Meu artigo no jornal I de ontem:
Metade do Prémio Nobel da Física
de 2020 foi há dias atribuído ao físico-matemático britânico Roger Penrose,
professor emérito de Matemática da Universidade de Oxford, que nasceu em 1931
em Colchester, no Essex, filho de Lionel Penrose, um cientista polifacetado
(médico geneticista, pediátrico e psiquiátrico, para além de teórico do
xadrez), e de Margaret Leathes, uma descendente de refugiados russos.
A razão da atribuição do prémio
mais elevado da Física foi o estabelecimento numa base matemática sólida dos
buracos negros, esses sítios do universo onde o espaço e o tempo terminam
devido à sua deformação extrema, que foi prevista pela teoria da relatividade
geral de Albert Einstein, mas cuja natureza exótica impediu durante muito tempo
que fossem considerados possibilidades reais. O artigo de Penrose de 1965 “Gravitational
Collapse and Space-Time Singularities”, publicado na revista de maior prestígio
da Física, a Physical Reviews Letters, abriu caminho a muitos outros
trabalhos que contribuíram para um melhor conhecimento desses “abismos
cósmicos”. Hoje sabemos que não são apenas soluções matemáticas de equações,
mas sim objectos que existem mesmo: a colisão de dois buracos negros emite
ondas gravitacionais que têm sido recolhidas na Terra (a primeira detecção
dessas ondas valeu o Nobel da Física de 2017 a três investigadores
norte-americanos) e técnicas sofisticadas de radioastronomia permitem obter
imagens de buracos negros supermaciços que existem no centro de galáxias. A
segunda metade do Nobel da Física deste ano foi precisamente para dois
astrofísicos observacionais: o alemão Reinhard Genzel e a norte-americana
Andrea Ghez, que identificaram o superburaco negro que existe no centro da
nossa Galáxia (ou Via Láctea) a partir das órbitas de estrelas muito próximas
dele.
Os trabalhos de Roger Penrose
sobre os buracos negros estão também relacionados coim com o Big bang, a que podemos chamar
“buraco branco”, o oposto de um buraco
negro: no buraco negro acaba o espaço e o tempo, tudo se precipitando para o
seu interior, ao passo que num buraco branco, começam o espaço e o tempo, tudo saindo do seu interior. Tanto os buracos
negros como o Big bang são os lugares mais misteriosos do Universo: são
o fim do mundo e o início do mundo. Eles estão nas fronteiras da ciência.
Sabemos hoje mais do que sabíamos ontem, mas esperamos saber mais sobre eles no
futuro. O físico britânico Stephen Hawking colaborou com Penrose sobre os
teoremas que abrangem os buracos negros e o Big bang, chamados “teoremas
da singularidade”. Os dois publicaram em 1970 um artigo onde afirmam que, aceitando
a validade da teoria da relatividade geral e de certos modelos geométricos do
cosmos, o nosso Universo tinha de começar com uma singularidade. Tanto Penrose
como Hawking continuaram, ao longo das suas “linhas do tempo”, a especular
sobre buracos negros e sobre o Big bang. Penrose formulou hipóteses a
que chamou de “censura cósmica” a propósito da existência de singularidades ditas
“nuas” (daí o nome de censura) e, mais tarde, propôs que haveria um universo
anterior ao Big bang, formulando uma teoria cíclica do tempo universal.
Penrose trabalhou, além da astronomia
e da cosmologia, em vários outros tópicos; desde o preenchimento geométrico do plano
com mosaicos especiais (um trabalho inspirado pelas gravuras do artista holandês
Maurits Cornelis Escher), até aos mistérios últimos da consciência humana. Penrose
formulou a hipótese muito controversa segundo a qual o funcionamento do cérebro
humano apenas seria explicável por um fenómeno quântico. Para ele o nosso cérebro
não pode ser imitado por um computador convencional, em clara oposição aqueles
que defendem o chamado “programa da inteligência artificial forte”. A discussão
deste assusto assunto conduziu Penrose ao campo fascinante da filosofia
da mente.
Roger Penrose é um popularizador
da ciência, que tem levado ao grande público as suas ideias mais exóticas,
tanto no domínio da astrofísica como no das neurociências. Ele é o autor de
quatro livros traduzidos em português, publicados todos eles pela Gradiva, que
vamos enumerar e comentar sucintamente.
O primeiro, escrito em conjunto
com Stephen Hawking, foi A Natureza do Espaço e do Tempo (1996): é um
diálogo entre estes dois grandes físicos. O livro, que é o n.º 3 da coleção Trajectos
da Ciência, foi traduzido pelo matemático Jorge Buescu. A discussão entre Penrose
e Hawking teve lugar num ciclo de seminários
realizados em 1994 no Instituto de Ciências Matemáticas Isaac Newton da
Universidade de Cambridge (Hawking ocupou a Cátedra Lucasiana de Matemática que
foi outrora de Newton). O conteúdo do livro é um pouco técnico, uma vez que os
autores não fogem a equações, mas mesmo quem não consiga perceber a letra, pode
ouvir a música: fala-se não só da teoria da relatividade geral como da sua eventual
combinação com a teoria quântica. Hawking propôs uma combinação ad hoc entre
as duas, da qual surgiu como resultado mais forte a emissão de luz e de partículas
pelos buracos negros: os buracos negros poderiam não ser negros. Mas essa radiação
de Hawking nunca foi observada até agora, conhecendo nós até as razões para
essa não observação: Se houve no início do mundo mini-buracos negros que
podiam evaporar dessa maneira, eles já evaporaram. Os grandes buracos negros evaporam muito
lentamente.
O segundo livro de Penrose a sair
entre nós foi A Mente Virtual. Sobre computadores, mentes e as leis da
física (1997), n.º 93 da colecção Ciência Aberta, no original inglês
The Emperor’s New Mind, uma alusão à fábula da “Nova Roupa do Rei” de
Hans Christian Andersen. O prefácio é de Martin Gardner, o matemático amador
que durante décadas teve uma coluna de problema matemáticos na revista Scientific
American, e a tradução de Augusto José Franco de Oliveira, Carlos Lourenço
e Luís Teixeira da Costa. Este livro, trata do “universo, computadores e tudo o
resto” (uso aspas pois dei esse título a
um dos meus livros): fala da inteligência artificial e natural, de matemática e
realidade, de verdade e demonstração, de
teorias clássicas da física e da teoria quântica, do Big bang e da evolução
temporal, do problema da gravidade quântica e, finalmente, da fisica da mente,
onde Penrose expõe as suas ideias que dão um lugar particular ao cérebro humano
no contexto da Criação (não me entendam mal, pois Penrose é ateu). É um clássico
da divulgação científica!
O livro seguinte em português foi
O Grande, o Pequeno e a Mente Humana (2003), n.º 124 da Ciência Aberta,
traduzido por David Resendes. Os interlocutores de Penrose numa discussão intelectual
sobre o Universo e a mente são os filósofos Abner ShImony e Nancy Cartwright e
o físico Stephen Hawking.
O último livro de Penrose publicado
entre nós foi Ciclos do Tempo. Uma visão nova e extraordinária do Universo (2013),
n.º 198 da Ciência Aberta, com o subtítulo tradução de Nelson Rei
Bernardino. É neste livro – suponho que o único que não se encontra esgotado – que
ele aborda o tempo antes do tempo. E é nele que fala de buracos negros no
centro de galáxias. Deixo um excerto onde fala do buraco negro no centro da Via
Láctea, cuja descoberta foi agora premiada pela Academia sueca: “As observações
mais impressionantes… ocorrem com os movimentos orbitais muito rápidos de
estrelas visíveis em volta de uma entidade invisível mas enormemente massiva e compacta
no centro da Galáxia, A velocidade destes movimentos é tal que esta entidade
tem de ter uma massa de quatro milhões de massas solares! É difícil imaginar
que isto possa não ser um buraco negro.” Hoje temos ainda menos dúvidas.
Penrose escreveu ainda dois prefácios
para obras que estão traduzidas em português, um para o livro do físico
austríaco Erwin Schroedinger, A Natureza e os Mitos; e Ciência e Humanismo
(Edições 70, 1999) e outro para o livro de
Einstein, O Annus Mirabilis de Einstein, que contém os seus revolucionários
artigos de 1905, uma obra com edição e introdução de John Stachel (Gradiva,
2006).
Mas Penrose é autor de várias outras
obras, não traduzidas entre nós. Uma delas é Shadows of the Mind, A search
for the missing science of consciousness (1994), que é uma sequela
de A Mente Virtual, onde responde a várias críticas que lhe foram
endereçadas (entretanto Penrose e o médico
Stuart Hameroff, tinham proposta uma explicação do cérebro baseada em efeitos
quânticos em microtúbulos). Uma que não
está publicada em português é um “tijolo” com mais de mil páginas. The Road
to Reality: A Complete Guide to the Laws of the Universe (2004), que
li há mais de uma década quando tive de recuperar de uma demorada doença. Penrose,
nessa obra, bastante técnica, é sempre estimulante por a pelo facto de a
sua mente não se prender às formulações convencionais. O seu livro mais recente
é Fashion, Faith and Fantasy in the New Physics of the Universe (2017),
que, sendo menor que o anterior, não deixa de ser grande: tem mais de 500 páginas.
Estão lado a lado na minha estante.
Penrose é, de entre as muitas mentes
brilhantes que povoam a Terra, uma das que podemos com mais propriedade chamar génio.
Não sei se o funcionamento dela é
quântico ou não, mas sei que a sua mente tem ousado enfrentar os grandes
mistérios do cosmos e do homem.
1 comentário:
Estimado Professor Carlos Fiolhais: Como eu fico maravilhado com a maneira fácil como descomplica os temas mais complexos da Física a que a minha formação académica dá o cunho de esoterismo. Do pouco que sabia, reportava-se ao facto de a respectiva gravidade aprisionar a luz. Obrigado e um excelente fim-de-semana.
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