domingo, 11 de outubro de 2020

OS CONIMBRICENSES REVISITADOS

 


Texto que publiquei recentemente no Jornal de Letras:

Coimbra é famosa pelos Conimbricenses, ou, mais extensivamente, pelos Comentários a Aristóteles do Colégio Jesuíta Conimbricense, o conjunto de oito volumes de discussão, em latim, das obras de Aristóteles que os jesuítas do Colégio das Artes publicaram de 1592 a 1606 e que alcançaram rapidamente expansão global. Tirando as obras maiores da nossa literatura, nenhuns outros livros nacionais tiveram tanto renome internacional como os Conimbricenses, que saíram de muitos prelos estrangeiros para proveito de numerosíssimos estudantes (só na Europa houve mais de 112 edições). Entre os filósofos que referiram os Conimbricenses contam-se Descartes, Malebranche, Locke, Leibniz, Marx e Peirce. Sim, Karl Marx citou-os na sua tese de doutoramento apresentada em Jena em 1841.


Não admira, por isso, que na universidade que é Património Mundial da Humanidade esteja em curso um projecto que visa investigar, traduzir e comentar essa produção da Companhia de Jesus, que detinha, no alto da colina coimbrã, duas escolas preparatórias dos estudos superiores. O leitor pode ver esse labor no sítio conimbricenses.org, dirigido por Mário Santiago de Carvalho, professor de Filosofia da Faculdade de Letras local. Encontrará aí ligações que remetem para duas traduções muitos recentes de dois volumes, ambas on-line: o IV, os Pequenos Naturais, e o V, a Ética a Nicómaco (Imprensa da Universidade de Coimbra). As Edições Sílabo tinham publicado em 2010 Da Alma, o vol. VII. Faltam, portanto, traduções da Física (vol. I), do Céu (vol. II), dos Meteoros (vol. III), da Geração e Corrupção (vol. VI) e da Dialéctica, isto é, Lógica (vol. VIII). Para ajudar a ler todos eles, acaba de sair, pela Palimage, o Dicionário do Curso de Filosófico Conimbricense, onde, em 567 páginas, Mário Santiago de Carvalho, após uma introdução, discute exaustivamente os termos latinos dos Conimbricenses (há equivalências português-latim e latim-português no final). É obra de fôlego que louvo com gosto. Só não percebo por que não foi editada pela Imprensa da Universidade, editora que tem vindo a distribuir urbi et orbi  versões electrónicas da sua produção.


O mesmo autor já nos tinha dado, pela Imprensa da Universidade (em coedição com a Imprensa Nacional), um livrinho muito útil que compila o essencial sobre os Conimbricenses (O Curso Aristotélico Jesuíta Conimbricense, 2018). E, na mesma editora e sobre o mesmo tema, Cristiano Casalini, investigador italiano, tinha publicado Aristóteles em Coimbra (2015). Essa literatura crítica e divulgativa acresce ao clássico de Pinharanda Gomes, o grande historiador da filosofia portuguesa recentemente falecido, Os Conimbricenses (Guimarães, 1992; há uma edição on-line da Biblioteca Breve, no sítio do Instituto Camões).

Talvez a glória maior dos Conimbricenses tenha sido a contrafacção em várias imprensas estrangeiras, a começar por uma de Francoforte em 1604, do volume sobre lógica que tardava (ignora-se a origem do texto, mas deve ter vindo de lições lidas no colégio jesuíta de Évora, muito ligado ao de Coimbra). O livro ficou conhecido por Lógica Furtiva. O prefácio do vol. VIII esclarecia o roubo (muito óbvio, basta olhar para a capa da edição, que difere das outras edições principes, todas ostentando o grande emblema com o IHS dos jesuítas).


A autoria dos Conimbricenses pertenceu a um colectivo de quatro jesuítas, nenhum deles de Coimbra, embora a maioria falecidos nessa cidade: Manuel de Góis (Portel, 1543 – Coimbra, 1597), Cosme Magalhães (Braga, 1551 – Coimbra, 1624), Baltasar Alvares (Chaves, 1560 – Coimbra, 1630) e Sebastião do Couto (Olivença, 1567 - Montes Claros, 1639), sobressaindo o primeiro pela amplitude e qualidade do seu trabalho. Na génese da obra está Pedro da Fonseca (Proença-a-Nova, 1528 – Lisboa, 1599), o “Aristóteles português”, que foi autor de dois livros aristotelianos com ampla circulação internacional (a Dialéctica, de 1564, e a Metafísica, de 1577). Nos Conimbricenses o volume de lógica acabou por sair, pela mão de Couto, em último em vez de ter a primazia, como no curso oral, ao passo que o volume de metafisica nunca conheceu a luz do dia. Fonseca pertenceu a uma comissão inicial de preparação dos Conimbricenses, mas, devido aos seus afazeres, não avançou muito, não tendo também participado na comissão que acabou por levar a cabo o projecto.


A recepção principal na Europa dos Conimbricenses deu-se na Alemanha, com edições em Colónia e Mogúncia. Mas também houve edições na França e na Itália. Já em Inglaterra, dominada por Oxford e Cambridge, a difusão não foi tão ampla. Mas os livros galgaram os mares, chegando rapidamente ao Brasil, à Índia, à China e ao Japão (onde os portugueses tinham arribado em 1543). A difusão na China é digna de realce. Aristóteles chegou ao Oriente com grande atraso e mais tarde seria se não fosse a intermediação portuguesa. Chegou quase ao mesmo tempo que Galileu:  o jesuíta Manuel Dias, em 1614, numa obra escrita em mandarim, divulgou no Império do Meio as descobertas galilaicas feitas com o telescópio.   


É bem sabido que a expulsão dos jesuítas pelo marquês de Pombal em 1759 culminou um processo de propaganda maciça, aquém e além-fronteiras, que denegriam aqueles padres. A fama mundial alcançada pelos Conimbricenses mostra, porém, como eram, em larga medida, injustas as acusações do marquês. Porém, como a verdade não é a preto e branco, havia nelas algum fundamento. De facto, na altura em que foi publicada a obra coimbrã, decerto escolástica mas com muitos aspectos inovadores na interpretação de Aristóteles, o estagirita começava a ser letra morta com o surgimento da “nova ciência”. Já em 1590 Galileu se erguia contra Aristóteles. E, em 1609, era pioneiro a olhar o céu com um telescópio. Alguns jesuítas acompanhavam as novidades científicas, como mostram as lições na Aula da Esfera, em Lisboa, onde, em 1615, já se construíam telescópios.


Os Conimbricenses foram-se tornando obsoletos ao longo dos séculos XVII e XVIII, e, apesar das tentativas de renovação do curso filosófico empreendidas pelos jesuítas Soares Lusitano, o primeiro a introduzir Descartes entre nós (1651), e por António Cordeiro, o certo é que Luís António Verney tinha razões para, no Verdadeiro Método de Estudar (1746), espanejar a poeira entretanto acumulada.  Descartes criticou os Conimbricenses, que ele estudou no colégio jesuíta de La Flèche, no Loire, quando numa carta ao padre Mersenne, um físico amigo dele e de Galileu, lhe disse que os Conimbricenses eram “longos, sendo bom que fossem mais breves”. Se a filosofia cartesiana reagiu à escola aristotélica poder-se-á dizer que Coimbra ajudou a instaurar a modernidade ao propiciar um bom ensejo de crítica… Mas, no meu entender, o papel maior de Portugal na história da ciência foi ter sido interposto na transferência de conhecimento do Ocidente para Oriente numa época de uma grande mudança do mundo a que alguns chamam “primeira globalização”.


Carlos Fiolhais


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