quinta-feira, 30 de setembro de 2021

NOVA ATLANTIS

 A “Atlantís” acaba de publicar o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à informação.

Imprensa da Universidade de Coimbra 

Atlantís - review

v. 41 (2021)

Sumário

https://impactum-journals.uc.pt/atlantis/index

[Recensão a] CARDANO, Girolamo, De Consolatione, a cura di Marialuisa Baldi, revisione filologica a cura di Elisabetta Tonello, Firenze, Leo Olschki, 2019. 295 pp. ISBN 978-88-222-6623-1

Ana Isabel Correia Martins

[Recensão a] MIRANDA, Margarida, Miguel Venegas and the Earliest Jesuit Theater: Choruses for Tragedies in Sixteenth-Century (Jesuit Studies: Modernity through the prism of Jesuit History, volume 23), Leiden – Boston, Brill, 2019. XVI + 240 pp. ISBN: 978-90-04-40705-3

Manuel José de Sousa Barbosa

[Recensão a] HUTCHINSON, G. O., Plutarch’s Rhythmic Prose, Oxford, University Press, 2018. VIII + 338 pp. ISBN: 978–019–8821-71–7

Aurelio Pérez-Jiménez

[Recensão a] LEÃO, Delfim F. & LANZILLOTTA, Lautaro Roig (Eds.), A Man of Many Interests: Plutarch on Religion, Myth, and Magic. Essays in Honor of Aurelio Pérez Jiménez (Brill’s Plutarch Studies, vol. 2), Leiden, Brill, 2019. 361 pp. ISBN: 978-90-04-40435-9

Joaquim Pinheiro

[Recensão a] GUTIÉRREZ, Daniel, Sócrates y la práctica de la espiritualidad, TeseoPress, Buenos Aires, 2019. ISBN: 978-987-78-3108-5

Francisco Iversen

[Recensão a] ROSSETTI, Livio, Parmenide e Zenone sophoi ad Elea, Petite Plaisance, Pistoia, 2020. 160 pp. ISBN 978-88-7588-256-3

Marco Montagnino

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Atlantís
http://impactum-journals.uc.pt/atlantis

FERNANDO PESSOA E OS TRÊS SALAZARES

 


Minha recensão no jornal I de hoje:

Fernando Pessoa e António de Oliveira Salazar, duas das figuras mais destacadas do século XX português, nasceram com quase um ano de diferença: Pessoa em Lisboa, a 13 de Junho de 1888 (dia de Santo António) e Salazar em Santa Comba Dão, a 28 de Abril de 1889. Mas o seu tempo de vida foi muito diferente: Pessoa morreu na sua cidade natal em 30 de Novembro de 1935, segundo alguns de cirrose hepática e de acordo com outros de pancreatite aguda; Salazar morreu em Lisboa a 27 de Julho de 1970, dois anos depois de ter caído de uma cadeira no Estoril, sofrendo uma lesão cerebral.


Os dois nunca se encontraram. O Estado Novo, através do SNI - Secretariado Nacional da Propaganda, atribuiu em 1934 um prémio ao livro Mensagem, de Pessoa – o seu único livro publicado em vida. Foi o prémio de poesia na «segunda categoria», por lhe faltarem  quatro páginas para o mínimo da «primeira categoria». Salazar discursou na cerimónia de entrega dos prémios, mas Pessoa, talvez já doente, esteve ausente. Morreu nesse mesmo ano. As últimas palavras de Pessoa foram, em inglês, «I know not what tomorrow will bring». Pessoa não podia adivinhar, quando morreu, que o homem que ele viu ascender a ministro das Finanças em 1928 e a Presidente do Conselho de Ministros em 1932 duraria no poder até 1968: 40 longos anos. De facto, Salazar entrou na vida política em 1926, pouco depois do golpe militar de 28 de Maio, mas foi ministro das Finanças apenas por escassos dias. Só passados dois anos, a convite do general Óscar Carmona, voltaria a ser ministro das Finanças, desta vez com carta branca para reduzir o défice através de severa austeridade.


Não se sabe se Pessoa reparou na passagem fugaz de Salazar pela pasta das Finanças. Mas reparou, porque está documentado, quando o autoritário ministro foi empossado pela segunda vez e, ainda mais, quando ele subiu a Presidente do Conselho de Ministros. Apesar de apenas mediarem sete anos entre 1928, quando Pessoa escreveu pela primeira vez sobre Salazar, e a última, em 1935, quando escreveu pela última vez, o autor de Mensagem deixou numerosos textos sobre a figura que passou a dominar a política nacional.


Estes textos estão reunidos no livro Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa?, uma recolha publicada pela Guerra & Paz, comentada pelo próprio editor, Manuel S. Fonseca, que lhe antepôs a introdução «Uma pluralidade de Salazares» e lhe acrescentou a «Cronologia Breve de um Ditador Longo». O livro com fotografias dos dois personagens, que aparecem juntos na fotomontagem da capa, os dois de chapéu e sobretudo. Não é a primeira vez que saem textos de Pessoa sobre Salazar: tenho uma larga estante pessoana – mais de três metros de livros dele e sobre ele –  e lá encontrei dele Contra Salazar (Angelus Novus, 2008), da responsabilidade de António Apolinário Lourenço, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar (Tinta da China, 2015), da responsabilidade de José Barreto, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Manuel S. Fonseca faz a devida a referência ao livro de Barreto, que publicou alguns papéis inéditos sobre Salazar tirados da infindável arca pessoana. A nova edição tem o mérito de colocar ao alcance dos leitores de hoje os escritos de Pessoa sobre Salazar - a editora Angelus Novus já não existe e livro de Barreto está esgotado. A edição é de divulgação, pelo que não tem o aparato das referências pormenorizadas nem sequer a usual bibliografia no fim. Mas ficou um livro que se lê rapidamente, com os textos arrumados por ordem cronológica e os comentários bem separados graficamente dos textos pessoanos.


Li-o com gosto. Fernando Pessoa escreve muito bem: a sua prosa faz por vezes lembrar a do padre António Vieira, a quem ele chamava «o imperador da língua portuguesa». E a sua poesia satírica sobre Salazar tem muita graça.


Quantos Salazares houve segundo Pessoa? Três. O primeiro é encomiástico. Fernando Pessoa nutria simpatia pela Ditadura Militar, considerando-a uma inevitabilidade face à desordem da Primeira República. Lembro que ele foi simpatizante de Sidónio Pais, um outro professor de Coimbra, não de Direito mas de Matemática. Pessoa era, como confessa numa nota biográfica publicada no final do livro, monárquico, mas achava a monarquia inviável entre nós. Diz, referindo-se a si próprio: «Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia complemente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo.» Socialmente, declara-se «anticomunista e antissocialista». E, quanto à religião: «Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel (…) à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (…)».

Antipatiza não só com o comunismo, mas também com o fascismo (na altura esta expressão referia-se apenas ao regime de Mussolini). Sobre o fascismo, afirma Pessoa por volta de 1924: «Os fascistas matam seu pai mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro». Em 1925, escreveu, descortinando paralelismos entre fascismo e comunismo: «Seguimos o princípio contrário ao do tio Mussolini e ao do abade Lénine. Desoprimir! Tornar os outros diferentes do que nós queremos!».


Sobre a Ditadura Militar portuguesa diz que «surgiu na paisagem politica da nação de um modo inesperado, como um comboio onde não há linha». E, sobre Salazar, as primeiras palavras são por volta de 1929: «Só um místico, embora imperfeito, como Sidónio, ou um temperamento ascético, como Salazar, têm o isolamento natural para poder agitar sobre, porque contra, a turba.» Em 1930, depois de Salazar ter imposto o superavit nas contas, diz: «Salazar é hoje o homem de maior prestígio em Portugal, é o homem que manda sozinho, embora seja um civil, no governo militar português, e contudo (…) é um mero Ministro das Finanças.» E, passados dois anos: «No meio de um povo de incoerentes, de verbosos, de maledicentes, por impotência e espirituosos por falta de assunto intelectual, o lente de Coimbra (Santo Deus! De Coimbra!) marcou como se tivesse caído de uma Inglaterra astral.»


O segundo Salazar já era chefe do governo. Não nutre por ele grande consideração intelectual. Em 1932, escreve: «O Sr. Oliveira Salazar é, sem dúvida, mais alguma coisa do que financeiro. Infelizmente o que ele é mais é católico.» E, na mesma altura: «O Chefe de Governo não é um estadista: é um arrumador (…) É sempre e em tudo um contabilista, mas só um contabilista. Quando vê que o país sofre, troca as rubricas e abre novas contas. Quando sente que o país se queixa, faz um estorno. (…) Assistimos à cesarização de um contabilista.» Ainda nessa época: «Um cadáver emotivo, artificialmente galvanizado por uma propaganda. Duas qualidades lhe faltam – a imaginação e o entusiasmo. Para ele o país não é a gente que nele vive, mas a estatística dessa gente. Soma, mas não segue.» E, noutro texto, ironiza: «Mais valia publicar um decreto-lei que rezasse assim: Art.º 1 -  A. de O. Salazar é Deus.»


Por último, aconteceu-lhe incompatibilizar-se com o regime. Primeiro foi a proibição da Maçonaria em 1935 por decreto-lei, tendo Pessoa publicado no Diário de Lisboa o texto «As Associações Secretas», reproduzido no livro, e depois foi o discurso de Salazar na entrega dos prémios do SNI, em que ele instava os escritores a apoiarem o regime. Pessoa não era maçon, mas achava absurdo proibir a maçonaria. O aparelho do Estado Novo caiu-lhe em cima. Pessoa escreveu: «Pela primeira vez na minha vida fabriquei uma bomba. Cerquei a sua dinamite de verdade com um invólucro de raciocínio; pus-lhe um rastilho de humorismo. Feita, atirei-a aos opositores da Maçonaria. E o efeito foi não só retumbante mas milagroso. Perderam a cabeça sem a ter.»


Escreveu a Casais Monteiro: «Ficámos sabendo, todos os que escrevemos, que estava substituída a regra proibitiva da Censura, “não se pode dizer isto ou aquilo”, pela regra soviética do Poder, “tem que se dizer aquilo e isto.”» Pessoa passou-se e chama a Salazar «seminarista da contabilidade.»


Alguns versos dão conta do desdém que passou a votar ao ditador. Escreveu estes versos violentos: «Olhem, vão p’ra o Salazar/ Que é a puta que os pariu.» E estoutros: «Este senhor Salazar/ É feito de sal e azar/ Se um dia chove,/ A água dissolve/ O sal,/ E sob o céu/ Fica o azar, é natural./ Oh, c’os diabos!/ Parece que já choveu… - Coitadinho/ do tiraninho! Não bebe vinho,/ Nem sequer sozinho…» Infelizmente a morte impediu a continuação da sua verve.


Manuel Fonseca, nascido em Angola em 1951, é formado em Filosofia e tem larga experiência na área do audiovisual: trabalhou na Cinemateca, na RTP, na SIC e na Valentim de Carvalho. Fundou a editora Guerra & Paz, que já publicou outros livros com recolhas de Fernando Pessoa. Destaco as antologias, todas de 2018: Conselhos às Malcasadas; Absinto, Ópio, Tabaco e outros Fumos; e Tenho Medo de Partir Um Livro de Viagens. E as edições especiais: Minha Mulher, a Solidão (2015) e Tabacaria (2016). Além de editor, Fonseca é cronista do Jornal de Negócios e Correio da Manhã.


Manuel Fonseca é um apaixonado por Pessoa. O seu novo livro ajudará a que mais gente se apaixone.

O vira de Coimbra

 


Meu artigo no "Campeão das Províncias":

A imprevisibilidade do voto popular é um dos encantos da democracia. Viradas as urnas, há uma viragem clara em Coimbra. A coligação liderada por José Manuel Silva, onde o PSD manda, “esmagou” o PS, tirando o lugar de Presidente da Câmara, que parecia vitalício, a Manuel Machado.


Há evidente mérito de José Manuel Silva, que, eleito pelo Somos Coimbra em 2017, foi combativo na Câmara, e também de Rui Rio, que o escolheu contra as estruturas locais do partido. A proposta do PSD da transferência do Tribunal Constitucional para Coimbra (que eu apoio!) foi uma boa cartada, que embaraçou o PS. Foi muito mais eficaz do que prometer um aeroporto ou uma marina. E há um evidente demérito de Manuel Machado, que pouco tinha para oferecer além de alcatrão nalgumas ruas e uns canteiros, e de António Costa, que o apoiou, vindo a Coimbra dizer que só faltavam “700 metros” (sic) para a nova maternidade. O presidente cessante foi, durante a campanha, muito displicente. Sendo fraca a sua entourage, não fez a renovação que se impunha.


A aritmética eleitoral é simples: a coligação vencedora juntou os votos do PSD e do ex-Somos Coimbra, ao passo que o PS continuou a sua trajectória descendente que vinha de trás. Coimbra mudou porque estava saturada da arrogante governação do PS, que, ao longo de muitos anos, foi deixando cair a relevância da Lusa Atenas no todo nacional. Há coisas que podem e devem mudar e que estão prometidas pelos vencedores: facilidades camarárias para o investimento, melhoria dos transportes, descentralização para as freguesias, etc. Mas há outras que serão mais difíceis de mudar, até pela sua ausência no programa, como a necessária mudança na “Capital Europeia da Cultura 2027” (que está sem elã), a maior atenção aos livros e bibliotecas (Coimbra não tem Feira do Livro e tem uma biblioteca municipal abandonada) e o impulso à cultura científica, ligando ciências e humanidades (o PSD não sabe o que fazer na rua da Sofia e no sítio da Penitenciária).


Vamos ver como é que Coimbra vai ganhar protagonismo no país, o que passa pela conjugação entre cidade e universidade. Por exemplo, que propostas terá o PSD para a regionalização, além de albergar em Coimbra o referido Tribunal? Será interessante ver o novo diálogo de Coimbra com o governo central e com as demais cidades das Beiras, na indispensável construção da região. Haverá suficiente habilidade política? Aos novos gestores de Coimbra deve ser dado o benefício da dúvida. É tempo de provarem o que valem.


Quanto aos partidos menores, só o PCP terá um vereador. Caiu em votos, tal como no resto do país. Os Cidadãos por Coimbra caíram também: apesar de algumas boas propostas, não conseguiram sair do nicho, livrando-se da sua ligação ao Bloco de Esquerda. A coligação vencedora talvez precise dos Cidadãos na Assembleia Municipal. Por último, uma palavra sobre a freguesia onde voto, Santo António dos Olivais: aí a superioridade da coligação liderada pelo PSD foi muito mais acentuada do que no concelho.


Coimbra virou. Ganhou a democracia e tenho esperança que Coimbra e a região ganhem.

Carlos Fiolhais


APRESENTAÇÃO DO CONCERTO MUSAS EM CONÍMBRIGA



PRIMEIRA PARTE 


Sejam muito bem-vindos ao concerto de encerramento da segunda edição do Musas –

Festival das Artes de Conímbriga organizado pela Orquestra Clássica do Centro EM parceria com o Museu Monográfico de Conímbriga, o POROS e a Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova. A Dr.ª Emília Martins, que tem dirigido o projecto da Orquestra Clássica do Centro, deu-ma e honra de falar sobre “O Tempo e a Terra” num outro concerto deste Festival, que decorreu no impressionante cenário do Vale das Buracas do Casmilo. Foi uma maneira de ligar a música ao património natural.

 

Hoje vou procurar ligar a música ao património histórico. Como o tema do festival é o tempo, o cenário do concerto desta noite remonta não aos 170 milhões de anos do tempo geológico, mas aos dois mil anos do tempo histórico. Conímbriga é, parece inútil lembrá-lo, uma cidade, que embora tenha tido ocupação pré-histórica, pertenceu ao Império Romano. A sua grandeza justifica a sua classificação como monumento nacional e a sua candidatura a Património Mundial da Humanidade, que está em andamento. Os Romanos chegaram aqui em 138 a.C. comandados pelo general Décimo Júnio Bruto. Atingiu o seu apogeu na época do imperador Augusto, que viveu de 63 a. C a 14 d.C, portanto o tempo em que nasceu Jesus Cristo. O poder romano começou a decair na segunda metade do século III quando tribos ditas “bárbaras” invadiram a Península. Só mesmo no final do seculo XIX a cidade seria ressuscitada com o labor de arqueólogos, dos quais é justo destacar Virgílio Correia, um pioneiro da arqueologia romana, e Adília Alarcão, que esteve quase três décadas à frente das ruínas e do Museu (recordo que museu vem de musas!), criado em 1962. Estamos aqui bem no meio da cidade romana, um sítio musicalmente muito antigo: Embora não tenham sido tão criativos como os gregos, os Romanos cultivaram música (recordo que música também vem de musas!), facto que numerosas representações chegadas até nós bem documentam.

 

Hoje vamos desfrutar neste magnífico cenário do som da Orquestra Clássica do Centro, dirigida pelo maestro espanhol Sérgio Alapont. O nosso maestro estudou direcção de orquestra em Pescara, Itália, e em Nova Iorque, EUA, recebeu o prémio de melhor maestro dado pelo GBOSCAR, Itália, em 2016, e ganhou a 2.ª edição do prémio de maestros de Granada. Já dirigiu algumas das mais famosas orquestras do mundo, nalguns dos melhores palcos do globo.

 

Iremos ouvir música norte-americana do século XX – música de Copland e Gershwin, dois dos maiores compositores americanos novecentistas – e, recuando no tempo,  música russa do século XIX - Borodin e Tchaikovski, dois dos maiores compositores russos oitocentistas. Ouviremos também dois temas corais, um do século XX de Ennio Morricone, o famoso compositor italiano que fez numerosas músicas para filmes e que nos deixou no ano passado, e outro do século XIX, um grande clássico, do incomparável Giuseppe Verdi. Esses temas serão interpretados pelo Coro Coimbra Vocal, que actuou recentemente com Andrea Bocelli em Coimbra.

 

Passei também um tempo da minha vida nos Estados Unidos, no tempo em que ainda havia CDs. Não admira por isso que dois dos compositores que mais admiro sejam os norte-americanos Aaron Copland e George Gershwin, que foram contemporâneos. Têm semelhanças: são os dois judeus noviorquinos, ambos nascidos em Brooklyn, ambos com famílias oriundas do Nordeste da Europa: Copland da Lituânia e Gershwin da Ucrânia. Ambos sentiram necessidade de americanizar o nome. Copland começou por ser Koplan, com K, e Gershwin tinha um nome muito mais complicado,  Gershowitz. Os dois foram  exímios pianistas e os dois tiveram estadas em Paris. Os dois fizeram música para concertos e para filmes, tendo percebido que o século XX era o século da sétima arte. Os dois transmitiram retratos da vida americana. E os dois alcançaram enorme e merecido êxito. A grande diferença é que Copland morreu em idade avançada, com 90 anos, enquanto Gershwin morreu com apenas 38 anos.

 

Aaron Copland (1900-1990) actuou, ainda  criança, ao piano, no que são hoje os armazéns Macys, em Nova Iorque. Aos 15 anos depois de ouvir um concerto do pianista e compositor polaco Ignacy Paderewsky, resolveu tornar-se não só pianista como compositor. Estudou em Paris nos anos 20, com a famosa pianista Nadia Boulanger, e conheceu uma plêiade de artistas da época, não só da música como de outras artes. Paris fervilhava na época! Regressado a Nova Iorque em 1925, viveu durante mais de três décadas perto do Carnegie Hall, em 1925. Um dos seus maiores prémios foi o Pulitzer de Música atribuído em 1945, precisamente a meio da sua longa vida. No final dos anos 40 Copland regressaria a Europa para se encontrar com Pierre Boulez e Arnold Schoenberg, tendo adoptado o método deste último. Nos anos 50 foi vítima da caça às bruxas do senador McCarthy, tendo  sido obrigado a declarar que nunca tinha sido comunista. O mesmo sucedeu aliás ao físico Frank Oppenheimer,  também judeu, que foi um dos cérebros da bomba atómica. Copland era homossexual, uma palavra maldita nos seu tempo. Morreu de Alzheimer, uma doença infelizmente cada vez mais comum.

 

Um dos seus maiores sucessos é a Fanfarra para o Homem Comum, que vamos ouvir.  É um hino patriótico, escrito em 1942 quando os EUA já tinham entrado na Segunda Guerra Mundial. A Sinfonia n.º 3, escrita por Copland entre 1944 e 1946, retoma esse tema. A Fanfarra foi escrita para a Orquestra Sinfónica de Cincinatti, tendo o título encontrado inspiração num discurso de Henry Wallace, vice-presidente de Franklin Roosevelt, em que ele falava do “amanhecer do século do homem comum”. Foi uma resposta musical à entrada dos EUA na guerra, em Dezembro de 1941, como que chamando o homem comum para o esforço bélico. A estreia em Nova Iorque a 12 de Março de 1943, no dia final do prazo da entrega do IRS nos EUA: “Estou a homenagear o homem comum no dia dos impostos.” E os impostos iam para a guerra…

 

A música é intemporal: este hino conheceu em 1977 uma adaptação da banda de rock britânica Emerson, Lake and Palmer, quando a guerra era apenas fria. Mas foi usado depois em vários contextos. O compositor norte-americano John William inspirou-se nele para os filmes Superman e  Resgate do Soldado Ryan. Em 2012 foi tocado no aeroporto internacional de Los Angeles quando o space shuttle Endeavour aterrou pela última vez. Foi tocada em Filadélfia numa visita do Papa Francisco. Costuma ser tocado na véspera do Ano Novo em Times Square, em Nova Iorque, quando sobe a bola que há-se cair à meia-noite. Está portanto associada à passagem do tempo…

 

George Gershwin (1898-1937) também nasceu em Nova Iorque, mas, ao contrário de Copland, não morreu aí, mas sim em Hollywood, depois de lhe ter sido retirado um tumor cerebral. Escreveu tanto música ligeira como clássica, tendo os seus temas sido imortalizados por grandes artistas. As suas peças mais conhecidas são Rhapsody in Blue ou Rapsódia Azul (1925), que vamos ouvir, e O Americano em Paris (1928), além da ópera Porgy and Bess (1935), que inclui o clássico Summertime, que Ella Fitzgerald,e outros interpretaram. O Americano em Paris foi inspirado pela sua estada na cidade-luz: tal como Copland, Gershwin também rumou na sua juventude a Paris. Mas a professora Nadia Boulanger recusou-o  por recear  que uma formação demasiado clássica perturbasse a sua natural propensão para o jazz.  Quando Gershwin pediu para estudar com Maurice Ravel, este comentou que ele é que “devia ter lições dele”. Influenciado por Ravel e Debussy, Gershwin esteve sempre a meio caminho entre a música clássica e o jazz.

 

Rapsódia Azul combina jazz com música clássica. Começou a ser escrito para um piano solo e uma banda de jazz. Foi assim que foi estreado em 1924 em Nova Iorque, com Gershwin ao piano. Na altura, Gershwin ainda não sabia o suficiente de arranjo para orquestras e foi um seu amigo que desenvolveu a versão orquestral, que ficou pronta em 1942, quase na mesma altura da Fanfarra para o Homem Comum. A música ficou logo nos ouvidos. A sua abertura da Rapsódia Azul com o solo de clarinete é quase tão famosa como as notas iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven.

 

A peça é um retrato sonoro de Nova Iorque. O pianista chinês Lang Lang diz que quando a ouve, “vê o Empire State Building, o skyline de Nova Yorque e as lojas de Times Square.” Foi usada por Woody Allen no filme Manhattan e pela Disney em Fantasia 2000. Foi tocada por 84 pianistas na abertura dos Jogos Olímpicos de 1984 em Los Angeles. Lembro que foi nesse ano orwelliano que o atleta português Carlos Lopes obteve ouro na maratona olímpica. Acordaram-me de noite a dar a notícia quando estava de férias em Londres e passei rapidamente do susto ao contentamento.

 

Ouviremos a Rapsódia Azul de Gershwin, com a participação especial do pianista Miguel Borges Coelho.  Natural do Porto, em 1971, Miguel Borges Coelho mantém uma carreira de solista e músico de câmara, em paralelo com a sua carreira de professor de piano na Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo, no Porto. É considerado um dos melhores pianistas portugueses da actualidade. Venceu vários concursos nacionais de piano e obteve o Prémio para a interpretação da obra contemporânea no XIV Concurso Internacional de Música do Porto. Em 1998 o Ministério da Cultura atribuiu-lhe o Prémio Revelação “Ribeiro da Fonte”. Tem gravações em várias editoras, alguns delas em discos premiados. Espero que ele não me leva a mal se acrescentar que é sobrinho de um famoso historiador português, que com 92 anos continua a escrever, e filho de um também famoso maestro coral.

 

O terceiro tema que vamos escutar esta noite será as Danças Polovtsianas, de Alexander Borodin (1833-1887), um compositor russo com que tenho particular afinidade pois ele, além de músico, era cientista: notabilizou-se como professor de Química na Academia Militar de São Petersburgo. Pertenceu a um grupo de cinco músicos de ideário nacionalista, o “Grupo dos Cinco”, dirigido por Mil Balakirev, onde pontificavam Mussorgsky e Rimsky-Korsakov. Mas, ao contrário dos seus amigos profissionais da música, considerava-se um “compositor dos domingos.”

 

Apesar de já ter noções de música, tendo inclusive escrito um dueto para piano aos nove anos, foi só ao conhecer Balakirev, em 1862, que passou a compor a sério. Foi ele que o convenceu a juntar-se o “Grupo dos Cinco”, com cujas ideias nacionalistas se identificava. Ajudou-o também a compor sua 1.ª Sinfonia, a qual o próprio Borodin dirigiu, na estreia, em 1869. No mesmo ano, começou a compor a sua 2.ª Sinfonia, que não foi bem recebida quando estreou oito anos depois. Após uma reorquestração, a nova estreia em 1879, dirigida por Rimsky-Korsakov, foi elogiada pelo público. Em 1880, na Alemanha, o húngaro Franz Liszt dirigiu esta mesma sinfonia, dando a Borodin fama fora da Rússia.

 

Em 1869 Borodin começou a compor a sua obra mais notável: a ópera Príncipe Igor. Trabalhou nela durante 18 anos até sua morte, deixando-a incompleta, e foi terminada por Nikolai Rimsky-Korsakov e Aleksandr Glazunov em 1890. As Danças Polovtsianas pertencem precisamente ao Príncipe Igor, embora possam ser executadas em separado como hoje vai acontecer. Estas danças, inspiradas pelo folclore russo,  são muitas vezes apresentadas com coros e, por vezes, são mesmo dançadas. Em 1909, no Théâtre du Châtelet, o empresário Sergei Diaghilev, dos famosos Ballet Russes, apresentou em Paris as Cenas e Danças Polovtsianas, consistindo no 2.º acto do Príncipe Igor, com orquestra completa e coro. Lembro que os Ballets Russes haveriam de visitar Portugal…

 

Borodin ficou conhecido do grande público pela adaptação de criações suas para a música popular. Foi o caso da adaptação feita pelos compositores norte-americanos Robert Wright e George Forrest, de uma de suas peças mais conhecidas, a "Dança Deslizante das Donzelas", do Príncipe Igor, e que se tornou a bem-sucedida canção "Stranger in Paradise", do musical Kismet, de 1953. A versão mais conhecida foi cantada por Tony Bennett, que há pouco deu por terminada a sua longa carreira.

 

Senhoras e Senhores, convosco a Orquestra Clássica do Centro com o maestro Sergio Alapont.

 

 

SEGUNDA PARTE

 

Nesta segunda parte do espectáculo de hoje vamos ouvir o coro “Va, pensiero”,  também conhecido como o “Coro dos Escravos Hebreus” da ópera Nabucco (1842), de Verdi.  Rossini, Donizetti, Puccini, Wagner e outros que me perdoem, mas, para mim. o maior compositor de ópera de todos os tempos é o italiano Giuseppe Verdi.

 

Giuseppe Verdi (1813-1901), nascido em Roncole, na Emília Romana, e falecido em Milão, foi um compositor de óperas do período romântico, sendo considerado no seu país o maior compositor nacionalista, tal qual foi Richard Wagner era na Alemanha. Cada um com o seu estilo, foram dois gigantes. As obras de Verdi continuam a ser executadas com frequência em casas de ópera de todo o mundo e alguns dos seus temas estão enraizados na cultura popular – como, além do "Va, Pensiero" de Nabucco, "Libiamo ne' lieti calici" (ou Valsa do Brinde) de La Traviata e a "Gloria all’ Egito e ad Iside" (ou Marcha Triunfal) de Aida.

 

Quando em 1901 estava hospedado no Grande Hotel de Milão, , Verdi sofreu um derrame cerebral. Faleceu seis dias depois, em 27 de janeiro. O maestro Arturo Toscanini dirigiu a vasta força de orquestras e coros reunidos de toda a Itália no funeral de Verdi, em Milão. O coro de mais de cem mil pessoas foi uma das maiores uniões da história musical.

 

Nabucco é uma das primeiras óperas de Verdi. Conta a história do rei Nabucodonosor  da Babilónia. Foi estreada a 9 de março de 1842, no Teatro Alla Scala de Milão. O “Coro dos Escravos Hebreus” surge no 3.º acto. A letra diz “Va, Pensiero, sull'ali dorate, "Vai, pensamento, sobre asas douradas". O coro tornou-se rapidamente um símbolo do nacionalismo italiano da época,

 

O tema seguinte provém de outro compositor italiano, este do século XX:  Enio Morricone (1928-2020), nascido e falecido, com 91 anos, em Roma. Morricone foi um compositor e maestro italiano que escreveu músicas em diversos estilos. Compôs mais de 400 partituras para cinema e televisão, além de mais de cem obras clássicas. A sua banda sonora para o filme O Bom, o Mau e o Vilão (1966), de Sergio Leone, entrou no Grammy Hall of Fame. A sua filmografia inclui mais de 70 filmes premiados, incluindo vários filmes de Sérgio Leone e de Giuseppe Tornatore, entre os quais Cinema Paraíso.

 

A canção Here’s to you, que escreveu em 1971 com a cantora norte-americana Joan Baez, fez parte da banda sonora do filme Saco e Vanzetti, dirigido por Giuliano Montado. A música é uma homenagem a dois anarquistas de origem italiana, Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, que foram condenados à morte por um tribunal dos EUA na década de 1920. Concluiu-se entretanto que a decisão foi baseada na aversão às suas crenças políticas anarquistas e não em qualquer prova de que eles cometeram o roubo e assassinatos dos quais foram acusados. A canção tornou-se num símbolo internacional para o movimento de direitos humanos da década de 1970. Vários cantores, como a francesa Mireille Matthieu e a grega Nana Mouskouri, as duas vivas, cantaram este tema.  A letra são apenas quatro linhas de texto, cantadas repetidamente.

 

“Para vocês, Nicola e Bart

Descansem para sempre nos nossos corações

O último e final momento é vosso.

A vossa agonia é o vosso triunfo.”

 

TERCEIRA PARTE

 

Para fechar com grande glória e estrondo escutaremos uma peça do extraordinário compositor russo Piotr Tchaikovski, que termina com sinos e tiros.

 

Nascido em Vótkins, bem no centro do Império Russo, e falecido em São Petersburgo, Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893) foi um compositor russo do período romântico, cujas obras são muito populares. Primeiro compositor russo a conquistar fama internacional, a sua carreira foi impulsionada pela sua participação como maestro convidado noutros países da Europa e nos EUA. Foi homenageado em 1884 pelo imperador Alexandre III, passando a receber uma pensão vitalícia.

 

Aos quatro anos de idade começou a tocar piano. O relacionamento com a sua mãe foi complicado, já que aos dez anos foi para um internato e aos 14 anos viveu a morte da mãe, de cólera. Depois de formado em Direito. trabalhou como funcionário público. Foi encorajado por Nicolai Rubinstein, director no Conservatório de São Petersburgo, onde obteve emprego. Relacionou-se com o grupo dos cinco, onde estava Borodin. Casou com uma sua ex-aluna, mas foi uma união breve (dois meses e meio) e traumática. De facto, Tchaikovski era homossexual, tal como Copland.  Tendo gozado de ampla popularidade entre os anos 70 e 90 do século XIX,  recebeu o patrocínio da Sr.ª von Mekk, viúva de um magnata dos comboios. O dinheiro permitiu que ele se concentrasse na sua música. Houve uma forte relação emocional entre os dois por meio de cartas, mas as regras acordadas entre ambos impediam os encontros. A comunicação foi cortada em 1890 por decisão da senhora. Isso abalou o compositor que morreu passados três anos, aos 53 anos, possivelmente por suicídio ou por cólera, tal como a mãe. Isso aconteceu nove dias depois de ter regido a estreia da sua Sinfonia 6 ou Patética em São Petersburgo.. As suas obras mais famosas são os bailados O Quebra Nozes, A Bela Adormecida, O Lago de Cisnes, o Concerto para piano n.º 1, as Sinfonias nº 4, 5 e, claro, a  Patética.

 

A Abertura Solene Para o Ano de 1812 é uma obra orquestral que comemora o fracasso da invasão francesa à Rússia em 1812 e a subsequente devastação do exército de Napoleão. A Campanha da Rússia terminou com a retirada do exército francês: este passou em poucos meses de 600.000 homens a 40.000, uma  das maiores derrotas da história. A Abertura 1812 foi composta para a inauguração da Exposição Universal das Artes, realizada em Moscovo em 1882. A abertura da exposição coincidiu com a consagração de uma nova catedral, erigida para comemorar os 70 anos do fracasso da invasão de Napoleão à Rússia, em 1812, tendo servido também para assinalar o primeiro aniversário da coroação do czar Alexandre III.

 

Esta é uma obra de carácter fortemente nacionalista, tal como a Fanfarra para o Homem Comum de Copland ou o Va pensiero de Verdi. A composição baseia-se num antagonismo entre a inicial vitória francesa e a posterior revanche russa. A França é representada pelo tema da  Marselhesa, hino da Revolução Francesa e da França. E a vitória russa é representada pelo hino czarista Deus Salve o Czar. A obra contrapõe os dois hinos com peças do folclore russo e temas religiosos. A Abertura 1812 começa precisamente com uma melodia inspirada no hino “Deus ajude vosso povo’”, da Igreja Ortodoxa Russa. Após a Revolução Soviética e a consequente proibição do hino czarista, a obra sofreu modificações.

 

A obra é sobretudo conhecida pela sua sequência de tiros de canhão  no final que é, em alguns concertos ao ar livre, executada com canhões verdadeiros por artilheiros fardados a rigor. O concerto da estreia foi realizado na praça em frente ao Kremlin, com orquestra, banda de metais, coro e canhões, além dos sinos das torres do Kremlin  e  da nova catedral do Cristo Salvador, então quase concluída. Em 1891, o próprio Tchaikowski dirigiu a obra na inauguração, do Carnegie Hall em Nova Iorque. No Dia da Independência nos EUA, 4 de Julho, esta música costuma acompanhar o fogo de artifício, desmentindo as rivalidades americano-russas. Aqui os tiros vão ser simulados por instrumentos de percussão, pois a produção não teve meios para a artilharia pesada. É dos trechos de música mais conhecidos de todos os tempos pelo seu final empolgante. Tenho a certeza de que todos sairemos daqui empolgados.

 

Bom final de concerto, deixo-vos com a Orquestra Clássica do Centro!

João Rui Pita - História do Ensino de Farmácia em Portugal

Alzheimer a verdade sobre a Doença do Século | Ciência às Seis (on-line)

terça-feira, 28 de setembro de 2021

“ Há que desconfiar dos métodos educativos que vendem uma aprendizagem fácil e rápida”


 

Acaba de ser publicada em Espanha a obra de Catherine L’ Ecuyer “ Conversaciones con mi maestra” (Esparsa, 2021), um ensaio em forma romanceada “que analisa as principais correntes educativas e procura esclarecer dúvidas de pais, professores e políticos”.

 


 

Numa entrevista conduzida por Nacho Meneses para o jornal El País, no dia 23 de Setembro de 2021 (aqui) a propósito deste último livro, a sua autora, Catherine L’Ecuyer, uma canadiana residente em Barcelona, investigadora doutorada em Educação e Psicologia, esclarece algumas questões e ideias erradas que circulam no presente, desfaz mitos sobre o que deve ser Educar e sobre o papel da escola e dos professores.

 

À pergunta sobre o que está a mais na educação de hoje, responde:

 

Os gurus. Aqueles que se apoderam do papel de divulgador científico, buscando a pedra filosofal pelo caminho mais curto e escapando ao exame da ciência. Os gurus são os que, a coberto da indústria tecnológica, se armam em vendedores de fumaça: didáctica populista, homeopatia educativa, neuromitos, tecnomitos... São criadores de tendências educativas, como se a educação fosse fruto de umas “modas”. Como as tendências primaveris do El Corte Inglés! São sofistas e demagogos, capazes de demonizar a aula magistral através de uma comunicação magistral e de arrancar uma ovação em público.

 

 Um professor que continue a basear o seu ensino em aulas magistrais é hoje um mau professor?

 

A aula magistral não faz sentido na etapa infantil, porque as crianças aprendem através de experiências sensoriais e de relações interpessoais e ainda não desenvolveram a capacidade de abstracção que lhes permite interiorizar uma explicação longa.... A instrução directa, adaptada a cada idade, é a chave.

Porque a criança não nasce sabendo, o educador é a chave. Os métodos de descoberta são importantes porque ajudam a interiorizar o aprendido, mas sempre e quando a criança tenha uma base prévia para poder avançar numa exploração minimamente guiada. Mesmo na etapa infantil, o jogo tem de ser semiestruturado para que haja um propósito inteligente da actividade. De contrário, a educação converter-se-á no reino do acaso. No caos não se aprende.

 

— Os conhecimentos são hoje tão importantes como sempre foram, ou deram lugar ao “aprender a aprender” e ao desenvolvimento de habilidades como o pensamento crítico, a criatividade ou o trabalho em equipa?

 

Há um dilema imaginário e mal colocado entre a educação “nova” e a “tradicional”. Todas essas habilidades são importantes, mas pergunta-se: pode-se pensar de forma crítica sem critérios nem certezas? Podemos ter critérios e certezas sem conhecimentos? Pode criar-se do nada? Pode-se partilhar conhecimentos sobre um tema num grupo no qual cada um dos membros não tem conhecimentos prévios sobre o assunto? Para investigar sobre um assunto é necessário um marco conceptual, um guia de trabalho.

 

 “aprender a aprender” aula invertida...não são tendências novas. A Educação Nova nasce no século XIX, como reacção à educação antiga que associava o bem com a imobilidade e o mal com movimento; assim a Educação Nova defendia a importância do movimento para que a aprendizagem seja activa; o problema dessa proposta é que não contempla a actividade interna, fruto da atenção e da concentração... é uma corrente que assenta como uma luva à indústria tecnológica.

Quando sobreestimulamos uma criança com montagens tecnológicas e com estímulos estridentes, entorpecemos o seu desejo de aprender e interferimos nele. Aprender é um processo lento e complexo: desconfiem de todos os métodos que vendem aprendizagem “fácil e rápida”

 

A política deve estar ao serviço da educação, não a educação ao serviço do projecto político do momento.

 

— Qual deve ser a prioridade da escola?

 

A escola e a universidade não podem reduzir-se a agências de preparação técnica e de colocação para o mundo do trabalho. Não podemos reduzir a educação a um adestramento em competências técnicas com o único fim de melhorar os indicadores de empregabilidade. As escolas e as universidades são templos do saber; nelas nos formamos como pessoas, aprendemos de onde viemos e compreendemos melhor a origem das leis do mundo em que vivemos. Aprendemos a pensar por nós mesmos, a apreciar a dimensão estética, a beleza... Aprendemos a ser. O verdadeiro valor do conhecimento não reside só na sua mera utilidade.

 

Cassilda (personagem do diálogo no livro) fala também de leitura. Perdeu-se hoje o hábito de fomentar a leitura desde os mais pequenos? 

 

Hoje opta-se pelo audiovisual em vez da leitura, assumindo a ideia de que a literatura é algo fastidioso e aborrecido. Assume-se que as crianças não são capazes de aspirar a mais, não contam com o desejo de conhecer, não desfrutam do que lêem. Mas perante o formato audiovisual, a mente da criança vai a reboque dos estímulos. Essa ideia é uma sentença de morte para os alunos culturalmente mais necessitados, que pertencem a famílias desfavorecidas nas quais há poucos livros, poucas conversas à mesa, poucas oportunidades... Nivelar por baixo não ajuda a alcançar a igualdade, pelo contrário, contribui para aumentar ainda mais o desnível cultural, social e económico.

 

A leitura ajuda a recuperar o prazer da concentração, que só é possível na intimidade, na quietude e na calma. A aprendizagem não se dá num ambiente de ruído, requer sossego e silêncio. Lemos ao nosso ritmo, modulando a velocidade, interiorizamos e compreendemos por nós mesmos. Isso é distinto da informação descomedida e nervosa que nos bombardeia, nos enfraquece e nos converte em presas irreflectidas.

 

Nesta obra, “Conversaciones con mi maestra”, explico quais as correntes educativas que existiram ao longo da história, como condicionam os métodos que se usam actualmente nas aulas e por que razão o principal factor da escolha de um colégio deve ser a sua filosofia educativa. A educação nunca é neutra.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, PARTE IMPORTANTE DE UMA HISTÓRIA DE VIDA

Agradecemos ao Professor Galopim de Carvalho a confiança no De Rerum Natura para publicar um texto tão significativo como o que se segue.

Este texto, que aqui vos deixo, era para ser lido ontem no auditório da Faculdade de Ciências de Lisboa, na simpática e afectiva homenagem que a Associação Portuguesa de Geólogos entendeu fazer-me. Acontece que comecei a falar de improviso, mostrando diapositivos de um “Power Point, e nunca mais olhei para o papel. 

«Antes de abordar o tema anunciado no programa, ocorre-me dizer que, quando era novo, foram muitas as vezes que me interroguei se chegaria à viragem do século, uma meta que se me afigurava algo de bom poder atingir. 

Setenta anos era então o horizonte de vida média dos portugueses e quando chegasse o século XXI, eu já teria uma idade a rasar esse horizonte. 

Já ganhei, portanto, vinte e um anos, o que foi e é muito bom. 

Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda absolutamente nada. Incomoda-me, sim, a ideia de não poder vivê-la em condições mínimas de saúde e em alegria.

Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo.

Quem me conhece sabe que sou solidário, frontal e transparente, leal, lutador e persistente nas causas cívicas que abracei, afectivo e sempre bem-disposto.

Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador e persistente nas muitas lutas cívicas que travei (e continuo a travar) e o velho que, a tudo isso, acrescenta a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.

Na divulgação científica, no ensino, como em tudo na vida, o afecto é um factor fundamental e decisivo. Muitos anos como aluno, muitos mais como professor e mais uns tantos a escrever nas redes sociais e em livros, convenceram-me que assim é.

No seu último livro “SENTIR & SABER – A CAMINHO DA CONSCIÊNCIA”, António Damásio, veio reforçar esta convicção muito enraizada em mim.

Diz ele que “as capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. E acrescenta dizendo que “é sobre as capacidades afectivas que se vão colocar as capacidades cognitivas”. Para Damásio “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. A vários níveis”. Damásio deu-me, pois, a imensa alegria de confirmar esta muito minha convicção. Posso dizer que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com o que é puramente racional. Posso ainda dizer que todas as distinções de que fui alvo, e foram muitas, tiveram, por parte de quem me as concedeu, uma componente afectiva que não pude deixar de reconhecer.

Passo agora ao tema anunciado no programa. 

Divulgar, do latim divulgare, é dar a saber a muitos, tornar público, repartir entre o vulgo, vulgarizar.

O meu gosto, quase um vício, por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e algum sofrimento, mas sim na rua e em tudo o que nela se passava e em todas as oficinas, lojas e artesanias de portas abertas.

O meu gosto pela divulgação de saberes começou mais tarde, durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci como praticante de um campismo selvagem nos campos em redor da cidade (Évora).

Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, nasceu este meu interesse por divulgar conhecimento. 

Muito do que aprendia no Liceu era tema das nossas conversas. Eu falava-lhes, por exemplo, de angiospérmicas e gimnospérmicas e eles ensinavam-me os nomes de todas as árvores, arbustos e ervas que nos rodeavam. Eu falava-lhes do solo, como me havia ensinado o meu professor, e eles mostravam-mo nas suas mãos calejadas e ensinavam-me muito mais do que eu havia aprendido.

Foi com eles que iniciei este modo de falar simples e esta preocupação de descodificar (trocar por miúdos) todas as palavras novas que surgem no discurso. Dito de outra maneira, foi durante esses anos que ganhei experiência e gosto de divulgar o conhecimento científico que os professores e os livros me iam ensinando.

Mais tarde, como adulto, a oportunidade de exercer este meu gosto surgiu-me durante a minha prestação de serviço militar. Com os soldados a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de espingardas, canhões e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões. Entre analfabetos e letrados com a instrução primária, rapazes do campo e da cidade, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados.

Durante os 40 anos de docência na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos que num “passa palavra” entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fazia com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava honorários e que apenas precisava de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais.

Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as 455 páginas desses três livrinhos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos.

Também as lutas que travei (e continuo a travar) pela defesa e valorização do nosso património geológico, e foram muitas, difíceis e prolongadas no tempo, tiveram sempre uma componente de divulgação através da comunicação social.

Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos alguma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória.

As Feiras de Minerais Gemas e Fósseis, iniciadas no Museu Nacional de História Natural, em 1989, nas quais me envolvi empenhadamente, foram outra via de divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas.

O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades, fez com que nos vinte anos que se seguiram à minha aposentação, mantivesse o mesmo ritmo que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia que nos últimos tempos nos atingiu levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”. E é neste ponto que nos encontramos». 

A. Galopim de Carvalho
Lisboa, 25 de Setembro de 2021

Alterações Climáticas: o Futuro vem aí | Noite Europeia dos Investigador...

domingo, 26 de setembro de 2021

ANTÓNIO SOUTO E O TEMPO NA POESIA


Meu artigo no último "As Artes entre as Letras":

O tempo está omnipresente na poesia. Luís de Camões escreveu que «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ Muda-se o ser, muda.se a confiança;/ Todo o mundo é composto de mudança,/ tomando sempre novas qualidades.» O poeta Alberto Caeiro, o heterónimo anti-metafísico de Fernando Pessoa, escreveu: «Vive, dizes, no presente;/ Vive só no presente.// Mas eu não quero o presente, quero a realidade;/ Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.// O que é o presente?/ É uma coisa relativa ao passado e ao futuro. / É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem./ Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.// Não quero incluir o tempo no meu esquema.(…)». E Vitorino Nemésio, no poema «A Tempo», que li na minha «última lição», também glosou a eterna questão do tempo: «A tempo entrei no tempo,/ Sem tempo dele sairei:/ Homem moderno,/ Antigo serei./ Evito o inferno / Contra tempo, eterno/ À paz que visei./ Com mais tempo/ Terei tempo:/ No fim dos tempos serei/ Como quem se salva a tempo./ E, entretanto, durei.»


Tive recentemente oportunidade de apresentar um livro de poesia em que o tema do tempo está omnipresente. A sessão, organizada pela editora On y va do escritor (também poeta) algarvio António Manuel Venda, decorreu no Solar do Alambique, uma casa de campo em Angeja, Aveiro, porque o poeta é natural dessa terra. António Souto (n. 1961) é autor de cerca de uma dezena de obras, entre poesia e crónica. Formado em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade de Lisboa, é professor de Português na Escola Secundária de Camões, em Lisboa, a escola onde ensinaram, entre outros grandes nomes das nossas letras, Aquilino Ribeiro, Virgílio Ferreira e Rómulo de Carvalho/António Gedeão (Jorge de Sena foiaí  aluno de Rómulo no Camões).


O novo livro intitula-se A Seiva dos Dias. O próprio título remete para a ideia de tempo, que está presente num número substancial dos poemas: basta olhar para os muitos títulos que falam de dias, meses e de estações do ano. Além das questões mais ou menos metafísicas do tempo, o poeta atém-se, por vezes, a coisas comezinhas do dia-a-dia. Como a poesia chama outra poesia, invoca amiúde a voz de outros poetas: Caeiro e outros heterónimos de Pessoa é um dos seus preferidos, mas também Cesário Verde, Miguel Torga, Eugénio de Andrade, José Saramago e Manuel Alegre.


O seu primeiro livro de poesia foi Horizonte Vertical (edição de autor, 1984), com prefácio Mário da Rocha. Depois publicou: Arcanas Carícias: poesia (Escritor, 1993), Na Lavra do Dizer (O Contador de Histórias, 1998), com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Caprichos (idem, 2000) e O Tempo das Palavras, com Armindo S. (Sinapis Editores, 2010), com prefácio de João de Melo. Estres cinco volumes iniciais foram reunidos em O Milagre do Entardecer (On y va, 1.ª ed., 2019, e 2.ª ed., 2021). A seguir publicou mais dois volumes poéticos Sonhos Sobrantes (DebatEvolution, 2014), com prefácio de Luiz Fagundes Duarte, e Palavras (In)Adiáveis (idem, 2018), cujos conteúdos essenciais estão nas segunda e terceira partes de A Seiva dos Dias, sendo a primeira parte um conjunto de inéditos.


Alguns poemas tratam do tempo passado há muito, o tempo da infância vivida em Angeja. Escreveu um dia o autor sobre si próprio: «Começou cedo o encontro com a poesia, antes mesmo de lhe decifrar aquele recheio que as palavras traduzem. Pelos quintais e campos e montes e pinhais, cachopo ainda, a natureza oferecia-se aos sentidos todos, e foi a minha primeira página em branco.» Escolho um poema, «Pirilampos», sobre esse tempo de iniciação, um tempo que jamais voltará: «Tinham entre nós um nome/ luze-cus// pelas escuridões demoradas da/ infância tardia/ corríamos à sua volta em jogos de cabra-cega e/ acompanhávamos em cada pirueta/ as sereias das noites de incêndio/ rua abaixo rua acima/ rua acima rua abaixo/ até que acabava quase sempre um deles no/ aconchego íntimo das mãos/ e havia um deslumbramento cintilante/ a jorrar dos olhos// depois/ ah depois/ estafados e dormidos/ enchíamos a alma de sonhos e de estrelas.” Poesia simples, mas bastante emotiva.


Escolho, para continuar a dar uma amostra da poesia do autor, do tempo do professorado em Lisboa, o poema “Plátanos desafiantes”, na segunda parte: «os alunos rabiscam respostas a um/ poema de torga/ a mudez é recortada pela/ toada de um pássaro ou dois em ritual/ primaveril/ calou-se agora/ agora retoma// a sala é permeável à natureza toda que é/ cada vez menos no presente da cidade// o pássaro cala-se e um aluno pergunta// o que é uma videira// e o pássaro agora com um coro consigo/ disposto nos plátanos desafiantes e um/ aluno pergunta/ o que são beirais// torga decididamente não é deste reino e/ só os pássaros insistem em fazer ninhos na/ escola fora dos sonhos de quem nela anda/ de quem nela anda/ de quem nela anda». É terrível a situação das escolas onde Torga parece não ter lugar!


Por último, voltando à primeira parte, transcrevo um poema que é uma glosa na outro, «Lisboa ainda», que Manuel Alegre escreveu a 20 de Março de 2020, quando Lisboa estava deserta devido à pandemia que tinha sido declarada escassos dias antes («Lisboa não tem beijos nem abraços/ não tem risos nem esplanadas/ não tem passos/ nem raparigas e rapazes de mãos dadas/ nem praças cheias de ninguém (…)». Souto glosa Alegre em «Encruzilhada»: «Vai para dez dias que te não vejo/ lisboa/ e as saudades começam já a ser de séculos// diz-me o alegre que não tens beijos nem abraços/ que tens somente praças cheias de ninguém/ e eu acredito/ porque é assim que estás/ como está todo o meu país/ e o mundo quase todo/ de estranho luto enclausurado// dias e noites noites e dias/ silêncios vazios e comédias divinas em cada lar// mas diz-me o poeta/ também/ que ainda resistes/ e eu sei que é verdade/ porque sei que tens dentro de ti sempre/ e pelo tejo fora despontares de primavera/ corações que pulsam e jardins vestidos de esperança.» Em tempo de pandemia, não são só vacinas que nos salvam: a poesia também.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O tempo e a Terra


Minha palestra no Vale das Buracas do Casmilo no dia 18/9/2021 a abrir um concerto do ensemble da Orquestra Clássica do Centro:

Estamos num lugar espectacular, o vale das Buracas, no Camilo, é uma paisagem calcária, pertencente ao maciço calcário de Sicó. Conheço-o bem, porque entre os 15 e os 20 anos pratiquei espeleologia, o desporto-aventura da exploração de grutas que é ao mesmo tempo uma disciplina científica. Andei por estas serras, dormi em tendas, desci ao interior da Terra. Era membro do centro de espeleologia em Coimbra e o principal responsável pelo boletim A Gruta, onde publicávamos as descobertas que fazíamos nesta região. Lembro-me de ter ido à Biblioteca Geral da Universidade consultar revistas e livros antigos sobre as grutas de Condeixa. Há um artigo em 1854 intitulado “Grutas de Condeixa” na revista “O Instituto” de António Augusto da Costa Simões que foi professor de Medicina, presidente da Câmara de Coimbra, em 1856-1867, e reitor da Universidade, muito mais tarde, entre 1892 e 1898. Trata-se de um dos documentos científicos mais antigas sobre grutas portuguesas.

Os vazios da Terra 

Posso até contar uma história que na altura não foi nada divertida: fiquei uma vez preso nas profundidades da maior gruta portuguesa. As Grutas de Mira de Aire, que hoje os turistas podem percorrer em parte. Só ao fim de umas horas é que os meus colegas me conseguiram desentalar de um aperto numa passagem estreita. As Grutas de Mira de Aire, descobertas em 1947, são hoje a gruta mais comprida em Portugal: estendem-se por mais de 11 km, indo até mais de 110 m de profundidade. Mais profundas são os Olhos de Água do Alviela, uma das mais notáveis nascentes do país e mesmo do mundo pois os espeleólogos subaquáticos já conseguiram descer, no ano ano passado, sempre debaixo de água, a mais de 115 m de profundidade sem conseguirem encontrar a volta em U em que a água remonta no sifão. Nas regiões calcárias como esta a água que contém dióxido de carbono , dissolve a rocha calcária, que é formada por carbonato de cálcio, abrindo grutas, por vezes sem entrada para a superfície. O terreno é uma verdadeira esponja. A água acaba por aparecer na periferia do maciço em nascentes ou olhos de água. A gruta maior aqui do Sicó é o Soprador do Carvalho, em Ferrarias, Penela, que tem um rio subterrâneo, e que se estende por mais de 3 km. O interior da Terra tem muitos segredos por nos revelar… Nem o Soprador do Carvalho nem as Grutas de Mira de Aire se podem porém comparar com as maiores grutas do mundo. A maior é a Mammoth Cave, a gruta mamute, no Kentucky, EUA, cujas galerias subterrâneas se estendem por mais de 600 km. E a gruta mais profunda do mundo situa-se nas montanhas da Geórgia, na Europa de Leste, que alcança a profundidade de 2200 m. Uma descida até ao fundo dessa cavidade fará lembrar a Viagem ao Centro da Terra de Júlio Verne.

Aqui as grutas são mais pequena. Lembro-me de ter descido varias vezes ao Algar das Quintas, perto da capela da Senhora da Estrela, na Redinha, aqui um pouco mais a Sul. São 75 m a descer a pique e depois, o que é pior, outros 75 m para subir. 

As buracas que aqui vêem, não muito grandes mas muito abertas, deviam fazer parte de espaços subterrâneos, que foram escavados por um rio que cavou este vale ou canhão. A certa altura caíram as paredes e o interior subterrâneo ficou a descoberto, enquanto ao longo do tempo, o rio se ia afundando e o vale ia crescendo. O trabalho de erosão - a chuva e o vento -ajudaram a fazer esta paisagem. Demorou milhões e milhões de anos. Como diz Marguerite Yourcenar, o tempo é o grande construtor. 

Este vales são típicos da regiões calcárias. Aqui mais a baixo há outro ainda maior e também com buracas, o Vale do Poio Novo, um sitio onde nos divertíamos a fazer eco entre uma vertente e a outra. Esta paisagem chama-se carso, o que vem da palavra eslovena karst, a região da Eslovénia, perto de Itália, onde a paisagem calcária está toda escavada. Já lá andei: há até uma gruta turística onde se anda de comboio lá dentro. Esta modelação da pedra a superfície, chama-se lapiás. Há também depressões circulares chamadas dolinas e depressões maiores chamadas poljes – há um em  Mira de Aire - Minde que alaga no Inverno por a água ficar retida pelo leito de argilas. E as grutas podem ser mais horizontais – chamamos-lhe lapas, ou mais verticais – chamamos lhe algares.

As eras geológicas

Falei do tempo, o grande construtor e também destruidor. A Terra é obra do tempo. Quando foram formadas estes estratos calcários? Os geólogos ensinam-nos que este calcário é do período Jurássico, mais propriamente de andares estratigráficos conhecidos como Bajociano e Batoniano que pertencem  ao Jurássico médio, que por sua vez pertence à era do Mesozóico que por sua vez pertence a uma divisão temporal maior, dita éon, chamado o Fanerozóico – palavra que significa vida visível, é o tempo no qual passou a haver marcas visíveis da vida. O Jurássico médio ocorreu há cerca de 170 milhões de anos. Napoleão disse aos seus soldados no Egipto: “Do alto destas pirâmides 4000 anos vos contemplam”. Aqui poderia dizer: “Do alto destes penhascos 170 milhões de anos vos contemplam.” Há marcas de vida dessa altura e a vida era dominada poe esses grandes répteis que eram os dinossauros. Toda a gente viu os filmes Parque Jurássico de Steven Spielberg. Estes grandes sáurios apareceram há cerca de 230 milhões de anos, no Triássico, antes do Jurássico, e desapareceram no Cretácico, já depois do Jurássico, há cerca de de 68 milhões de anos. Julga-se que foi um gigantesco meteorito que caiu na região do Iucatão do México combinado com invulgar atividade vulcânica que levou ao fim dos dinossauros. Com o seu fim, puderam triunfar os mamíferos. Em Portugal há marcas de dinossauros: ninhos na Lourinhã, pistas na Pedreira do Galinha na Serra de Aire, pegadas no cabo Mondego, Tudo isso são marcas do Jurássico,

Mas nessa altura, quando a terra era comunicada pelos dinossauros, já a história da Terra ia adiantada. Quando começou a Terra? Quantas velas devemos por no bolo se houvesse um dia de anos da Terra? Sabemos hoje que é contemporânea do sistema solar que tem cerca de 4,5 mil milhões de anos. Essa é a idade das rochas mais antigas da Terra, que podemos dar usando técnicas de radioatividade. É cerca de um terço da idade do Universo, pois de acordo com a teoria do Big Bang, o Universo terá começado há cerca de 14 mil milhões de anos. A melhor teoria que temos da formação do sistema solar é a de uma nuvem, formada principalmente por hidrogénio, mas tendo muitos outros elementos químicos pesados, que comprimida pela gravidade, e sempre em rotação rápida levou à formação do Sol, no centro, onde se acendeu uma fornalha termonuclear graças a forças de pressão incríveis. Perto ficaram planetas rochosos: Mercúrio, Vénus, Terra e Marte, os dois últimos com possibilidade de vida no sentido em que existiu ou existe água em várias fases: líquida, gelo e vapor de água.  E, depois de uma cintura de meteoritos, ficaram grandes planetas que são gasosos: Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. A terra no inicio era mais pequena e foi crescendo com o bombardeamento de meteoritos. No início do sistema solar não havia a ordem que hoje há. A Lua, o nosso satélite natural, formou-se devido a colisão de um corpo celeste com a proto Terra: as pedras que os astronautas trouxeram da Lua são tão antigas como rochas muito antigas da Terra. Facto curioso: o Sol transforma hidrogénio em hélio irradiando energia, e há-se transformar hélio em carbono, mas não tem capacidade para produzir cálcio que existe no carbonato de cálcio destas rochas e, já agora, do cálcio que existe nos nossos ossos. Teve de haver por isso um outro sol anterior ao nosso que explodiu espalhando átomos pesados pelo espaço. Nós somos filhos dessa estrela mais remota. Essa explosão violenta de uma estrela chama-se supernova. Houve mais do que tempo para haver estrelas que explodiram, antes que o nosso sol se formasse. 

Desde que a Terra se formou passaram-se cerca de 700 milhões de anos antes que aparecesse vida, que remonta a 3800 mil milhões de anos. Não sabemos como apareceu a vida da Terra. Nem sequer sabemos se veio de fora ou se apareceu primeiro aqui devido a reacções química, que em condições particulares num meio aquoso, permitiram, a moléculas autorreproduzirem-se, fazendo cópias de si próprias. Os primeiros seres vivos, na base da grande arvores da vida –    seres vivos muito variados, pelo que falamos de biodiversidade – , foram microscópicos. Nessa altura a reprodução consistia na divisão das células ao meio. Só mais tarde a evolução biológica haveria de inventar o sexo, que permitiu acelerar a biodiversidade. Mas, no início da vida, nem sequer havia atmosfera com oxigénio. Havia azoto, dióxido de carbono e metano, mas o oxigénio que hoje sustenta boa parte da vida só foi a certa altura produzido por um certo tipo de bactérias. No princípio foi o éon Hadeano, durou até há 4 mil milhões de anos. Depois, quando apareceu a vida, foi o Arqueano, até há 2,5 mil milhões de anos. Depois veio o Proterozoico, que durou muito, até há 500 milhões de anos. Só depois é que foi o Fanerozóico, dividio no Paleozóico, tempo dos peixes, no Mesozoico, o tempo dos dinossauros, e no Cenozóico, tempo dos mamíferos. Os primeiros hominídeos, ainda muito distantes de nós, surgiram de há cerca de 10 milhões de anos. O género homo já apareceu no quaternário, há cerca de dois milhões de anos, um tempo muito pequeno na vida da Terra. E o homo sapiens   há 350 000 anos. Terá coexistido com o homem de Neandertal como mostra a criança do Lapedo, encontrada no Vale do Lapedo perto de Leiria. Hoje estamos no período do Quaternário chamado Holoceno, mas há quem defenda que mudámos de tal maneira a Terra que o nosso tempo se deveria chamar Antropoceno. 

Bestas buracas há marcas de ocupação pré-histórica. Os arqueólogos encontraram vestígios do Paleolítico, a idade da pedra lascada. Há até algumas marcas de arte rupestre, nas paredes de certas buracas: não são paleolíticas, mas já da idade do bronze. Lembro que da época neolítica  há vestígios aqui em Condeixa, como necrópole de Eira Pedrinha, que eu visitei como espeleólogo tendo ficado admirado com a enorme quantidade de ossos. Foi no Neolítico, há 10 000 anos,  que se deu a revolução agrícola, com a sedentarização das comunidades humanas e a domesticação dos primeiros animais. A época dos caçadores-recolectores tinha ficado para trás.

O que é o tempo?

O que é o tempo? Bem, de um modo operacional, é o que marca um relógio. Um segundo é uma fracção da hora, que é uma fracção do dia, que é uma fracção do ano, tudo isto marcado pelo movimentos astronómicos. Hoje em dia define-se os segundo com base em medidas atómicas, mas a definição inicial veio do movimento dos astros.

Podemos medir, mas nós não sabemos definir o tempo. É dos nossos grandes mistérios. Santo Agostinho disse que se não lhe perguntassem o que era o tempo ele sabia, mas que se lhe perguntassem ele não sabia. Trago aqui uma citação  de Eça de Queiroz quando ele fala dos almanaques em “Notas Contemporâneas”:

 O tempo, essa impressão misteriosa a que chamamos tempo, é para o homem como uma planície sem forma, sem caminho, sem fim, sem luz, onde ele transita guiado pelo almanaque, que o segura pela mão, o vai puxando e a cada passo murmurando: "Aqui, estás em setembro!... Além, finda a semana!... Em breve alcanças o vinte e oito... Hoje é sábado..." Se o almanaque de repente, por facécia ou perfídia, lhe soltasse a mão, o abandonasse, o homem vaguearia irremissivelmente confuso e perdido dentro da vacuidade de o não ser do tempo. Sumida a noção do ano, do mês, do dia, ele não poderia mais cumprir, com ordem proveitosa, os atos da sua vida urbana, rural, religiosa, política, social — e logo se arriscaria àqueles dois erros de que galhofava o provérbio antigo: a semear o seu trigo em julho e a celebrar a sua Páscoa em novembro. Só com o almanaque, sempre presente e sempre vigilante, pode existir regularidade na vida individual ou coletiva.”

De facto, sem os calendários estaríamos perdidos no tempo. A nossa vida não estaria organizada. Por um lado há no tempo um lado de continuação, eternidade. Houve um início e provavelmente não haverá fim. Mas, por outro lado, ao contrário das viagens  no espaço, no tempo não se pode ir e voltar. As viagens  são num só sentido. Todos nós andamos para a frente no tempo. Os físicos descobriram uma lei -  a 2ª. Lei da Termodinâmica. que diz precisamente isso: que só se pode andar para a frente no tempo. Define-se uma grandeza, a entropia, que é uma medida da desordem. Num sistema isolado a entropia só pode crescer. Este Vale das Buracas é resultado da erosão do tempo, do crescimento da entropia. E nós que nos deslumbramos com o vale? Bem nós não somos sistemas fechados, recebemos energia do exterior, pelo que a desordem não cresce em nós.

Há uma história curiosa de um dos descobridores da 2.ª Lei da Termodinâmica. O britânico William Thomson, lorde Kelvin (há numa relação com Portugal: ele casou com a filha do cônsul inglês no Funchal, que conheceu quando andava a instalar linhas de telégrafo eléctrico entre Portugal e  o Brasil). Pois Kelvin,  um dos maiores sábios do século XIX,  cometeu um importante erro na avaliação da idade da Terra. Fez umas contas a partir do tempo que um corpo quente, como a Terra primitiva, demora a arrefecer e falhou por muito. Os geólogos conheciam o enorme tempo que é preciso para formar paisagens como este estavam mais certos do que os físicos quanto à idade da Terra. Vale a pena contar a história da disputa científica sobre a idade do nosso planeta.

O erro da idade da Terra

Quando falamos em história da Terra, estamos a falar de longos períodos de tempo. A busca do relógio da Terra iniciou-se há muito tempo. O alemão Abraham Werner, que viveu entre os séculos XVII e XIX, foi  um dos” avôs” da geologia.  Werner defendia que a formação da Terra teria sido um processo rápido e que todas as rochas se teriam depositado num oceano primordial, num espaço de tempo muito curto – esta é a chamada cronologia curta da Terra. A teoria werniana estava de acordo com os ensinamentos bíblicos (Deus teria criado todo o Universo, incluindo a Terra, em apenas alguns dias). E foi por isso que permaneceu, durante algum tempo, inabalada.

 Acabou por ser questionada nos finais do século XVIII pelo geólogo inglês James Hutton. Hutton, ao observar rochas sedimentares depositadas horizontalmente, concluiu que estas teriam sido depositadas em diferentes épocas e que, portanto, era longa a história da Terra – esta é a chamada cronologia longa da Terra. Já antes um médico dinamarquês do século XVII,  Nicolau Steno, tinha intuído isso: Os estratos por baixo são mais antigos do que os que estão por cima. Marcas de vegetais ou animais nesses estratos são mais antigas que marcas de animais por cima. Em 1795, Hutton publicou o livro Theory of Earth, no qual fala de uma história geológica uniforme, permanente, sem início nem fim: poder-se-ia mesmo falar de uma idade infinita! Claro que para as pessoas que levavam à letra a palavra da Bíblia, a ideia de um tempo infinito era uma verdadeira heresia, uma vez que proibia o cato criador reportado nas Escrituras. Hoje sabe-se que a teoria de Hutton estava essencialmente correcta, tendo servido de base para as teorias de geologia e biologia que se lhe seguiram. 

O geólogo inglês oitocentista Charles Lyell seguiu na peugada das ideias de Hutton. Considerado por muitos o pai da Geologia, publicou entre 1830 e 1833 o livro fundador dessa ciência - Principes of Geology (em três volumes), onde defendeu as conceções de Hutton contra as de Werner. Lyell datou rochas através dos fósseis que continham, tendo concluído não só que a Terra teria vários milhões de anos como também que teria mudado lentamente ao longo de todo esse tempo, devido a factores como a erosão. O princípio do uniformismo defendido por Hutton ganhou nesta altura tal preponderância que, a partir de meados do século XIX, a Bíblia quase desapareceu do estudo da história da Terra.

 Charles Darwin, o autor da Origem das Espécies (1859), foi um adepto das ideias do seu amigo Lyell, tendo feito uso delas na sua teoria da evolução. Por sua vez, Lyell, que antes acreditava que as espécies se tinham mantido imutáveis ao longo dos tempos, quando toma conhecimento da teoria de Darwin, tornou-se um dos seus maiores defensores. O desenvolvimento da estratigrafia e da paleontologia, já preliminarmente estudadas por sábios como da Vinci e Lavoisier, ajudou à aceitação das teses uniformistas de Hutton e Lyell. O estudo dos fósseis permitiu datar sequências de estratos e conhecer melhor a cronologia da história da Terra.

Em 1859, Darwin estimou em 300 milhões de anos, um tempo claramente longo, o período de escavação de um grande vale inglês. Esse cálculo concordava “grosso modo” com outro relativo à salinidade dos oceanos, que fixava em 100 milhões de anos o tempo necessário para salinizar toda a água do mar.

 Mas, em 1863, o físico William Thomson, mais conhecido pelo seu título de Lorde Kelvin, que na altura era considerado o “papa” da Física, voltou, embora sem invocar a Bíblia, às ideias da cronologia curta presentes em Werner. Baseado na 1.ª Lei da Termodinâmica – a Lei da Energia, que estipulava a conservação dessa grandeza física – estudou o fluxo de calor emitido pela Terra, concluindo que o nosso planeta teria, no máximo, 100 milhões de anos. Em 1987 Kelvin, com novos cálculos, atribuiu à Terra cerca de 20 milhões de anos, um valor que provocou um grande alvoroço entre geólogos. Lyell respondeu-lhe afirmando que haveria reacções químicas no interior da Terra que não tinham sido consideradas nesses cálculos mas não conseguiu demover o teimoso Kelvin, que, quando muito, estava apenas disposto a admitir o valor de 400 milhões de anos.

 Kelvin estava rotundamente errado e a chave para mostrar o seu erro só apareceria mais tarde, em 1896, com a descoberta da radioactividade pelo físico francês Henri Becquerel. De facto, a radioactividade, que está associada à emissão de calor, não entrava nos cálculos de Kelvin! E, curiosamente, foi a radioactividade de algumas rochas naturais que permitiu finalmente datar com precisão o planeta Terra. Um dos geólogos mais famosos do século XX que investigou o problema da datação da Terra foi o britânico Arthur Holmes. Holmes concluiu que a Terra teria uma idade entre 1400 e 3000 milhões de anos. Contudo, determinações mais recentes dão à Terra, como de resto a todo o sistema solar, a provecta idade de 4,5 mil milhões de anos, como já referi. Não é um tempo infinito como defendia Hutton, mas é muito maior do que o tempo bíblico ou do que o tempo de Kelvin. Kelvin não viveu o tempo suficiente para reconhecer o seu erro!

A ciência é feita de erros, mas de erros que são corrigidos com o evoluir do tempo. Mas já falei de mais. A mensagem mais importante é que o tempo é mudança – já dizia Camões – “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre  novas qualidades”, - a Terra é um sitio dinâmico. No tempo do Jurássico foi quando o grande continente único - a Pangeia - se começou a separar em duas grandes parte. Foi quando se começou a formar o oceano Atlântico. Por falar em oceano, estres estratos que aqui vemos formaram-se por deposição de carbonato de cálcio no fundo de um oceano. A Terra está sempre a mudar a sua geografia, comos sabemos da teoria da deriva dos continentes devido ao movimento das placas tectónicas, que foi aventada elo alemão Alfred Wegener, levantando grande controvérsia. Fiquei um dia muito impressionado porque numa placa à entrada de um museu da Terra em Edimburgo dizia lá que aquele sitio já tinha estado no equador. Não sabemos - apenas podemos fazer previsões, quando será a geografia dos continentes  daqui a 170 milhões de anos ainda ontem saiu um artigo sobre isso no Expresso. É uma previsão, que pode falhar… Porque há surpresas, a Terra é uma caixinha de surpresas!

Tempo da música 

Mas é tempo e dar lugar a música, que obviamente está relacionada com o tempo. A música é uma sucessão de sons no tempo e o ritmo com que se sucedem podem ser maiores ou menores. Mas é curioso que há um tempo psicológico: perante uma bela peça de música não vemos o tempo passa- já passou vinte minutos desde que comecei  a falar - com certeza que repararam  que o tempo nunca mais passava - e agora o tempo vai passar depressa – por vezes vai ficar suspenso com estes artistas do ensemble da Orquestra Clássica do Centro.

Vamos ouvir trechos antigos como a música de Vivaldi das Quatro Estações, que nos lembra o clima e a meteorologia. Mas vamos também ouvir músicas de autores contemporâneos como Asthor Piazolla, que se fosse vivo, faria este ano 100 anos. E como Enio Morricone, falecido há pouco tempo. Vamos também ouvir vários temas de música rock. O rock and roll teve origem nos EUA nos anos 30 e 40 e vem da música de blues e de jazz. Rock and roll remete para o movimento rítmico: significa á letra balança e rola. Música é movimento, como vamos ouvir já a seguir com o grupo da Orquestra Clássica do Centro. Bom espectáculo!

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...