Meu artigo no último JL:
A Carolina do título é D.
Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1851 – 1925), a filóloga, crítica literária
e professora universitária luso-alemã, que foi a primeira professora do ensino
superior em Portugal: foi nomeada professora de Filologia Germânica na
recém-formada Universidade de Lisboa em 1911, mas logo se transferiu para a
Universidade de Coimbra, pois ficava mais perto do Porto, onde residia com o
marido Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), historiador, musicólogo e crítico de
arte. A sua bibliografia, reunida em 1933 num opúsculo da Imprensa da
Universidade de Coimbra, inclui 171 publicações, a primeira das quais vinda a
lume quando tinha apenas 16 anos e última seis anos após a sua morte. Escreveu,
sempre com grande rigor e por vezes com brilhante pioneirismo, sobre os
cancioneiros medievais, Gil Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Luís de
Camões, Uriel da Costa, etc. Perto do fim, resumiu assim o seu currículo: “Não
tenho biografia. Gastei a minha vida a estudar.”
Por seu lado, o Jorge do
título é Ricardo Jorge (1858-1939), o médico, higienista e professor de
Medicina portuense (o pai, de profissão modesta, tinha raízes em Vouzela). Formado
na escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1879, Jorge começou por se interessar
por neurologia, para se passar a dedicar à saúde pública. Em 1899 identificou a
peste bubónica no Porto, mas teve de fugir à fúria do povo descontente com as medidas
de isolamento profiláctico. Passou então a ser professor de Higiene na Escola Médico-Cirúrgica
de Lisboa e fundou o Instituto Central de Higiene, que é o antecessor do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge. Em
Lisboa enfrentou várias epidemias do início do século XX como a pneumónica, a
tuberculose, a cólera e o tifo. Da sua extensa bibliografia, constam títulos científicos
pioneiros como Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa e A Peste Bubónica
do Porto 1899, e outros de interesse histórico-literário como Amato
Lusitano, Canhenhos dum Vagamundo e Sermões de um Leigo.
Carolina Michaëlis e
Ricardo Jorge corresponderam-se sobre assuntos literários entre 1909 e 1925,
sendo conhecidos 132 espécimes. As cartas de Carolina para Jorge estão na
Biblioteca Nacional e as de Jorge estão na Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra e na colecção privada de um seu bisneto. A Imprensa da Universidade de
Coimbra acaba de publicar esse diálogo epistolar: Correspondência – Carolina
Michaelis de Vasconcelos e Ricardo Jorge. São autores da muito cuidada
edição, Maria Manuela Delille, professora de Germânicas jubilala, e a Isabel João
Ramires, bibliotecária da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. A edição
em pdf é facilmente acessível: https://digitalis-dsp.uc.pt/jspui/bitstream/10316.2/2725/3/Carolina%20Michaelis.preview.pdf Merece louvor o amplo
esforço daquela editora no domínio do digital.
Para além de uma muito
útil introdução, que coloca as cartas no seu contexto, e da correspondência
propriamente dita, rigorosamente transcrita e anotada, o livro tem no final uma
lista cronológica das cartas e bilhetes postais, uma tábua comparativa da obra
de Ricardo Jorge Francisco Rodrigues Lobo. Estudo biográfico e crítico, publicada
na Revista da Universidade de Coimbra (1913-1918) e em separata em 1920 (há
uma edição facsimilada da Fenda, 1996), e uma relação das cartas eruditas de
Carolina publicadas até agora na íntegra (entre os seus correspondentes estão
nomes como Marcelino Menéndez Pelayo, Afonso Lopes Vieira, Teófilo Braga e Oliveira
Martins).
O que diziam um ao outro
uma grande filologia e um grande médico? Os dois sábios carteavam-se trocando
informações e publicações de natureza literário-histórica. Foi Ricardo Jorge, mais
novo e grande admirador de Carolina, que tomou a iniciativa de lhe
escrever oferecendo-lhe um seu artigo saído
numa revista espanhola sobre a comédia La Celestina, de Fernando de
Rojas (1499). O médico albicastrense Amato Lusitano (João Rodrigues de Castelo Branco), que Jorge biografou,
refere essa comédia no seu livro Index Dioscórides (1536). E Carolina
tinha escrito sobre La Celestina em 1901. O apreço de Jorge era inteiramente
retribuído por Carolina. Os dois entendiam-se muito bem, apesar de um ser de ciências
e outra de letras. Foram ganhando familiaridade ao longo dos anos, cada um
contando ao outro os seus achaques e os lugares por onde tinham andado. Carolina reviu as
provas da referida monografia de Jorge sobre Francisco Rodrigues Lobo (1574-1621;
comemoram-se este ano 400 anos da sua morte), o escritor leiriense autor de Corte
na Aldeia (1619), considerada a aparição do barroco em Portugal. Além disso,
Carolina escreveu para Jorge o prefácio de A Intercultura de Portugal e Espanha
(1921). Encontram-se nas cartas referências ao panorama literário da época, com
Jorge a insurgir-se violentamente contra um plágio de Teófilo Braga, e ao
panorama político-cultural, com Carolina a bater a porta com estrondo à Academia
das Ciências, onde em 1911 tinha sido um das duas primeiras mulheres a entrar,
por causa de uma catilinária antialemã divulgada por alguns académicos. Ambos
publicaram na revista Lusitânia, da qual Carolina foi directora.
O volume agora publicado mostra como há
mais de um século havia um diálogo profícuo entre ciências e letras. No seu livro
sobre Rodrigues Lobo escreve Jorge: «(...) Ciências e letras, para estes olheiros sobrecenhudos, têm fosso de
permeio. Se ao letrado chega a ser lícito divagar pelos domínios do cientista,
o inverso é julgado defeso; o profissional da ciência arrisca-se a sair lesado na reputação, e até na seriedade do seu ofício
ou do seu cargo, se lhe descobrem ressaibos de cultura literária – quando mais
não seja o de escrever com relativa correcção linguística e elocutiva.» E, noutro passo: «Ciências e letras, que
absurda dicotomia! Ao transitar daquelas a estas, não dei fé da mudança – os mesmos
métodos, os mesmos processos de pesquisa.
Direi até que no ramo da erudição encontrei maior rigor e escrúpulo que nas
ciências de observação e experiência, e nomeadamente na medicina. Senti que o
meu ser lógico se robustecera ao treinar-me nas questões da paleo-literatura.» Ora aqui está um belo elogio das letras, vindo
das ciências!
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