sexta-feira, 14 de maio de 2021

HADLEY FREEMAN E O HOLOCAUSTO


Minha recensão no I de ontem:

Hadley Freeman (n. 1978) é uma jornalista anglo-americana (nascida em Nova Iorque, mudou-se com a família para Londres aos 11 anos) que trabalha no The Guardian. A sua especialidade é a moda, tendo escrito também para a Vogue UK e para a Harpers’ Bazaar. É autora de dois livros sobre estilo de vida (The Meaning of Sunglasses: A Guide to (Almost) All Things Fashionable, 2009, e Be Awesome: Modern Life for Modern Ladies, 2013) e de outro sobre cinema (Life Moves Pretty Fast, 2015). O seu quarto livro, no original House of Glass, que saiu em 2020 na Fourth Estate e está a ser um best-seller internacional, é sobre a história da sua família. Acaba de sair na Casa de Letras (uma chancela da LeYa) uma tradução portuguesa intitulada Segredos Estilhaçados, com tradução de Paula Caetano. O subtítulo é, em português: História e confissões de uma família judia separada pelo Holocausto.

A autora expõe a sua história familiar que descobriu num trabalho longo de investigação. Tudo começou quando encontrou uma caixa de sapatos da avó com fotos e papéis velhos, continuou com entrevistas aos parentes, a busca de documentos e visitas a várias geografias. A história da família de Freeman é um pouco a história do século XX. Uma família judia que no início do século vivia no Sul da actual Polónia, num lugar que pertencia ao Império Austro-Húngaro, muda-se após a Primeira Guerra Mundial para Paris e, depois, um membro da família (Sala, a avó de Hadley) muda-se, antes da Segunda Guerra, para os arredores de Nova Iorque. 

Todas as famílias têm uma árvore genealógica (o meu pai deixou-me uma, que vai até onde ele se lembrava). A da família de Hadley surge logo a abrir o livro: A figura da avó, Sala (depois Sara), é central: teve dois filhos, um dos quais foi pai de Hadley e da sua irmã Bell. Mas igualmente relevantes são os seus três irmãos: Jehuda (Henri), Jakob (Jacques) e Sender (Alex). Os nomes entre parêntesis foram adoptados para substituir os nomes judaicos após a emigração para França

. E onde entra o Holocausto, referido no subtítulo? Jacques foi uma das muitas vitimas de Auschwitz e Alex escapou do mesmo destino por muito pouco porque saltou de um comboio em andamento que se dirigia de França para a Europa Oriental. Só o irmão mais velho Henri conseguiu escapar aos horrores nazis, apesar de ter sido denunciado. As histórias da avó e dos tios-avós foram segredos de família do qual a menina Hadley foi afastada.

A história do livro começa com os bisavôs da autora, Reuben Glahs e Chaya Rotter, que  se casaram em 1898, e com os dois irmãos de Chaya que deram origem a outros ramos da família. A terra onde viviam chama-se Chrzanow. Antes da Segunda Guerra Mundial, cerca de metade dos habitantes desse sítio eram judeus. Depois, quase nenhum: Auschwitz fica a 20 quilómetros da cidade. Reuben e Chaya eram um casal judeu, ortodoxo mas não ultraortodoxo, que teve de lutar muito para se sustentar. Em 1914 o pai partiu para a guerra, para servir o imperador austríaco, só regressando de lá em 1918 todo gaseado (o meu pai contava-me que tinha memória de pessoas gaseadas chegadas a  Portugal vindas da Flandres). O filho mais velho tornou-se o “chefe da família”, ainda mal tinha entrado na adolescência. No fim da guerra, quando a Polónia ficou independente, as autoridades polacas começaram a atacar os judeus, em pogroms violentos. A família não teve outro remédio senão fugir. O primeiro foi Jehud, que foi estudar para Praga, depois Jacob, que foi procurar trabalho em Paris, logo seguido por Sander. Só a mãe e a filha ficaram junto do pai, muito doente, num clima de crescente hostilidade anti-semita.

Chaya e Sala acabaram por se juntar aos seus familiares em Paris. De todos eles, só um haveria de voltar, nos anos 70, à sua terra-natal, para a encontrar completamente diferente. Quando os alemães, com os primeiros tiros da Segunda Guerra Mundial, ocuparam Chrzanow, os Glahs já lá não estavam. Os judeus que restavam dificilmente iriam sobreviver. O que a autora diz sobre o antissemitismo na Polónia  torna difícil  a publicação do livro na terra dos seus antepassados (o poder actual não nega o Holocausto mas nega qualquer responsabilidade polaca). Sala tornou-se Sara, uma bela francesa, ultrapassada que foi uma pleurisia de que sofreu em adolescente. As suas fotos a preto e branco são as que mais chamam a atenção entre as numerosas que enchem o livro (incluindo a capa). Logo a primeira mostra uma senhora de idade muito chique, de chapéu na cabeça, a almoçar numa praia da Normandia. Paris foi, entre as duas guerras, a terceira cidade do mundo com mais judeus (sendo Nova Iorque e Varsóvia as primeiras): no final da década de 30 eram mais de 150 000. Foi aí que a família Glahs refez a sua vida. Jakob tornou-se peleiro e o irmão Sander costureiro. Ninguém adivinharia na altura que o segundo se haveria de tornar primeiro um nome famoso de alta costura e depois um galerista de arte afamado. Conheceu Chagall, um judeu russo emigrado em Paris, e mais tarde haveria de se tornar amigo de Picasso. Mas o início foi difícil. Quando a mãe e a irmã chegaram viveram todos num pequeno quarto (o irmão ainda estava em Praga a formar-se em engenharia).

Muita coisa mudou neles, a começar pelos nomes. O nome de família Glahs passou a Glass. Sender não só se tornou Alex como inventou um apelido francês, Maguy. Hadley Freeman descreve a situação da família na França entre as guerras. “Cada um à sua maneira, todos eles estavam satisfeitos, planeando aquilo que imaginavam que seria um futuro permanente em França, a trabalharem, a viver, talvez um dia, a amar como desejavam, e sempre a uma curta distância a pé uns dos outros. Haviam escapado àquilo que pensavam ter sido os piores momentos e criado a vida deles na mais bela cidade do mundo. Naquela época, a sua imigração fora um êxito.“ Mas a autora, que sabe criar o suspense, logo acrescenta: “Contudo, poucos anos depois, tudo aquilo por que tinham trabalhado tão arduamente para alcançar votaria a ser-lhes travado pelo monstro do qual haviam tentado escapar tão desesperadamente”.

A descrição da perseguição aos judeus na França ocupada pelos alemães é o cerne do livro e não vou roubar o prazer da surpresa na leitura. Só esta parte dava um filme: Jacques alista-se na Legião estrangeira, regressa e acaba por se entregar às autoridades franceses,  depois de convocado para comparecer numa esquadra. Numa saída precária de um campo prisional, não aproveita a oportunidade para fugir, como toda a família lhe dizia. Por sua vez, Alex foi apanhado e torturado pelos nazis, após uma briga num bar. Se Jacques morreu em Auschwitz, o irmão escapou por uma unha negra, recompondo a sua vida primeiro de novo como costureiro e depois como galerista em Paris. Possuiu e expôs obras de alguns dos maiores artistas do pós-guerra, vendeu a gente famosa dos negócios e dos espectáculos e juntou uma colecção própria que faria inveja a qualquer museu. O engenheiro Henri tornou-se no pós-guerra milionário ao criar uma máquina de copiar documentos. Henri e Jacques casaram com judias, tendo tido cada um deles uma filha, mas Alex nunca casou.

Sara foi parar à América por um casamento imprevisto. Tinha a intenção de ser desenhadora de moda e de casar com o seu noivo francês, estudante de Medicina Dentária, quando apareceu um judeu americano, apresentado pelo irmão Alex, que a assediou de uma maneira ostensiva e  de inicio prontamente rechaçada. Mas ele não desistiu telefonando-lhe e escrevendo-lhe da América todos os dias, com mil promessas. A rapariga, sem vontade nenhuma, acabou, em 1937, impulsionada pelos irmãos, por atravessar de barco o Atlântico. Fê-lo porque pensava que a família se ia juntar a ela, quando já se antevia o que, na Europa, ia acontecer aos judeus.  Casou com o desconhecido logo à chegada, iniciando uma longa relação que, de amor, pelo menos de início, nada tinha. Mas a família nunca lhe foi no encalço, deixando-a prisioneira do seu casamento americano. Ao contrário do que lhe tinha contado, o marido não era nenhum ricalhaço nova-iorquino, mas sim um modesto gestor de uma bomba de gasolina, em Long Island. Tornou-se a senhora Freiman porque o marido, também judeu (falavam em ídiche já que ela não sabia inglês) se chamava William Freiman, um apelido que mais tarde seria transformado em Freeman. A senhora Freeman conservou-se tanto no interior como no exterior francesa. Subindo na vida, o casal mudou-se para Nova Iorque. Vestia-se sempre o melhor que podia, com adereços da moda parisiense (dado o gosto pela moda da sua avó e o estatuto elevada na costuraria alcançado pelo seu tio-avô, não admira que Hadley Freeman tenha escolhido o jornalismo de moda). Apesar de lá ter vivido várias décadas, a verdade é que Sara nunca se integrou verdadeiramente nos Estados Unidos. Sintomático da sua tristeza de exilada é o facto de ter rasgado algumas fotografias da sua juventude francesa, contidas na caixa de sapatos.

Alex gostava muito da sua irmã mais nova, a quem ofereceu um desenho de Picasso. Uma foto no livro de Sara a cumprimentar Picasso confirma as boas relações do seu irmão com o criador do cubismo. Hadley Freeman comenta a posse pela sua avó do desenho de Picasso, que ficou escondido num armário perto da caixa de sapatos: “Esta era uma prova real do quão extraordinária fora vida deles: começara numa shtetl [cidadezinha, em ídiche] na Polónia e, muitos anos mais tarde, Alex enviara só para ela, para a sua casa nos Estados Unidos, um desenho de um dos maiores artistas de todos os tempos. Era os segredo deles e o segredo dela e, à semelhança de tantas outras coisas, ela manteve-o até morrer.”

O segredo do Picasso foi agora estilhaçado, tal como outros segredos da família Freeman. Há muitas famílias judias em Nova Iorque e em todo o lado do mundo e cada uma transporta a sua própria história, que nem sempre conta. A história de uma família, aqui tão bem contada por Hadley Freeman, é muito mais do que uma história de família: é a história de um século horrível, que foi marcado pelos pogroms e pelo Holocausto, mas também de um século belo, iluminado pelas pinturas de Chagall e de Picasso. É natural que muitos judeus não queiram falar do seu passado que foi extremamente traumático. Mas a esta autora judia fala dos seus ascendentes com grande coragem. Fiquei, depois da leitura, a conhecer melhor os destinos, bem diversos, dos judeus no século passado.

 

 

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