quinta-feira, 1 de outubro de 2020

UM MÉTRICA IRRACIONAL E TRANSCENDENTE


Meu artigo no último número de "As Artes entre as Letras":

Qual é a relação entre o poema do matemático francês oitocentista Alphonse Rebière

“Que j’aime à faire apprendre un nombre utile aux sages !

Immortel Archimède, artiste ingénieur,

Qui de ton jugement peut priser la valeur ?

Pour moi, ton problème eut de pareils avantages.”

e o número pi, que é a razão entre o perímetro e o diâmetro de qualquer circunferência:

pi = 3,14159 26535 89793 23846 26433 83279… ?

É fácil ver que o pi está contido no poema: basta contar o número de letras das sucessivas palavras…  Portanto, para saber a sucessão de algarismos do pi basta memorizar o poema.

Num livro recente da Editora da Universidade do Porto, António Machiavelo, professor de Matemática daquela Universidade, e Graça Brites, técnica superiora do ISCTE de Lisboa, propõem-nos 32 poemas do mesmo tipo em língua portuguesa, cada um deles com 32 palavras. Escolho como exemplo um, intitulado precisamente “Pi”:

“Ama o real e muito hermético Pi,

Eterno, fugaz, mas razão circular constante.

Exótica incógnita, não se lhe encontra rota.

Número de remota raiz, tem tal mistério

Que dá intenso acrotismo sério.”

 

Assim como um soneto é um formato poético com uma determinada métrica, os autores recorrem neste curioso livro a uma métrica estranha, a que podemos chamar irracional e transcendente, porque o pi é um número irracional e transcendente.

O que significa neste contexto irracional? E transcendente? Depois de uma curta introdução, os autores, num capítulo intitulado “Prelecções” (eles colocam o pi no lugar do p), expõem brevemente o que é o pi, mostrando como ele é ubíquo na matemática. Fornecem aí uma explicação dos referidos termos, bem conhecidos de quem tem alguma formação matemática.  Números irracionais são aqueles que não podem ser obtidos pela divisão de dois números inteiros (os racionais podem). E números transcendentes são aqueles que não podem ser a solução de nenhuma equação algébrica de coeficientes racionais: por exemplo, é impossível a igualdade a + b pi + c pi^2 = 0 (uma equação de segundo grau), com a, b e c números racionais. A demonstração da transcendência de pi foi feita em 1882 pelo matemático alemão Ferdinand von Lindemann. Ela  resolveu de vez a velha questão da quadratura do círculo, que consiste em construir geometricamente num número finito de etapas um quadrado com a área de um dado círculo.

Outra definição curiosa, devida ao matemático francês Émile Borel, em 1909, é a de “número absolutamente normal”. Um número é designado por este nome, se, escrito em qualquer base (o pi foi atrás escrito na base decimal, mas pode ser escrito nas bases 2, 3, etc.), todas as combinações possíveis com um determinado número de dígitos surgem com igual probabilidade. Nunca foi provado que o número pi é “absolutamente normal”, embora se suspeite que seja. Há uma aplicação à “Biblioteca de Babel”: Escrevendo o o pi na base 27 (o número de letras do alfabeto)  e substituindo os números pelas letras do alfabeto, o número pi  escreve-se C,CVEZCVBMLYZX… A frase “IR À LUA” (mais propriamente IRALUA) encontra-se então na posição 123045765. A representação nessa base de um número absolutamente normal, como será eventualmente o pi, contém todos os textos jamais escritos, incluindo Os Lusíadas, e todos os que estão ainda por escrever (lembremos que a sucessão de letras que representam o pi é infinita e que todas as combinações devem aparecer…). No romance “Contacto”, de Carl Sagan, o autor sugere que o criador do Universo escreveu uma mensagem secreta nos dígitos do pi. O autor é cientista, mas a história é de ficção científica. 

Não deve ter sido fácil aos autores a escrita dos poemas. Podem ter começado com uma ideia, mas depois o rígido formato levou-os a tergiversar. Eles explicam:

”No processo de construção dos poemas praticámos várias abordagens e testámos diversos pontos de partida. Por vezes uma ideia muito apetecida foi obrigada a sucumbir à tirania de um algarismo, pois as palavras que melhor a descreveriam não eram permitidas à luz da métrica escolhida. Tivemos, por isso, que ajustar os vocábulos ao número de letras e, chegados ao fim do poema, o tópico inicial tinha sido substituído por outro completamente diferente daquele que tinha sido planeado inicialmente.

Outras vezes tomámos por mote uma palavra com o número de letras permitidas. A partir delas surgiram-nos darandinas de ideias que tivemos de ir moderando, demarcando. Foi como se, caminhando ao longo de um regato, fôssemos de enxada nas mãos amanhando a terra, assim reedificando os bordos, evitando resvalos de águas e cheias desnecessárias.”

Machiavelo e Brites não dizem como fizeram o seu trabalho: terá sido um “cadáver esquisito”, em que um tinha de continuar a escrita do outro sem saber qual era? Qualquer que tenha sido o método, o resultado é bastante curioso e o livro uma boa contribuição para a cultura científica. Suspeito que um crítico literário dirá que a maior parte dos poemas não serão muito bons, mas poder-se-á responder que o formato é uma verdadeira “camisa de onze varas”. Ou, talvez melhor, uma “camisa de 3,141592654… varas”.

 

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