quinta-feira, 20 de maio de 2021

CAROLINA E JORGE: DIÁLOGO EPISTOLAR


Meu artigo no último JL:

A Carolina do título é D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1851 – 1925), a filóloga, crítica literária e professora universitária luso-alemã, que foi a primeira professora do ensino superior em Portugal: foi nomeada professora de Filologia Germânica na recém-formada Universidade de Lisboa em 1911, mas logo se transferiu para a Universidade de Coimbra, pois ficava mais perto do Porto, onde residia com o marido Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), historiador, musicólogo e crítico de arte. A sua bibliografia, reunida em 1933 num opúsculo da Imprensa da Universidade de Coimbra, inclui 171 publicações, a primeira das quais vinda a lume quando tinha apenas 16 anos e última seis anos após a sua morte. Escreveu, sempre com grande rigor e por vezes com brilhante pioneirismo, sobre os cancioneiros medievais, Gil Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Luís de Camões, Uriel da Costa, etc. Perto do fim, resumiu assim o seu currículo: “Não tenho biografia. Gastei a minha vida a estudar.”

Por seu lado, o Jorge do título é Ricardo Jorge (1858-1939), o médico, higienista e professor de Medicina portuense (o pai, de profissão modesta, tinha raízes em Vouzela). Formado na escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1879, Jorge começou por se interessar por neurologia, para se passar a dedicar à saúde pública. Em 1899 identificou a peste bubónica no Porto, mas teve de fugir à fúria do povo descontente com as medidas de isolamento profiláctico. Passou então a ser professor de Higiene na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e fundou o Instituto Central de Higiene, que é o antecessor do  Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge. Em Lisboa enfrentou várias epidemias do início do século XX como a pneumónica, a tuberculose, a cólera e o tifo. Da sua extensa bibliografia, constam títulos científicos pioneiros como Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa e A Peste Bubónica do Porto 1899, e outros de interesse histórico-literário como Amato Lusitano, Canhenhos dum Vagamundo e Sermões de um Leigo.

Carolina Michaëlis e Ricardo Jorge corresponderam-se sobre assuntos literários entre 1909 e 1925, sendo conhecidos 132 espécimes. As cartas de Carolina para Jorge estão na Biblioteca Nacional e as de Jorge estão na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e na colecção privada de um seu bisneto. A Imprensa da Universidade de Coimbra acaba de publicar esse diálogo epistolar: Correspondência – Carolina Michaelis de Vasconcelos e Ricardo Jorge. São autores da muito cuidada edição, Maria Manuela Delille, professora de Germânicas jubilala, e a Isabel João Ramires, bibliotecária da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. A edição em pdf é facilmente acessível: https://digitalis-dsp.uc.pt/jspui/bitstream/10316.2/2725/3/Carolina%20Michaelis.preview.pdf Merece louvor o amplo esforço daquela editora no domínio do digital.

Para além de uma muito útil introdução, que coloca as cartas no seu contexto, e da correspondência propriamente dita, rigorosamente transcrita e anotada, o livro tem no final uma lista cronológica das cartas e bilhetes postais, uma tábua comparativa da obra de Ricardo Jorge Francisco Rodrigues Lobo. Estudo biográfico e crítico, publicada na Revista da Universidade de Coimbra (1913-1918) e em separata em 1920 (há uma edição facsimilada da Fenda, 1996), e uma relação das cartas eruditas de Carolina publicadas até agora na íntegra (entre os seus correspondentes estão nomes como Marcelino Menéndez Pelayo, Afonso Lopes Vieira, Teófilo Braga e Oliveira Martins).

O que diziam um ao outro uma grande filologia e um grande médico? Os dois sábios carteavam-se trocando informações e publicações de natureza literário-histórica. Foi Ricardo Jorge, mais novo e grande admirador de Carolina, que tomou a iniciativa de lhe escrever  oferecendo-lhe um seu artigo saído numa revista espanhola sobre a comédia La Celestina, de Fernando de Rojas (1499). O médico albicastrense Amato Lusitano (João  Rodrigues de Castelo Branco), que Jorge biografou, refere essa comédia  no seu  livro Index Dioscórides (1536). E Carolina tinha escrito sobre La Celestina em 1901. O apreço de Jorge era inteiramente retribuído por Carolina. Os dois entendiam-se muito bem, apesar de um ser de ciências e outra de letras. Foram ganhando familiaridade ao longo dos anos, cada um contando ao outro os seus achaques e os lugares  por onde tinham andado. Carolina reviu as provas da referida monografia de Jorge sobre Francisco Rodrigues Lobo (1574-1621; comemoram-se este ano 400 anos da sua morte), o escritor leiriense autor de Corte na Aldeia (1619), considerada a aparição do barroco em Portugal. Além disso, Carolina escreveu para Jorge o prefácio de A Intercultura de Portugal e Espanha (1921). Encontram-se nas cartas referências ao panorama literário da época, com Jorge a insurgir-se violentamente contra um plágio de Teófilo Braga, e ao panorama político-cultural, com Carolina a bater a porta com estrondo à Academia das Ciências, onde em 1911 tinha sido um das duas primeiras mulheres a entrar, por causa de uma catilinária antialemã divulgada por alguns académicos. Ambos publicaram na revista Lusitânia, da qual Carolina foi directora.

O volume agora publicado mostra como há mais de um século havia um diálogo profícuo entre ciências e letras. No seu livro sobre Rodrigues Lobo escreve Jorge: «(...) Ciências e letras, para estes olheiros sobrecenhudos, têm fosso de permeio. Se ao letrado chega a ser lícito divagar pelos domínios do cientista, o inverso é julgado defeso; o profissional da ciência arrisca-se a sair lesado na  reputação, e até na seriedade do seu ofício ou do seu cargo, se lhe descobrem ressaibos de cultura literária – quando mais não seja o de escrever com relativa correcção linguística e elocutiva.»  E, noutro passo: «Ciências e letras, que absurda dicotomia! Ao transitar daquelas a estas, não dei fé da mudança – os mesmos métodos, os mesmos processos de pesquisa.  Direi até que no ramo da erudição encontrei maior rigor e escrúpulo que nas ciências de observação e experiência, e nomeadamente na medicina. Senti que o meu ser lógico se robustecera ao treinar-me nas questões da paleo-literatura.»  Ora aqui está um belo elogio das letras, vindo das ciências!

 

 

 

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