Texto que nos foi enviado pelo Professor Mário Frota e que muito agradecemos pela explicação que faz de um documento legal recentemente publicado cuja leitura e interpretação está longe de ser simples e unívoca.
Veio a lume, no Jornal Oficial, editado em Portugal, por estes dias, a CARTA DE DIREITOS HUMANOS NA ERA DIGITAL.
É um diploma com uma mancheia de artigos (23) que provê às situações correntes provocadas no quadro da Sociedade Digital em que a outrora sociedade analógica desembocou, a saber: direitos em ambiente digital; direito de acesso ao ambiente digital; liberdade de expressão e criação em ambiente digital; garantia do acesso e uso; direito à protecção contra a desinformação; direito à privacidade em ambiente digital; uso da inteligência artificial e de robôs; direito à neutralidade da Internet; direito ao desenvolvimento de competências digitais; direito à identidade e outros direitos pessoais; direito ao esquecimento; direitos em plataformas digitais; direito à cibersegurança; direito à protecção contra a geolocalização abusiva; direito ao testamento digital; direitos digitais face à Administração pública; direito das crianças; acção popular digital e outras garantias.
A “OUTORGA” DE DIREITOS EM AMBIENTE DIGITAL OU O MERO RECONHECIMENTO DE UMA SITUAÇÃO FACTUAL?
A Carta é o resultado de uma inconfessável intenção de enquadrar as situações factuais de ocorrência quotidiana ou o delineamento de uma disciplina prospectiva ante a evolução estimada da Sociedade Digital?
Afigura-se-nos que a Carta de Direitos Humanos na Era Digital é uma tentativa de enquadrar algo que tem tido uma expansão considerável sem as baias de um qualquer ordenamento que cerceie, limite, coarcte a iniciativa e a liberdade com que tais fenómenos se exprimem no quotidiano, cada vez com maior intensidade, na translação da sociedade analógica para a SOCIEDADE DIGITAL.
Como proclamação de princípio, a de que “a República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, protecção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital.”
A República Portuguesa participa nos esforços internacionais para que o ciberespaço permaneça aberto à livre circulação das ideias e da informação e assegure a mais ampla liberdade de expressão, assim como a liberdade de imprensa.
Plenamente aplicáveis no ciberespaço, as normas que consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias.
E, no que tange ao acesso ao ambiente digital, uma norma decalcada da do Texto Fundamental segundo a qual “todos, independentemente da ascendência, género, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, têm o direito de livre acesso à Internet.”
Ao Estado incumbe, de molde a propiciar um ambiente digital susceptível de fomentar a garantir os direitos humanos, assegurar
- O uso autónomo e responsável da Internet e o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação;
- A definição e execução de programas de promoção da igualdade de género e das competências digitais nas diversas faixas etárias;
- A eliminação de barreiras no acesso à Internet por pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo, designadamente através da definição e execução de programas com esse fim;
- A redução e eliminação das assimetrias regionais e locais em matéria de conectividade, assegurando a sua existência nos territórios de baixa densidade e garantindo em todo o território nacional conectividade de qualidade, em banda larga e a preço acessível;
- A existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos, como bibliotecas, juntas de freguesia, centros comunitários, jardins públicos, hospitais, centros de saúde, escolas e outros serviços públicos;
- A criação de uma tarifa social de acesso a serviços de Internet aplicável a clientes finais economicamente vulneráveis;
- A execução de programas que garantam o acesso a instrumentos e meios tecnológicos e digitais por parte da população, para potenciar as competências digitais e o acesso a plataformas electrónicas, em particular dos cidadãos mais vulneráveis;
- A adopção de medidas e acções que assegurem uma melhor acessibilidade e uma utilização mais avisada, que contrarie os comportamentos aditivos e proteja os consumidores digitalmente vulneráveis;
- A continuidade do domínio de Internet de Portugal “.PT”, bem como das condições que o tornam acessível tecnológica e financeiramente a todas as pessoas singulares e colectivas para registo de domínios em condições de transparência e igualdade;
- A definição e execução de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CRIAÇÃO EM AMBIENTE DIGITAL
A Carta cuja publicação é de há dias proclama imperativamente que “todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura, sem prejuízo do disposto na lei relativamente a condutas ilícitas.”
A todos se confere o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de protecção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.
A criação de obras literárias, científicas ou artísticas originais, bem como as equiparadas a originais e as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão gozam de especial protecção contra a violação do disposto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos em ambiente digital.
É reconhecido o direito à livre criação intelectual, artística, científica e técnica.
Todos têm o direito a beneficiar, em ambiente digital, da protecção legalmente conferida às obras, prestações, produções e outros conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual.
As medidas proporcionais, adequadas e eficazes com vista a impedir o acesso ou a remover conteúdos disponibilizados em manifesta violação do direito de autor e direitos conexos constarão de lei especial, ainda na forja.
GARANTIA DO ACESSO À E USO DA REDE MUNDIAL DA INFORMAÇÃO & OS DIREITOS EM PLATAFORMAS DIGITAIS
É proibida a interrupção intencional de acesso à Internet, seja parcial ou total, ou a limitação da disseminação de informação ou de outros conteúdos, salvo em circunstância excepcionais recobertas pela lei.
No que tange ao direito à liberdade de criação e à protecção dos conteúdos, ali se prescreve que “todos têm direito à livre criação intelectual, artística, científica e técnica, bem como a beneficiarem, no ambiente digital, da protecção legalmente conferida às obras, prestações, produções e outros conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual.
As medidas proporcionais, adequadas e eficazes com vista a impedir o acesso ou a remover conteúdos disponibilizados em manifesta violação do direito de autor e direitos conexos figurarão em lei especial, ora na forja.
Na serventia das plataformas digitais, os cidadãos reúnem em si uma mancheia de direitos, nomeadamente, os de:
- Receber informação clara e simples sobre as condições de prestação de serviços quando recorram a plataformas que viabilizam fluxos de informação e comunicação;
- Exercer em tais plataformas os direitos garantidos pela Carta e na demais legislação aplicável;
- Ver garantida a protecção do seu perfil, incluindo a sua recuperação se necessário, bem como de obter cópia dos dados pessoais que lhes respeitem, de harmonia com a lei;
- Apresentar reclamações e recorrer a meios alternativos de resolução de molde a dirimirem os litígios que entretanto se suscitem.
O Estado promove o emprego pelas plataformas digitais de sinaléticas gráficas que transmitam de forma clara e simples a política de privacidade que asseguram aos seus usuários.
AS CRIANÇAS EM AMBIENTE DIGITAL E SEUS PECULIARES DIREITOS
Os direitos das crianças merecem especial menção na Carta, num dos artigos do fim (o 20.º), porém, numa sistematização que se entende não acolher.
As crianças têm direito a protecção especial e aos cuidados necessários ao seu bem-estar e segurança no ciberespaço.
E, de modo redundante, porém, a asserção segundo a qual “as crianças podem exprimir livremente a sua opinião”.
Aos menores se reconhece e têm a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, em função da sua idade e maturidade.
Não se ignore que, em Portugal, aos menores é lícito, a partir dos 13 anos, a outorga de consentimento no que aos seus dados pessoais se refere.
O que significa que o grau de maturidade, para o efeito, se reconheça desde então. E em grau elevado, dada a relevância do que nos dados se envolve e comporta. Quando se não ignora que os artifícios, as sugestões e os embustes em que se tende a enredar os menores recrudescem de tom a afinação é tal que um tal universo-alvo pelas suas potencialidades não pode passar despercebidos aos predadores que no mercado se passeiam impunemente.
DIREITO À SEGURANÇA EM AMBIENTE DIGITAL
Todos têm direito à segurança no ciberespaço, incumbindo ao Estado definir políticas públicas que assegurem a tutela e garantam a protecção dos cidadãos e das redes e sistemas de informação, e que criem mecanismos que aumentem a segurança no uso da Internet, em especial por parte de crianças e jovens, a que se alude no passo precedente.
A segurança neste particular assume algo de inexprimível, já que os embustes de que as redes, as plataformas e os sistemas se rodeiam constituem alvos a abater sistematicamente, garantindo as vítimas contra os mil e um artifícios, os permanentes ardis de que os predadores das redes lançam mão em vista da captura de dados e dos danos a esse título causados a todos e a cada um.
O Centro Nacional de Cibersegurança promove, em articulação com as demais entidades pública e os parceiros privados, a formação dos cidadãos e empresas por forma a adquirirem capacitação prática e beneficiarem de serviços online de prevenção e neutralização de ameaças à segurança no ciberespaço, como imperativo indeclinável.
Daí que se reconheça aos cidadãos o direito à educação para a aquisição e o desenvolvimento de competências digitais.
O Estado promove e executa programas que incentivem e facilitem o acesso, por parte das várias faixas etárias da população, a meios e instrumentos digitais e tecnológicos, por forma a assegurar, designadamente, a educação através da Internet e a utilização crescente de serviços públicos digitais.
O serviço público de comunicação social audiovisual contribui para a educação digital dos utilizadores das várias faixas etárias e promove a divulgação da presente lei e demais legislação aplicável.
ACÇÃO POPULAR DIGITAL E OUTRAS GARANTIAS
A tutela dos direitos que se reconhecem aos cidadãos na Carta de Direitos Humanos na Era Digital processar-se-á por meio da acção popular, constitucionalmente consagrada e que se adaptará à realidade do ambiente digital, como aponta a lei.
Ao Estado cumpre estimular o exercício pelos cidadãos de determinados direitos, a saber:
- Reclamação,
- Acesso e
- Recurso a formas alternativas de resolução de litígios emergentes de relações jurídicas entretecidas no ciberespaço.
As Fundações e associações de escopo não egoístico (altruístico, pois) que se dediquem à promoção e defesa do disposto na Carta têm o direito a obter o estatuto de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável às entidades de carácter cultural.
Os direitos assegurados em processo administrativo em suporte electrónico, de harmonia com as prescrições do Código do Procedimento Administrativo, constarão de legislação própria, a aprovar em lapso não excedente a 180 dias.
A DESINFORMAÇÃO E AS MEDIDAS QUE VISAM PROTEGER OS CIDADÃOS CONTRA PROCEDIMENTOS TAIS
Cumpre ao Estado assegurar o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Acção contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou colectivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada como desinformação:
- por desinformação se entende toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, susceptível de causar prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos;
- informação comprovadamente falsa ou enganadora é, designadamente, a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio electrónico e o uso de redes de seguidores fictícios;
- os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias não cabem no conceito de informação comprovadamente falsa ou enganadora.
Aos cidadãos cabe o direito de apresentar e ver apreciadas pela ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social as denúncias e reclamações contra entidades que pratiquem os actos subsumíveis no conceito de desinformação, tal como se recorta no passo precedente.
CRIAÇÃO DE ESTRUTURAS DE VERIFICAÇÃO DE FACTOS POR ÓRGÃOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Ao Estado compete a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.
Temem os que da comunicação social fazem profissão de fé e se lhe consagram por inteiro que se esteja a entreabrir a porta à criação de Comissões de Censura, a pretexto de que as narrativas de desinformação subvertem a ordem constitucional e perturbam o regular exercício da “sociedade democrática”.
O que consistiria, em clima aparentemente democrático e perante a ameaça ou a consecução de narrativas, uma qualquer narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada de molde a obter vantagens económicas ou com o fito de enganar deliberadamente o público?
O receio de que, por trás de uma medida aparentemente conatural e de todo isenta de efeitos perniciosos, surjam formas inconfessáveis e de controlo e rejeição, não se pode ter por desprezível e injustificado, dada a tentação que – quantas vezes – se apossa do poder por forma a cercear a livre expansão de ideias e sua natural expressão.
“Todo o poder corrompe”! O “poder absoluto”, que as condições de afirmação das respostas à crise pandémica vieram a impor, por entre manifestações de liberdade e seu exercício, “tende a corromper absolutamente”…
E o facto é que é ténue a fronteira entre o normal exercício das liberdades e a narrativa sobre a narrativa que legitime uma qualquer intervenção, sem que os tribunais constituam a última fronteira em que as liberdades se dirimam tempestiva e oportunamente.
Não será fácil intuir o que seja “narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, susceptível de causar prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”.
Aliás, o pendor com que se cercearam, em homenagem à salus publica, direitos, liberdades e garantias durante os estados de emergência e de calamidade pública, que ainda transcorrem, com actividades policiescas nem sempre legitimadas, como de há muito não havia notícia, permitem perspectivar o pior, como medida de pretensa salvaguarda do bem comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de um texto mais que se trata. No afã de legislar que do legislador se apossa perante a novidade e os desafios que a sociedade hodierna lança a todos e a cada um na senda do ciberespaço.
De um texto que tenderá a desenvolver-se de forma mais instante face à ignomínia perpetrada por quantos se dediquem de forma menos proba a actividades no seio da Sociedade Digital.
De ressaltar, na enunciação de direitos que, dada a sua extensão, não foi possível versar em profundidade, dada a natureza breve do escrito, o leque de acções que ao Estado incumbe promover para que a inclusão ocorra de todo na Sociedade Digital e as assimetrias se eliminem de todo:
- O livre acesso às tecnologias de informação e comunicação;
- A existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos, como bibliotecas, autarquias locais, centros comunitários, jardins públicos, hospitais, centros de saúde, escolas e demais serviços públicos;
- A criação de uma tarifa social de acesso a serviços de Internet aplicável a consumidores finais economicamente vulneráveis;
- A eliminação de barreiras no acesso à Internet por pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo;
- A execução de programas que garantam o acesso a instrumentos e meios tecnológicos e digitais por parte da população, para potenciar as competências digitais e o acesso a plataformas electrónicas, em particular dos cidadãos mais vulneráveis;
- A redução e eliminação das assimetrias regionais e locais em matéria de conectividade, assegurando a sua existência nos territórios de baixa densidade e garantindo em todo o território nacional conectividade de qualidade, em banda larga e a preço acessível;
- A definição e execução de programas de promoção da igualdade de género e das competências digitais nos diferentes segmentos da população;
- A adopção de medidas e acções que assegurem uma melhor acessibilidade e uma utilização mais avisada, que contrarie os comportamentos aditivos e proteja os consumidores digitalmente vulneráveis;
- A continuidade do domínio de Internet de Portugal “.PT”, bem como das condições que o tornam acessível tecnológica e financeiramente a todas as pessoas singulares e colectivas para registo de domínios em condições de transparência e igualdade;
- A definição e execução de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço.
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