Meu artigo no último número de "As Artes entre as Letras":
Qual é a relação entre o poema do matemático francês oitocentista Alphonse Rebière
“Que
j’aime à faire apprendre un nombre utile aux sages !
Immortel
Archimède, artiste ingénieur,
Qui
de ton jugement peut priser la valeur ?
Pour moi, ton problème eut de pareils avantages.”
e o número pi, que é a
razão entre o perímetro e o diâmetro de qualquer circunferência:
pi =
3,14159 26535 89793 23846 26433 83279… ?
É fácil ver que o pi está
contido no poema: basta contar o número de letras das sucessivas palavras… Portanto, para saber a sucessão de algarismos
do pi basta memorizar o poema.
Num livro recente da
Editora da Universidade do Porto, António Machiavelo, professor de Matemática
daquela Universidade, e Graça Brites, técnica superiora do ISCTE de Lisboa, propõem-nos
32 poemas do mesmo tipo em língua portuguesa, cada um deles com 32 palavras.
Escolho como exemplo um, intitulado precisamente “Pi”:
“Ama o real e
muito hermético Pi,
Eterno, fugaz, mas
razão circular constante.
Exótica incógnita,
não se lhe encontra rota.
Número de remota
raiz, tem tal mistério
Que dá intenso
acrotismo sério.”
Assim como um soneto é um
formato poético com uma determinada métrica, os autores recorrem neste curioso
livro a uma métrica estranha, a que podemos chamar irracional e transcendente,
porque o pi é um número irracional e transcendente.
O que significa neste
contexto irracional? E transcendente? Depois de uma curta introdução, os
autores, num capítulo intitulado “Prelecções” (eles colocam o pi no lugar do p),
expõem brevemente o que é o pi, mostrando como ele é ubíquo na matemática.
Fornecem aí uma explicação dos referidos termos, bem conhecidos de quem tem alguma
formação matemática. Números irracionais
são aqueles que não podem ser obtidos pela divisão de dois números inteiros
(os racionais podem). E números transcendentes são aqueles que não podem ser a
solução de nenhuma equação algébrica de
coeficientes racionais:
por exemplo, é impossível a igualdade a + b pi + c pi^2 = 0 (uma equação
de segundo grau), com a, b e c números racionais. A demonstração
da transcendência de pi foi feita em 1882 pelo matemático alemão
Ferdinand von Lindemann. Ela resolveu de
vez a velha questão da quadratura do círculo, que consiste em construir
geometricamente num número finito de etapas um quadrado com a área de um dado círculo.
Outra definição curiosa,
devida ao matemático francês Émile Borel, em 1909, é a de “número absolutamente
normal”. Um número é designado por este nome, se, escrito em qualquer base (o pi
foi atrás escrito na base decimal, mas pode ser escrito nas bases 2, 3, etc.),
todas as combinações possíveis com um determinado número de dígitos surgem com
igual probabilidade. Nunca foi provado que o número pi é “absolutamente normal”,
embora se suspeite que seja. Há uma aplicação à “Biblioteca de Babel”: Escrevendo
o o pi na base 27 (o número de letras do alfabeto) e substituindo os números pelas letras do alfabeto,
o número pi escreve-se C,CVEZCVBMLYZX…
A frase “IR À LUA” (mais propriamente IRALUA) encontra-se então na posição
123045765. A representação nessa base de um número absolutamente normal, como será
eventualmente o pi, contém todos os textos jamais escritos, incluindo Os
Lusíadas, e todos os que estão ainda por escrever (lembremos que a sucessão
de letras que representam o pi é infinita e que todas as combinações
devem aparecer…). No romance “Contacto”, de Carl Sagan, o autor sugere que o
criador do Universo escreveu uma mensagem secreta nos dígitos do pi. O autor é
cientista, mas a história é de ficção científica.
Não deve ter sido fácil
aos autores a escrita dos poemas. Podem ter começado com uma ideia, mas depois
o rígido formato levou-os a tergiversar. Eles explicam:
”No processo de
construção dos poemas praticámos várias abordagens e testámos diversos pontos
de partida. Por vezes uma ideia muito apetecida foi obrigada a sucumbir à
tirania de um algarismo, pois as palavras que melhor a descreveriam não eram
permitidas à luz da métrica escolhida. Tivemos, por isso, que ajustar os
vocábulos ao número de letras e, chegados ao fim do poema, o tópico inicial
tinha sido substituído por outro completamente diferente daquele que tinha sido
planeado inicialmente.
Outras vezes tomámos por
mote uma palavra com o número de letras permitidas. A partir delas surgiram-nos
darandinas de ideias que tivemos de ir moderando, demarcando. Foi como se,
caminhando ao longo de um regato, fôssemos de enxada nas mãos amanhando a
terra, assim reedificando os bordos, evitando resvalos de águas e cheias
desnecessárias.”
Machiavelo e Brites não dizem como fizeram o seu trabalho: terá sido um
“cadáver esquisito”, em que um tinha de continuar a escrita do outro sem saber
qual era? Qualquer que tenha sido o método, o resultado é bastante curioso e o
livro uma boa contribuição para a cultura científica. Suspeito que um crítico
literário dirá que a maior parte dos poemas não serão muito bons, mas poder-se-á
responder que o formato é uma verdadeira “camisa de onze varas”. Ou, talvez
melhor, uma “camisa de 3,141592654… varas”.
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