Texto que publiquei recentemente no Jornal de Letras:
Coimbra é famosa pelos Conimbricenses,
ou, mais extensivamente, pelos Comentários a Aristóteles do Colégio
Jesuíta Conimbricense, o conjunto de oito volumes de discussão, em latim, das
obras de Aristóteles que os jesuítas do Colégio das Artes publicaram de 1592 a
1606 e que alcançaram rapidamente expansão global. Tirando as obras maiores da nossa
literatura, nenhuns outros livros nacionais tiveram tanto renome internacional como
os Conimbricenses, que saíram de muitos prelos estrangeiros para
proveito de numerosíssimos estudantes (só na Europa houve mais de 112 edições).
Entre os filósofos que referiram os Conimbricenses contam-se Descartes, Malebranche,
Locke, Leibniz, Marx e Peirce. Sim, Karl Marx citou-os na sua tese de doutoramento
apresentada em Jena em 1841.
Não admira, por isso, que na universidade
que é Património Mundial da Humanidade esteja em curso um projecto que visa
investigar, traduzir e comentar essa produção da Companhia de Jesus, que
detinha, no alto da colina coimbrã, duas escolas preparatórias dos estudos superiores.
O leitor pode ver esse labor no sítio conimbricenses.org, dirigido por Mário Santiago
de Carvalho, professor de Filosofia da Faculdade de Letras local. Encontrará aí
ligações que remetem para duas traduções muitos recentes de dois volumes, ambas
on-line: o IV, os Pequenos Naturais, e o V, a Ética a Nicómaco
(Imprensa da Universidade de Coimbra). As Edições Sílabo tinham publicado em
2010 Da Alma, o vol. VII. Faltam, portanto, traduções da Física (vol.
I), do Céu (vol. II), dos Meteoros (vol. III), da Geração e Corrupção
(vol. VI) e da Dialéctica, isto é, Lógica (vol. VIII). Para
ajudar a ler todos eles, acaba de sair, pela Palimage, o Dicionário do Curso
de Filosófico Conimbricense, onde, em 567 páginas, Mário Santiago de
Carvalho, após uma introdução, discute exaustivamente os termos latinos dos Conimbricenses
(há equivalências português-latim e latim-português no final). É obra de fôlego
que louvo com gosto. Só não percebo por que não foi editada pela Imprensa da
Universidade, editora que tem vindo a distribuir urbi et orbi versões electrónicas da sua produção.
O mesmo autor já nos tinha dado, pela
Imprensa da Universidade (em coedição com a Imprensa Nacional), um livrinho muito
útil que compila o essencial sobre os Conimbricenses (O Curso Aristotélico
Jesuíta Conimbricense, 2018). E, na mesma editora e sobre o mesmo tema,
Cristiano Casalini, investigador italiano, tinha publicado Aristóteles em
Coimbra (2015). Essa literatura crítica e divulgativa acresce ao clássico
de Pinharanda Gomes, o grande historiador da filosofia portuguesa recentemente
falecido, Os Conimbricenses (Guimarães, 1992; há uma edição on-line
da Biblioteca Breve, no sítio do Instituto Camões).
Talvez a glória maior dos
Conimbricenses tenha sido a contrafacção em várias imprensas estrangeiras,
a começar por uma de Francoforte em 1604, do volume sobre lógica que tardava (ignora-se
a origem do texto, mas deve ter vindo de lições lidas no colégio jesuíta de
Évora, muito ligado ao de Coimbra). O livro ficou conhecido por Lógica
Furtiva. O prefácio do vol. VIII esclarecia o roubo (muito óbvio, basta
olhar para a capa da edição, que difere das outras edições principes, todas
ostentando o grande emblema com o IHS dos jesuítas).
A autoria dos Conimbricenses pertenceu
a um colectivo de quatro jesuítas, nenhum deles de Coimbra, embora a maioria falecidos
nessa cidade: Manuel de Góis (Portel, 1543 – Coimbra, 1597), Cosme Magalhães
(Braga, 1551 – Coimbra, 1624), Baltasar Alvares (Chaves, 1560 – Coimbra, 1630) e
Sebastião do Couto (Olivença, 1567 - Montes Claros, 1639), sobressaindo o
primeiro pela amplitude e qualidade do seu trabalho. Na génese da obra está Pedro
da Fonseca (Proença-a-Nova, 1528 – Lisboa, 1599), o “Aristóteles português”,
que foi autor de dois livros aristotelianos com ampla circulação internacional (a
Dialéctica, de 1564, e a Metafísica, de 1577). Nos Conimbricenses
o volume de lógica acabou por sair, pela mão de Couto, em último em vez de ter
a primazia, como no curso oral, ao passo que o volume de metafisica nunca
conheceu a luz do dia. Fonseca pertenceu a uma comissão inicial de preparação
dos Conimbricenses, mas, devido aos seus afazeres, não avançou muito, não
tendo também participado na comissão que acabou por levar a cabo o projecto.
A recepção principal na Europa dos
Conimbricenses deu-se na Alemanha, com edições em Colónia e Mogúncia.
Mas também houve edições na França e na Itália. Já em Inglaterra, dominada por Oxford
e Cambridge, a difusão não foi tão ampla. Mas os livros galgaram os
mares, chegando rapidamente ao Brasil, à Índia, à China e ao Japão (onde os
portugueses tinham arribado em 1543). A difusão na China é digna de realce. Aristóteles
chegou ao Oriente com grande atraso e mais tarde seria se não fosse a intermediação
portuguesa. Chegou quase ao mesmo tempo que Galileu: o jesuíta Manuel Dias, em 1614, numa obra
escrita em mandarim, divulgou no Império do Meio as descobertas galilaicas feitas
com o telescópio.
É bem sabido que a expulsão dos jesuítas
pelo marquês de Pombal em 1759 culminou um processo de propaganda maciça, aquém
e além-fronteiras, que denegriam aqueles padres. A fama mundial alcançada pelos
Conimbricenses mostra, porém, como eram, em larga medida, injustas as acusações
do marquês. Porém, como a verdade não é a preto e branco, havia nelas algum
fundamento. De facto, na altura em que foi publicada a obra coimbrã, decerto escolástica
mas com muitos aspectos inovadores na interpretação de Aristóteles, o
estagirita começava a ser letra morta com o surgimento da “nova ciência”. Já em
1590 Galileu se erguia contra Aristóteles. E, em 1609, era pioneiro a olhar o
céu com um telescópio. Alguns jesuítas acompanhavam as novidades científicas,
como mostram as lições na Aula da Esfera, em Lisboa, onde, em 1615, já se
construíam telescópios.
Os Conimbricenses foram-se
tornando obsoletos ao longo dos séculos XVII e XVIII, e, apesar das tentativas
de renovação do curso filosófico empreendidas pelos jesuítas Soares Lusitano, o
primeiro a introduzir Descartes entre nós (1651), e por António Cordeiro, o
certo é que Luís António Verney tinha razões para, no Verdadeiro Método de Estudar
(1746), espanejar a poeira entretanto acumulada. Descartes criticou os Conimbricenses,
que ele estudou no colégio jesuíta de La Flèche, no Loire, quando numa carta ao
padre Mersenne, um físico amigo dele e de Galileu, lhe disse que os Conimbricenses
eram “longos, sendo bom que fossem mais breves”. Se a filosofia cartesiana reagiu
à escola aristotélica poder-se-á dizer que Coimbra ajudou a instaurar a
modernidade ao propiciar um bom ensejo de crítica… Mas, no meu entender, o papel
maior de Portugal na história da ciência foi ter sido interposto na transferência
de conhecimento do Ocidente para Oriente numa época de uma grande mudança do
mundo a que alguns chamam “primeira globalização”.
Carlos Fiolhais
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