Chegam-me com alguma frequência vários manuscritos e livros, de autores diversos, que são ou pretendem ser, por uma razão ou outra, heterodoxos relativamente a ciência conhecida. Desconfio sempre, com base na minha experiência, dessa heterodoxia espontânea que parece brotar de lado nenhum, embora simpatize com a heterodoxia, por muito insustentada que seja, por autores com obra feita noutros domínios e que pretendem comunicar com a física. É o caso do pintor Nadir Afonso, que escreveu três obras opondo-se a aspectos da teoria da relatividade de Einstein, mas cujo génio artístico eu muito respeito, pelo que escrevi com gosto o prefácio dessas obras para uma reedição pela editora da Universidade do Porto. Criadores como Nadir estão bem estabelecidos e não precisam de apoios de outrem para singrarem.
Em 2010 recebi o opúsculo “De Natura : notas para a
Filosofia da Física” de Henrique A. F. de Lara, publicado em Linda-a-Velha
pelo autor, de 61 páginas, que pretendia, com base numa eventual nova
perspectiva da termodinâmica, propor uma “revolução” da Física. Ora, não é
Einstein quem quer (Nadir Afonso sabia isso e não queria ser Einstein!), e eu,
apesar de várias porfiadas tentativas de ler o texto, não consegui perceber
praticamente nada. O autor, bem
intencionado decerto, mas sem conhecer nem o método da Física nem o método da Filosofia,
jogava com as palavras, misturava-as com equações onde as grandezas quase
sempre eram indefinidas, não invocava qualquer experiência (que é, recorde-se o
imperativo da Física). não conseguindo por isso produzir um discurso articulado
que sustentasse um tese com suficiente coerência e vaidade, seja na Física seja
na Filosofia. Não conseguindo perceber e porque, apesar de toda a minha boa
vontade, o tempo me escasseia, pus a leitura de lado ao fim de poucas páginas e
ofereci o livro ao Rómulo, a biblioteca que fundei na Universidade de Coimbra,
para que ficasse à disposição de outros, que eventualmente ali encontrassem algum
sentido.Uma biblioteca pública é, per omnia, um lugar de descoberta. Vem
um dia em que um livro encontra o seu leitor.
Passada uma década,
recebi o livro seguinte do mesmo autor intitulado “Para a Filosofia da Física :
notas e conjeturas”, com algumas páginas mais, publicado em 2020 pela Sopa de
Letras, de Cascais, uma editora que eu não conhecia. Quando tive tempo para lhe
dar atenção, verifiquei que a primeiras 43 páginas coincidiam com as da obra
anterior, conforme o próprio autor
assinala expressamente em nota prévia. Como ele diz: “com muito poucas
alterações”. A mais importante diferença era a publicação de um simpático
prefácio do, infelizmente já falecido, João Corte-Real, professor de
Climatologia da Universidade de Évora, O resto do volume eram três textos complementares, com um prefácio,
também bondoso mas bastante mais céptico, de José Pedro Mimoso, investigador de
Cosmologia e Astrofísica Relativista da Universidade de Lisboa. O segundo prefácio não era um prefácio aos
textos novos, mas um prefácio aolivro anterior, que assim ficava com dois.
Li os dois prefácios e, compreendendo as razões dos meus
colegas, tenho a dizer que não os consigo acompanhar na totalidade. Acompanho o
segundo ainda menos do que o primeiro. O primeiro prefaciador expõe rapidamente
o digest que ele retirou do livro. Não faz muito sentido: o autor quer
substituir o tempo pela temperatura (relógios e termómetros medem, segundo ele,
a mesma coisa, o que eu não entendo pois não estou a ver como vai cronometrar
uma corrida com um termómetro), quer
ligar a relatividade geral com a teoria quântica (um sonho perseguido e não concretizado
por alguns dos melhores cérebros do mundo) , propõe uma nova constante
fundamental da física que afinal é uma combinação de constantes existentes
(portanto, não é nova), e afirma que acção e entropia são “uma e a mesma coisa”
esquecendo que as unidades são completamente diferentes e que tanto a acção e a
entropia são grandezas relativas a alguma coisa (acção de quê? Entropia de quê?).
O discurso chega a ser poético, mas surrealista: “O tempo está, assim,
associado, à transformação do calor em espaço” No fim, há um “princípio da conservação
da forma”, seja lá isso o que for (a “forma”)
Tentei nas páginas seguinte voltar ao texto que tinha abandonado
há dez anos. Não consegui, por muito esforço que fizesse. Logo na página
inicial está escrito que o “a constante de Planck (h) é um índice da
natureza fundamentalmente discreta do espaço e do tempo.” Índice? Mas o que vem
a ser um índice? E qual é a base para afirmar a natureza discreta do espaço e do
tempo? Bem sei que há autores que defendem tal hipótese, mas com uma sustentação
de que aqui não se vislumbra ponta (não há bibliografia, nao há nada). Logo a
seguir vem uma pretensa relação entre a constante de Planck e a constante de
Boltzmann. Não é indicada que relação possa ela ser. Com pena minha, não
consegui ler mais, pois é como ler uma língua estranha, em que não sei o que as
palavras significam.
Recomecei a ler a obra na sua segunda parte, na esperança de
encontrar o sentido perdido. O texto “Para uma teoria dos processos de
transformação da energia” começa assim: “Energia térmica é, na sua aceção
corrente, energia cinética. Mas pode pensar-se esta última, o movimento, como
uma energia parcialmente congelada, atualização de uma potencialidade. Isto é,
como uma expressão da conversão de radiação em massa (ou vice-versa), da virtualidade
em espaço (ou vice-versa)”. Com esse
começo, fica tudo por dizer, mas pouco mais se pode dizer. Fica tudo por saber.
Acho sinceramente, e não se veja aqui nenhum argumento de autoridade, que faz
falta um maior conhecimento da Termodinâmica e da Mecânica clássicas ao autor,
para já não falar da Física estatística e da Física Quântica. Energia térmica é
uma expressão arcaica a evitar. Deve-se dizer antes energia interna: só uma parte
desta tem a ver com a energia cinética (a não ser no modelo banal do gás
perfeito). E o que quererá dizer que o movimento é “energia parcialmente congelada”?
Que parte está congelada? E o que é aqui o congelamento? Como se congela o
movimento?
Vou oferecer o livro à mesma Biblioteca, onde ele poderá encontrar
autores mais persistentes do que eu. Parece que o autor, cuja vontade de se
tornar físico ou filósofo da Física, não posso deixar de louvar, não atingiu o
seu objectivo que era talvez propor algo que possa ser discutido, através de
refutação, fosse ciência fosse filosofia. Como bem lembra Mimoso, há desenvolvimentos
recentes, da termodinâmica aplicada à cosmologia (segunda lei da termodinâmica para os buracos
negros), que podem parecer aparentados a conteúdos deste livro, mas têm base
matemática e física sólida (Hawking discutiu esses assuntos). Assim
como há ligações formalmente interessantes entre a teoria quântica e a teoria
da difusão, que até servem de base a algoritmos de resolução numérica da
equação de Schroedinger, um assunto que este livro também toca (basta passar o
tempo para a dimensão imaginária). Mas analogias vagas não são nem podem ser leis
físicas, que se baseiam sempre na observação, na experimentação e na lógica
matemática, que aqui estão arredadas. De resto, não se pode pretender que um
autor, que não defina nada nem cite ninguém, possa chegar em poucas páginas a
uma “teoria geral da Física”, o título de um dos textos deste mini-volume, que
basicamente repete o anterior, sem que se perceba o acrescento havido.
1 comentário:
Esta situação lembra-me o tempo em que no INEF havia uma cadeira prática de Esgrima que logo nós aproveitámos para chamar, nas suas costas, ao seu monitor "pica chouriços".
No intervalos das aulas teóricas, influenciados pelos filmes de Errol Flyn, espadachim de grande elegância, ai Jesus das meninas românticas, íamos para a Sala de Armas para ensaiarmos a arte do nosso ídolo, com floretes que manuseava-mos como catanas chamando a estes combates bárbaros assaltos de esgrima. Ou seja, o que julgávamos ser uma coisa era outra como o autor do livro que quando se refere a temas científicos, ao que me atrevo a pensar, mete os pés pelas mãos à medida da sua ignorância.
Enviar um comentário