domingo, 26 de setembro de 2021

ANTÓNIO SOUTO E O TEMPO NA POESIA


Meu artigo no último "As Artes entre as Letras":

O tempo está omnipresente na poesia. Luís de Camões escreveu que «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ Muda-se o ser, muda.se a confiança;/ Todo o mundo é composto de mudança,/ tomando sempre novas qualidades.» O poeta Alberto Caeiro, o heterónimo anti-metafísico de Fernando Pessoa, escreveu: «Vive, dizes, no presente;/ Vive só no presente.// Mas eu não quero o presente, quero a realidade;/ Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.// O que é o presente?/ É uma coisa relativa ao passado e ao futuro. / É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem./ Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.// Não quero incluir o tempo no meu esquema.(…)». E Vitorino Nemésio, no poema «A Tempo», que li na minha «última lição», também glosou a eterna questão do tempo: «A tempo entrei no tempo,/ Sem tempo dele sairei:/ Homem moderno,/ Antigo serei./ Evito o inferno / Contra tempo, eterno/ À paz que visei./ Com mais tempo/ Terei tempo:/ No fim dos tempos serei/ Como quem se salva a tempo./ E, entretanto, durei.»


Tive recentemente oportunidade de apresentar um livro de poesia em que o tema do tempo está omnipresente. A sessão, organizada pela editora On y va do escritor (também poeta) algarvio António Manuel Venda, decorreu no Solar do Alambique, uma casa de campo em Angeja, Aveiro, porque o poeta é natural dessa terra. António Souto (n. 1961) é autor de cerca de uma dezena de obras, entre poesia e crónica. Formado em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade de Lisboa, é professor de Português na Escola Secundária de Camões, em Lisboa, a escola onde ensinaram, entre outros grandes nomes das nossas letras, Aquilino Ribeiro, Virgílio Ferreira e Rómulo de Carvalho/António Gedeão (Jorge de Sena foiaí  aluno de Rómulo no Camões).


O novo livro intitula-se A Seiva dos Dias. O próprio título remete para a ideia de tempo, que está presente num número substancial dos poemas: basta olhar para os muitos títulos que falam de dias, meses e de estações do ano. Além das questões mais ou menos metafísicas do tempo, o poeta atém-se, por vezes, a coisas comezinhas do dia-a-dia. Como a poesia chama outra poesia, invoca amiúde a voz de outros poetas: Caeiro e outros heterónimos de Pessoa é um dos seus preferidos, mas também Cesário Verde, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, José Saramago e Manuel Alegre.


O seu primeiro livro de poesia foi Horizonte Vertical (edição de autor, 1984), com prefácio Mário da Rocha. Depois publicou: Arcanas Carícias: poesia (Escritor, 1993), Na Lavra do Dizer (O Contador de Histórias, 1998), com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Caprichos (idem, 2000) e O Tempo das Palavras, com Armindo S. (Sinapis Editores, 2010), com prefácio de João de Melo. Estres cinco volumes iniciais foram reunidos em O Milagre do Entardecer (On y va, 1.ª ed., 2019, e 2.ª ed., 2021). A seguir publicou mais dois volumes poéticos Sonhos Sobrantes (DebatEvolution, 2014), com prefácio de Luiz Fagundes Duarte, e Palavras (In)Adiáveis (idem, 2018), cujos conteúdos essenciais estão nas segunda e terceira partes de A Seiva dos Dias, sendo a primeira parte um conjunto de inéditos.


Alguns poemas tratam do tempo passado há muito, o tempo da infância vivida em Angeja. Escreveu um dia o autor sobre si próprio: «Começou cedo o encontro com a poesia, antes mesmo de lhe decifrar aquele recheio que as palavras traduzem. Pelos quintais e campos e montes e pinhais, cachopo ainda, a natureza oferecia-se aos sentidos todos, e foi a minha primeira página em branco.» Escolho um poema, «Pirilampos», sobre esse tempo de iniciação, um tempo que jamais voltará: «Tinham entre nós um nome/ luze-cus// pelas escuridões demoradas da/ infância tardia/ corríamos à sua volta em jogos de cabra-cega e/ acompanhávamos em cada pirueta/ as sereias das noites de incêndio/ rua abaixo rua acima/ rua acima rua abaixo/ até que acabava quase sempre um deles no/ aconchego íntimo das mãos/ e havia um deslumbramento cintilante/ a jorrar dos olhos// depois/ ah depois/ estafados e dormidos/ enchíamos a alma de sonhos e de estrelas.” Poesia simples, mas bastante emotiva.


Escolho, para continuar a dar uma amostra da poesia do autor, do tempo do professorado em Lisboa, o poema “Plátanos desafiantes”, na segunda parte: «os alunos rabiscam respostas a um/ poema de torga/ a mudez é recortada pela/ toada de um pássaro ou dois em ritual/ primaveril/ calou-se agora/ agora retoma// a sala é permeável à natureza toda que é/ cada vez menos no presente da cidade// o pássaro cala-se e um aluno pergunta// o que é uma videira// e o pássaro agora com um coro consigo/ disposto nos plátanos desafiantes e um/ aluno pergunta/ o que são beirais// torga decididamente não é deste reino e/ só os pássaros insistem em fazer ninhos na/ escola fora dos sonhos de quem nela anda/ de quem nela anda/ de quem nela anda». É terrível a situação das escolas onde Torga parece não ter lugar!


Por último, voltando à primeira parte, transcrevo um poema que é uma glosa na outro, «Lisboa ainda», que Manuel Alegre escreveu a 20 de Março de 2020, quando Lisboa estava deserta devido à pandemia que tinha sido declarada escassos dias antes («Lisboa não tem beijos nem abraços/ não tem risos nem esplanadas/ não tem passos/ nem raparigas e rapazes de mãos dadas/ nem praças cheias de ninguém (…)». Souto glosa Alegre em «Encruzilhada»: «Vai para dez dias que te não vejo/ lisboa/ e as saudades começam já a ser de séculos// diz-me o alegre que não tens beijos nem abraços/ que tens somente praças cheias de ninguém/ e eu acredito/ porque é assim que estás/ como está todo o meu país/ e o mundo quase todo/ de estranho luto enclausurado// dias e noites noites e dias/ silêncios vazios e comédias divinas em cada lar// mas diz-me o poeta/ também/ que ainda resistes/ e eu sei que é verdade/ porque sei que tens dentro de ti sempre/ e pelo tejo fora despontares de primavera/ corações que pulsam e jardins vestidos de esperança.» Em tempo de pandemia, não são só vacinas que nos salvam: a poesia também.

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