra on-line.

Na segunda parte (intitulado «Presente Contínuo»), que ocupa o terço final do livro, o autor apresenta um ponto da situação da psiquiatria hoje, enumerando questões que permanecem em aberto, apesar dos grandes avanços na imagiologia cerebral e na sequenciação genética. Conclui: «A mente está para o cérebro como a vida está para o corpo. Corpo e cérebro são estruturas espaciais. Mas a vida e a mente são o corpo e o cérebro ao longo do tempo.» O livro tem no fim um útil índice onomástico, algo que não é muito usual nos livros portugueses. Encontramos lá, na letra C, o nome de Arsélio Pato de Carvalho, o biólogo que fundou em Coimbra em 1989 o primeiro centro de neurociências português.

Aprendi muito neste livro. Por exemplo, não sabia que Freud começou a sua carreira num laboratório de fisiologia a comparar cérebros humanos com os das enguias, que ele dissecava (mais tarde haveria de as considerar símbolos fálicos). E não tinha a noção de que o filósofo alemão Karl Jaspers, com formação em medicina e expulso pelos nazis da Universidade de Heidelberg, teve uma actividade tão determinante na área da psiquiatria. Para já não falar da curta ideia que tinha da influência da indústria farmacêutica no desenvolvimento da ciência psiquiátrica, que permitiu substituir tratamentos violentos como os que aparecem no filme Voando Sobre um Ninho de Cucos, de Miloš Forman (dos tratamentos antigos quase que só resta o electrochoque, eficaz em certos casos).

Na Pequena História da Psiquiatria fica demonstrado o bom poder de síntese do autor, que está alicerçada na sua longa carreira médica, ao longo de cinco décadas, e na sua bibliografia tanto científica como pedagógica e de divulgação. De vez em quando, em caixas sombreadas, ele remete para obras suas anteriores. O primeiro livro de Pio Abreu, sobre quadros clínicos de depressão, foi publicado em 1973, em colaboração com o psiquiatra Adriano Vaz Serra, catedrático de Psiquiatria em Coimbra e director desse serviço no hospital. Seguiu-se O Modelo do Psicodrama Moreniano (HUC, 1992; Climepsi, 2019), uma terapia criada por um médico romeno, emigrado para os Estados Unidos devido à perseguição aos judeus. Pio Abreu é também autor de manuais universitários bem-sucedidos do prelo da Fundação Gulbenkian: Introdução à Psicopatologia Compreensiva (2004; 7.ª ed., 2015) e Elementos de Psicopatologia Explicativa (2012; 2.ª ed., 2014). Para a mesma Fundação traduziu Neurofisiologia Sem Lágrimas, de William MacKay (1999; 6.ª ed., 2016).

Antes do marco bibliográfico que foi Como Tornar-se Doente Mental, Pio Abreu publicou Comunicação e Medicina (Virtualidade, 1998) e O Tempo Aprisionado (Quarteto, 2000). Depois passou para a Dom Quixote, onde saíram, para além do já referido Estranho Quotidiano, os livros Quem Nos Faz Quem Somos: Genes, signos, identidades (2007), para o qual escrevi um prefácio, O Bailado da Alma (2014), sendo a mente o novo nome da alma, e A Queda dos Machos: Cartas às minhas amigas (2016, 2.ª ed., 2019), sobre questões de género.

É ainda autor de prefácios para livros polémicos: Anti-Freud, de Michel Onfray (Objectiva, 2012), onde o filósofo francês critica abertamente Freud; Maníacos de Qualidade: Portugueses célebres na consulta com uma psicóloga, de Joana Amaral Dias (Esfera do Caos, 2010), filha do psiquiatra conimbricense Carlos Amaral Dias; e Amor e Sexo no Tempo de Salazar, de Isabel Freire (A Esfera dos Livros, 2010).

Como Tornar-se Doente Mental é um título muito original. O seu êxito não será alheio ao título. A partir da 13.ª edição passou a sair na Dom Quixote, tendo os direitos sido vendidos para o Brasil, Espanha e Itália (o autor ganhou em 2016 o prémio italiano Cittá delle Rose). Pio Abreu pega em doenças do DSM e descreve os seus sintomas, para que ironicamente, o leitor possa «escolher» essas formas de loucura.

Devo dizer que o conheço pessoalmente, tendo por ele admiração e estima. Fiquei com a ideia do contacto com ele e com outros psiquiatras (em Coimbra, conheço também o Carlos Braz Saraiva, especialista em suicídio; no Porto, conheço Rui Coelho, para cuja Revista Portuguesa de Psicanálise, já escrevi) que os psiquiatras são das classes profissionais mais interessantes para se ter uma conversa…

A minha experiência com a classe é, até agora, apenas fora do consultório. Diz o povo que «de médico e louco todos temos um pouco». De médico, eu tenho muito pouco, pois nem posso ver sangue. De louco, tenho, como toda a gente, ocasiões. Em entrevista recente à jornalista Clara Soares da Visão, Pio Abreu respondeu assim à pergunta «como não ser doente mental?»:

«Todos podemos ter problemas mentais: ficar fóbico depois de ter um acidente de viação, maníaco quando se tem uma paixão, ou um pouco obsessivo após ter feito qualquer coisa e não poder pensar nela. São crises passageiras, mas é preciso estar atento porque a partir de certo ponto podem tornar-se patológicas. As pessoas podem reinventar-se, experimentar outras formas de estar. Grandes artistas tinham patologias e sempre houve uma relação entre criação artística e doença mental. Costumo dizer que um génio é um louco com sucesso e um louco é um génio sem sucesso.»

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