sexta-feira, 29 de maio de 2020

A HISTÓRIA ENSINOU-NOS QUE QUEM FAZ A LÍNGUA É QUEM A FALA E ESCREVE

Falaises près de Pourville, por Claude Monet (1840-1926) 

Para o geógrafo ou para o geólogo o termo “arriba” designa os escarpados menos ou mais elevados, próprios de margens de rios muito encaixados (p. ex. no vale do Douro Internacional) ou de litorais catamórficos (forma erudita de dizer que estão expostos à erosão das vagas), observáveis em grandes extensões da Costa Vicentina ou nos Cabos Espichel, da Roca e Mondego.

Podemos encontrar este mesmo conceito referido pelo termo “falésia”. Acontece que ambos os termos podem ser lidos tanto em textos científicos como em outros pedagógicos, de divulgação ou de ficção.

Arriba e falésia são duas maneiras de dizer a mesma coisa. Arriba é uma palavra antiga que fomos buscar ao latim “ripa”. Falésia é um aportuguesamento relativamente recente da palavra francesa “falaise”. Autores há que, numa atitude purista da língua, repudiam este último termo, apodando-o de francesismo desnecessário.

O meu professor Carlos Teixeira (1910-1982), grande referência no engrandecimento e valorização da Geologia em Portugal, senhor de uma linguagem escrita sem intenções ou preocupações de estilo literário, mas impecavelmente correcta, repudiava liminarmente o vocábulo “falésia” e riscava-o, nos muitos textos dos seus alunos e colaboradores, entre os quais me contei, que pacientemente lia e corrigia, ensinando-nos a escrever em bom português.

Também o professor Orlando Ribeiro, geógrafo e humanista de craveira internacional, senhor de muitos saberes, que expunha numa linguagem falada e escrita de invulgar correcção e beleza, não raras vezes poética, que marcou a minha maneira de encarar as ciências da Terra, a um tempo, naturalista e cultural, rejeitava, igualmente, o termo “falésia”.

Acontece, porém, que na toponímia oficial, a par de designações como “Arribas do Douro”, no Parque Natural do mesmo nome, no distrito de Bragança, e “Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica”, conhecemos as de “Aldeia da Falésia” e “Praia da Falésia”, no Algarve.

Uma atitude idêntica destes mestres tinha lugar face aos vocábulos “barranco” e “ravina”, duas formas de referir os sulcos menos ou mais profundos escavados pelas enxurradas pluviais nas cabeceiras dos cursos de água. O mesmo se passando com os termos derivados “abarrancado” ou “ravinado” e “abarrancamento” ou “ravinamento”.

De origem pré-romana, barranco (ou barroca) é palavra popular autóctone adoptada no vocabulário geográfico e geológico. À semelhança de falésia, ravina entrou-nos por aportuguesamento do francês “ravin”, num testemunho da francofonia que foi tónica no nosso meio académico nos anos que antecederam o último quartel do século XX.

Neste período áureo da penetração da inteligência gaulesa na nossa vida cultural e científica, em particular no ensino superior e na investigação científica, a língua de Molière dominava nos compêndios e manuais de estudo. Porém, os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) deram hegemonia ao inglês, situação que se tem vindo a acentuar com a globalização de múltiplos sectores da actividade dos povos deste planeta já referido por alguns por “aldeia global”. No léxico geológico assisti à invasão de vocábulos como riple, rifte, silte, gnaisse, grauvaque, loess, intertidal, e muitos outros, por aportuguesamento de termos anglo-saxónicos e, por falta de termos nacionais, à adopção pura e simples de termos estrangeiros, como “horst”, “graben”, “iceberg”, “tsunami”, “terra rossa”, “raña”, “palygorskite”, entre muitos outros.

Praticamente, todos os dias a nossa língua vê o seu léxico aumentado por via dos progressos científicos e tecnológicos. Eu próprio criei, em 1988, o neologismo “exomuseu” incluído na expressão “Exomuseu da Natureza”, designação ainda não oficial de uma estrutura museológica dispersa no território nacional, constituída por vários pólos situados onde quer que ocorram elementos considerados de interesse em termos de património natural, fazendo parte de um conjunto coordenado a partir de um ou mais centros com competências científica e pedagógica adequadas (uma Universidade, um Município, uma Fundação). Não constando ainda dos dicionários, o termo “exomuseu” existe nos protocolos assinados entre o Museu Nacional de História Natural e diversas autarquias.

A miscigenação cultural decorrente da facilidade e rapidez das comunicações na sociedade cada vez mais mundializada é outra via para o dito aumento.

Não prescindimos hoje de palavras da nossa vida corrente como, por exemplo, “evoluir”, “implementar” e “controlar”. E que dizer de “clicar” e outros termos hoje habituais na sociedade das novíssimas tecnologias e da informática?

A história ensinou-nos que quem faz a língua é quem a fala e escreve e estou em crer que todos estes e muitos outros termos, goste-se ou não, vieram para ficar.
A. Galopim de Carvalho

"A universidade light" - 2

Eis abaixo uma crítica muitíssimo completa ao livro que antes mencionei: "A universidade light".


Jesús Gijón Maestro - professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Faculdade de Filologia e Tradução da Universidade de Vigo -, partindo desse livro, faz uma reflexão sobre a universidade que é de teor algo diferente daquela que Francisco Esteban Bara faz, por escrito.

Complementam-se as reflexões, contribuindo para uma compreensão muito completa do estado e do funcionamento de uma instituição escolar que vemos perder identidade e diluir-se na confusão da pós-modernidade (ou da pós-pós-modernidade que é deste século).

Daisy Miller: o turismo popular e (sem nada que ver) as doenças ainda sem cura


“Daisy Miller” é a novela de Henry James (1943-1916) mais conhecida, a qual aponta para as diferenças entre americanos e europeus e para a igualdade das mulheres, numa altura em que esta quase não existia. Também pode ser vista assim, claro, mas não foi isso que mais me chamou a atenção. Foi, por um lado, a popularização do turismo e, por outro, as doenças que existiam e ainda não tinham cura.

Escrita em 1878, a novela refere como o narrador encontrou Daisy Miller, uma jovem americana normal e independente, de certa forma ingénua e sem malícia, com pais ausentes e um irmão mal-educado. Sem pensar nisso nem o desejar propriamente, Daisy causa escândalo. Alguns querem proteger a sua reputação enquanto outros evitam encontrá-la. Curiosamente, Henry James coloca-a como turista americana num hotel (Trois Couronnes) da mesma cidade de Julie ou a Nova Eloisa de Rousseau, Vevy, perto do lago Lemano, em Genebra, agora com muitos turistas americanos. Uns anos antes, Lord Byron alugou um casa, a Vila Diodati, a cerca de cem quilómetros, no mesmo lago. Nesta, esteve com Mary Shelly, Percy Shelley e John Polidori, sendo nesta escrito o “Franskestein” de Mary Shelly e o “Vampiro” de Jonh Polodori.

Havia turistas de todos os países, claro, mas não tantos como os americanos. Desde meados do século dezanove que o turismo americano era uma indústria em grande crescimento.  Os nobres e intectuais ricos faziam o que ficou conhecido como  o “grand tour,” como parte da sua formação, mas é com os americanos que a actividade de visitar se torna verdadeiramente popular. Por exemplo, Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), último presidente da primeira república, antes da ditadura de Oliveira Salazar, trabalhava alguns meses a gerir os negócios e depois viajava durante o resto do ano. Vamos encontrar reflexos dessas viagens nas pitorescas “Novelas Eróticas” onde conhece e foge na Holanda com uma jovem judia, encontra num barco uma jovem brasileira e, em Sevilha, onde encontra uma jovem cigana, entre outras. Sabemos que Teixeira Gomes viajava muito e que tinha até uma mala especial. Por outro lado, no “Moby Dick” vamos encontrar Ismael que nunca pagava para ver o mar e viajar. Vários autores vão escrever sobre as suas viagens. As viagens eram realizadas e comentadas, mas por um grupo restito. Vai ser com os americanos que a actividade de viajar se vai generalizar como indústria. Os mais cultos seguiam os percursos dos seus autores favoritos, enquanto os outros seguiam os primeiros ou compravam os programas das agências. Gerou-se assim um grande fluxo de turistas americanos conhecidos pelo menos até aos anos setenta como “camones”. É muito curioso tentar perceber esse fluxo popular do turismo que se vai estender a todos e agora com a covid-19 está algo parado. E vai haver uma reacção contra a massificação e popularidade desta actividade. Os intelectuais achavam que viajar por motivos “fúteis” era absurdo. Ralph Waldo Emerson (1803-1883), por exemplo, escreverá que "viajar é o paraíso dos tolos." Ele refere-se a encontrar a felicidade em locais longinquos mas a ideia é generalizávela outras actividades  turisticas.

Na mesma altura passavam-se fomes periódicas na Europa. Ainda não tinham sido inventados os adubos sintéticos. Os alemães, suecos, irlandeses, italianos, judeus e polacos, entre outros, vendiam-se quase como escravos para viajarem até ao novo mundo. Os portugueses iam mais para o Brasil, mas alguns também foram para a América. Muitos não tiverem sucesso, quase todos mudaram de nome ou engrossaram os conhecidos bairros étnicos, alguns tiveram sucesso e muitos foram vítimas de xenofobia. É aliás curiosa a pergunta do irmão "se o narrador era mesmo americano." Mas não se julgue que na América tudo eram rosas. A alimentação era má e perigosa. Os medicamentos um risco sem controlo. Nos anos sessenta do século XX, as coisas já tinham melhorado muito para todos, com as férias pagas na Europa os turistas europeus poderão ultrapassar os americanos, Mesmo noutras coisas, como é sabido, a América ficou para trás.  

A paisagem é bela. Temos o lago, as montanhas  e a neve. Mas os mosquitos e as doenças espreitam. A tuberculose, a malária e outras infecções. Algumas pessoas procuram tratamentos, outras a beleza. O lago fica no sopé dos Alpes, onde se situa Davos, a cerca de 300 km, outro local mítico, onde uns anos mais tarde será escrita a “Montanha Mágica”. Chamonix fica a cerca de cem quilómetros. Tudo parece bem. Só que não.

Em Roma, Daisy Miller vai morrer rapidamente de malária (conhecida ali como febre italiana). Como referi, é triste, mas não era uma morte inesperada. As doenças eram muito comuns. O homem mais rico do mundo, um Rothschild, morreu nessa altura de uma infecção, por exemplo. Mais tarde vieram as guerras e a gripe pneumónica.

Na véspera da segunda guerra mundial ainda havia paludismo, ou, o que e sinónimo, malária, junto aos rios e lagos da Suíça, Itália, Espanha e Portugal. Eram as febres tercãs e as sezões. Foi o DDT  que acabou em boa parte com o paludismo nestes paises. Podemos agora saber e dizer coisas que na altura não sabíamos, mas não deveremos esquecer as lições da história da ciência.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

"A universidade light" - 1


Por muito apelativas que sejam as páginas online das universidades e das faculdades públicas (só me refiro a essas porque das privadas pouco sei) deste e de outros países, por muito boas que sejam as avaliações dos seus cursos por agências credenciadas, por muitos projectos que publicitem, por muitas iniciativas que tenham, por muitos prémios que ganhem ou atribuam, por muitas avaliações que façam, o ensino definha, está moribundo.

Pode haver uma ou outra faculdade, um ou outro departamento, um ou outro instituto, uma ou outra disciplina (deveria dizer unidade curricular), um ou outro professor, que vai mantendo a resistência possível, a resistência possível até à desistência, que sabem ser certa. 

Focalizando-me nos professores, o trabalho acrescido e a perda de tempo sem qualquer resultado, o confronto com a inutilidade dos esforços e, pior do que tudo, a hostilidade que paira sobre as suas cabeças, levam a melhor. Há um momento em que o cansaço se associa à tristeza e eles cedem, desistem. É humano!

Tenho assistido a este "quadro de abandono" entre os melhores dos meus colegas, mais velhos mas também mais novos: os melhores sob o ponto de vista científico e pedagógico, os que se importam. Dos que têm características contrárias não falo, não me dizem nada, apenas adianto que é para eles que a universidade está preparada, sendo que eles também estão preparados para ela. Daí ser legítimo prever um futuro em tons mais carregados do que o cinzento que é, agora, o desta escola.

Declara-se que aquilo que nela se investiga e ensina tem de ser adequado à realidade, quer dizer a um certo mercado de trabalho e aos seus clientes. A "satisfação" de um e de outros traduz a "qualidade", apurada em rankings nacionais e internacionais.

Não posso estar mais em desacordo. E o autor do livro, publicado em 2019 cuja capa reproduzo ao lado também não. De facto, Francisco Esteban Bara, doutorado em Pedagogia e professor do Departamento de Teoria e História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Barcelona, analisa em pormenor esta ideia.

A universidade deve seguir o seu caminho, que é, afinal, aquele que sempre seguiu: construir conhecimento racionalmente válido e eticamente responsável (o autor investiga também na área da ética*) e educar/formar novos construtores desse conhecimento.

Sim, sem esquecer a importância que o conhecimento tem nos diversos sectores da sociedade, incluindo o produtivo, mas distanciando-se de interesses restritos e poderosos que impõem o urgente, o pragmático e o utilitário como critérios absolutos de decisão, ao ponto de fazerem parecer o trabalho em certas áreas, sobretudo as humanidades e as artes, como opções inconsequentes, perturbadoras da ordem instalada, quando não indícios de insubordinação, a silenciar o mais depressa e eficazmente possível.

* Martínez, F.; Esteban, F. (2013). De qué comunidad hablamos cuando nos referimos a la universidad Apuntes en relación a la formación ética. Ibáñez-Martín, J.A. (Ed). Educación, Libertad y Cuidado (89-94). Madrid: Dykinson. 

Este texto continua aqui.

NOVO LIVRO DO RÓMULO EM ACESSO ABERTO DE JOSÉ TEIXEIRA DIAS


O Doutor José Teixeira Dias, que foi professor de Química da Universidade de Coimbra e se jubilou na Universidade de Aveiro, deu de 2017 a 2019 um conjunto de seis palestras de Química para todos no Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Tratou temas muito interessantes como a descoberta da estrutura do ADN, os mistérios da teoria quântica, a "poeira das estrelas" e a origem da vida.

 O autor presenteou o Rómulo - e portanto todos os amigos da Ciência - com o texto de um livro com todas essas palestras (incluindo não só o texto como figuras, referências, etc.).

O Rómulo, nesta altura que ainda é de algum confinamento, orgulha-se não só de fazer uma edição limitada em papel do livro, com o título "Química-Física Molecular : palestras no Rómulo", indo um exemplar enriquecer as suas estantes, mas também de o divulgar, em formato electrónico disponível AQUI.

 O Rómulo agradece ao autor a atenção e a amabilidade. E, claro, decerto em nome de todos, a sua obra de divulgação da ciência. Boa leitura!

 Carlos Fiolhais

NOVOS CLASSICA DIGITALIA

Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.

Além do usual circuito de distribuição da IUC, a versão impressa das novas publicações encontra-se disponível nas lojas Amazon.

NOVIDADES EDITORIAIS

Série “Dramaturgia” [Edição de textos teatrais, com introdução e notas]

 - Francisco Dias Gomes, Duas tragédias clássicas: ‘Ifigénia’ e ‘Electra’. Introdução e edição de texto de José Augusto Cardoso Bernardes, Maria de Fátima Sousa e Silva & Maria Fernanda Brasete (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020). 198 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1622-3

[A obra inclui um estudo introdutório sobre a receção de temas do teatro clássico na produção dos membros da Arcádia Lusitana, em geral, para situar a produção de Francisco Dias Gomes. Segue-se-lhe a edição de duas tragédias ‘Ifigénia’ e ‘Electra’, em ambos os casos acompanhada de um amplo estudo introdutório, cujo objetivo central é o de identificar a relação entre as produções oitocentistas e os seus modelos da Antiguidade grega.]

[Fora de Série - Estudos]

- Nair de Nazaré Castro SoaresMostras de sentido no fluir do tempo: estudos de Humanismo e Renascimento (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020). 539 p. 2ª ed. [1ª ed. 2018]

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1885-2

[O presente volume reúne um conjunto de artigos sobre Tradição Clássica, Humanismo e Renascimento, constituindo uma mostra do trabalho científico desenvolvido pela autora ao longo da sua atividade como investigadora e docente da Faculdade de Letras da Universidade Coimbra. Organizada no momento da sua jubilação, a obra divide-se em dois grandes temas – Teatro e História das Ideias.]

Votos de boas leituras.

UM FILÓSOFO COMBATIVO


Conheci o João Maurício Brás (JMB) em 2012, através do meu amigo Onésimo Teotónio de Almeida, professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos, e polímato (autor literário, crítico, ensaísta, etc.), quando me pediram um prefácio para o livro deles  “Utopias em dói menor. Conversas transatlânticas com Onésimo” (Gradiva, 2012). É, como sugere o subtítulo, um diálogo entre os dois autores, ambos com formação filosófica, à volta das ideias de Onésimo.  JMB teve o mérito de chamar a atenção para a “mundividência” de Onésimo, um quadro de pensamento que contrasta com a visão pós-moderna que hoje em dias rege muitas universidades, no mundo e em Portugal, e, o que é pior, o nosso quotidiano social. Essa valorização das ideias do professor da Brown continuou a ser feita por JMB em dois volumes, um mais analítico e outro uma recolha com contribuições de homenagem, intitulados respectivamente “Identidade, valores, modernidade - Pensamento de Onésimo Teotónio de Almeida” (Gradiva, 2015)  e “Onésimo – Único e multimodo” (Opera Omnia, 2015). Devemos-lhe estar grato por esse papel de promoção da filosofia.

Mas. antes dessa louvável “descoberta” da filosofia de Onésimo, JMB já tinha obra: tinha publicado o ensaio “O pensamento insuportável de Émile Cioran. Um itinerário do desespero à lucidez” (Campo das Letras, 2006), sobre as ideias do filósofo franco-romeno, a quem já chamaram o “rei dos pessimistas” e “A importância da desconfiança” (Veja, 2010), um livro que infelizmente me passou despercebido e que acabo de comprar para ficar com a quase totalidade das obras do autor. Depois escreveu “O Negativo. A importância do conceito na cultura e na história”, com prefácio de Manuel Curado (Theya, 2017), uma obra influenciada pelos trabalhos de José Eduardo Franco sobre o negativo (um parênteses só para dizer que a capa, com os Jerónimos invertidos, é um verdadeiro achado), e “O Mundo às Avessas. O manicómio contemporâneo” (Opera Omnia, 2018), um ataque cerrado à pós-modernidade, que eu já louvei num curto vídeo de recensão chamando a atenção para alguns exemplos pitorescos. Logo os títulos de algumas secções dão para perceber as intenções do autor: “Em todo o homem que come carne há um violador e um pedófilo”, “Os direitos de autor dos macacos”, “A ecossexualidade e  a salvação da Terra”  e “O Pénis é uma construção social”. Ri-me muito, apesar de se tratar de uma tragédia espalhada por aí.

JMB publicou agora, ou melhor há escassos meses, um novo livro, “Os Democratas que destruíram  a democracia” (Opera Omnia, 2019), para o qual gostaria de chamar a atenção, uma vez que o acabo de ler. Não são muitas as recensões de livros de filosofia entre nós e este é um pequeno contributo de um leitor leigo..

Quem é o autor? JMB, nascido em Sines, é doutorado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e investigador no CLEPU – Centro de  Literaturas e Culturas  Lusófonas e Europeias, da Universidade de Lisboa. Foi discípulo do Prof. Fernando Gil, um filósofo sábio e rigoroso de quem todos temos saudades.

JMB continua no seu mais recente volume o combate do livro anterior contra  um rol de ideias pós-modernas, que se têm  disseminado perigosamente, a ponto de nalguns sítios se terem tornado pensamento único.  Devo dizer que concordo na maioria das vezes com as objecções que JMB levanta ao pensamento dominante e à sua estapafúrdia linguagem. Concordo absolutamente quando ele diz que “a crença de que tudo é possível e nada é verdadeiro, praticada pelos progressistas, é o que nos resta quando já não acreditamos em mais nada.” (p. 9) O relativismo, isto é. a igualização por baixo de tudo, cultivado por esses soi disant “progressistas”, é a negação da pensamento cientifico: não está tudo certo porque a ciência procura e descarta os erros, distinguindo afirmações certas de afirmações erradas: Einstein emendou Newton, mantendo uma parte. E mesmo fora da ciência não são a mesma coisa Shakespeare, que já cá está há três séculos, ou um escriba qualquer que chegou agora ao mundo.

Apresento, para abrir a recensão, três excertos do livro, para o leitor perceber melhor do que trata. O primeiro é:

 “O civilizado descobriu que a cultura ocidental afinal era obsoleta e má, racista, machista, sexista, homofóbica, patriarcal, heteronormativa e egofalocêntrica”. (… ) Descobrimos o fim da história, o fim do homem, o fim da metafísica, que a ciência é ideologia, que não há verdade, nem objetividade, nem realidade, que tudo é cultural, político e construção social” (respeito o novo acordo ortográfico que ele usa, apesar de não o seguir) (p. 10).

O segundo:

 “E este é o tempo do estatuto superior da opinião. Aboliu-se o legado da religião, dos grande romances, dos tratados filosóficos, dos intelectuais verdadeiros e temos o predomínio da opinião. Não é a opinião de A ou B, mas a opinião que circula como conhecimento e esta é a substância da ideologia progressista” (p. 77).

E o terceiro:

“A lengalenga do novo mundo neoprogressivo diz-nos que não há verdade, mas apenas verdadezinhas, tonalidades que refletem o que funciona, como pregam os neopragmáticos” (p. 171).

O leitor estará já a perceber que JMB está a falar daquelas pessoas que vêem racismo e machismo em todo o lado, dos que trocam um facto comprovado por qualquer opinião, dos que querem mandar a verdade para o caixote do lixo, ao inventarem o conceito de "pós-verdade". Entre eles estão aqueles que querem reescrever a história, por esta ter sido escrita por “homens brancos de meia idade”. Em Portugal, incluem-se nesse grupo os que querem derrubar a estátua do Padre António Vieira em Lisboa, poe ele ter sido esclavagista,  ou que recusam um Museu das Descobertas por acharem as descobertas uma violência.

JBM usa uma linguagem propositadamente forte para designar o mundo em que vivemos, onde certas vozes imperam, sendo tremendamente amplificadas pelos mediam em particular  pela Internet:

“Transformámos o mundo numa fusão indistinta de casino, manicómio e supermercado. Nada de novo. Todos os tempos têm os seus delírios e os seus prosélitos. A novidade reside na capacidade tecnológica e científica inédita que transformou totalmente o nosso modo de vida” (p. 10-11).

É uma imagem que eu não usaria, mas que o autor tem todo o direito a usar. Insiste na imagem do manicómio, que será, segundo ele, governado pelos próprios doentes: “A pós-modernidade é, em muitos dos seus aspectos propagandeados, a visão de um conjunto de loucos sem profundidade que exaltam as suas taras particulares. Novos radicalismos e fundamentalismos com os seus messianismos e escatologias laicas bloqueiam totalmente a lucidez, a razão e a sensatez” (p. 18).

JMB invoca, para se sustentar, em Cioran, que ele bem conhece, e cujo “Breviário da Decomposição”  cita: “Escrevia Cioran que lhe bastava ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, ouvi-lo dizer ´nós‘ com um tom de segurança, invocar os ‘outros’ e sentir-se seu intérprete, para que o considerasse não só um perigo como um inimigo. É essa a matéria de que são feitos os carrascos e os tiranos, que dividem a humanidade entre os puros e os ímpios” (p. 23).

JMB arrasa o filósofo norte-americano Richard Rorty, o qual, segundo ele, foi caminhando de filósofo analítico para pensador pós-modernismo, por lhe terem estendido uma “passadeira vermelha”: “transformou-se num culturalista relativista ignorante e cínico. Como todos o são.” (p. 29) JMB  tem, como se vê,  um estilo declaradamente provocador.  Encontrei-me várias vezes a concordar com o que ele diz, mas não com a maneira como ele o diz. Não sei, por exemplo, se todos os relativistas são cínicos, quero acreditar que alguns sejam ingénuos.

E também se mete com o filósofo francês Bruno Latour, popular nos círculos pós-modernos, no meu entender muito a propósito. Quando historiadores chegaram à conclusão de que o faraó Ramsés II, no Antigo Egipto, tinha morrido de tuberculose, Latour ripostou, uma vez que o bacilo da tuberculose (uma bactéria) só foi  descoberto pelo alemão Robert Koch em 1882. Antes dessa descoberta, não poderia existir a bactéria, porque a bactéria seria um conceito…  Chama-se a este pensamento “construtivismo”. As coisas não existem, são inventadas. Não há nenhuma realidade, mas sim e apenas construções mentais e sociais.

Os maniqueístas que dividem o mundo entre esquerda e direita não deixarão de notar que JMB cita, por vezes em tom simpático, pensadores conotados com a direita como John Gray (um filósofo político inglês que eu gosto de ler, apesar de não concordar com o seu ultra-pessimismo: ele tenta ultrapassar Cioran!), Roger Scruton (um filósofo conservador inglês, falecido no início deste ano) e Jordan Peterson (um psicólogo guru norte-americano, que ainda não li). Esses, tal  outros autores (alguns deles conotados com outras bandas do espectro político), têm, mesmo que nao se concorde com o que eles dizem, o grande mérito de nos fazerem pensar. Falo por mim: mesmo quando tenho alguma convicção, gosto de ouvir os argumentos dos que têm convicções opostas.

De resto, a divisão entre direita e esquerda é hoje questionável. Um eleitor pode ter algumas ideias geralmente atribuídas à direita e outras geralmente atribuídas à esquerda. Concordo sem hesitação com JBM, quando ele diz : “É bom lembrar que as grandes questões do século XXI não são entre a esquerda e a direita, o centro e os extremos, os democratas e os fascistas, mas entre lucidez,  razoabilidade e sensatez e ignorância ou mesmo imbecilidade disfarçada de ilustração, irracionalidade e emotividade” (p. 47). A referida divisão não passa, muitas vezes, uma arma de arremesso. Cola-se um rótulo em vez de discutir seja o que seja.

O problema, por exemplo, com Trump e Bolsonaro não é serem de direita – ou “fascistas”, como alguns afirmam, esquecendo que essa categoria política surgiu num certo contexto histórico e que hoje é anacrónica, mas sim serem grandes ignorantes, fazendo contínuo e grande alarde da sua ignorância. Basta olhar para a sua atitude perante a epidemia que estamos a viver: os seus países estão no topo da lista das vítimas graças em boa parte devido à desvalorização que eles fizeram do vírus.

JMB desmonta o modo como a linguagem do “politicamente correcto” é usado para o exercício do controlo mental: “A novilíngua progressista é o novo idioma oficial” (p. 47). Ilustrando este controlo o autor conta logo no início uma anedota verdadeira passada com ele enquanto escrevia o livro. O corrector ortográfico da Microsoft emendou onde ele tinha escrito “pessoas normais e comuns”, avisando que devia ser inclusivo, isto é, pretendia que escrevesse “pessoas normais e anormais, comuns e não comuns”. Mas por que raio o corrector da novilíngua quer coagir o autor e não referir “pessoas normais e comuns”? Será ofensivo para alguém usar esses termos?

Uma das tácticas dos soi-disant progressistas é a vitimização. O apoio à vítima está na moda, mesmo quando não há vítima. Escreve JMB: “Ser vítima é ser civilizado. É criminoso ou suspeito quem não é vítima de qualquer opressão, presente ou passada. A leitura caricatural da dialética do senhor e do escravo é a única chave para a compreensão da história e vai repetindo diversos protagonistas em variáveis infinitas. Os alunos são vítimas dos professores, as crianças dos adultos, os negros e os ciganos dos brancos, os homos dos héteros, os democratas dos fascistas, os ateus dos crentes, os vegans dos animalistas, etc.” (p. 178)  

Mas JMB vai mais longe, ao afirmar que as políticas identitárias, em geral ligadas a vitimização, estão a destruir a democracia. Numa nota da p. 66 refere a existência de pós-graduações em gestão só para gays na Universidade de Yale. Curiosamente o corrector deixou passar uma gralha na palavra “universidade”; talvez o autor o tenha simplesmente desligado. Gralhas como esta servem para mostrar que o autor é humano: o texto não foi escrito por nenhum robô. Encontrei outra, mais adiante, no nome de Lysenko, o charlatão soviético cuja cegueira ideológica fez morrer à fome os seus compatriotas.

Lembrando as distopias de Aldous Huxley, George Orwell e Michel Houellenbecq, JMB fala da opressão que o pensamento dominante procura exercer através da linguagem, usando uma metáfora que nos tempos de hoje se torna muito clara: “A ditadura do pensamento pós-moderno progressista existe. É gente boa, culta, inteligente, reproduz uma mundividência e as suas pragas como doentes contaminados por uma peste da qual não conseguem fugir” (p. 52).

Num mundo tolhido pela ideologia e controlado pela linguagem, a democracia encontra-se, portanto, em risco. Segundo o autor, que gosta de expressões retumbantes, ela foi “traída” (p. 78). Como anuncia  o título do livro: “Sabemos que aquilo a que chamamos democracia nos sistemas políticos ocidentais, e considerando a melhor aceção do conceito, já pouco  tem de democracia, pois vivemos num simulacro perfeito desse ideal” (p. 99). E a “traição” foi perpetrada pelos democratas, ou melhor pelos soi-disant “democratas”. Como o autor lembra noutro passo, Sócrates, o filósofo grego, foi condenado à morte pelos democratas. E, entre nós, houve outro Sócrates que ainda não foi condenado, ou só o foi de um modo muito leve, por muitos democratas no poder.

Mas qual é a solução para recompor um “mundo às avessas”? JMB indica-a. O que precisamos, agora e sempre? Pensamento claro, pensamento livre. Este é o  pensamento que, há séculos, foi reclamado pelo holandês Bento Espinosa, invocado logo no início do livro (e também  na contracapa). Disse Espinosa: “Num Estado Livre, todos os homens podem pensar o que querem e dizer o que eu pensam” Não podemos ter medo de pensar. Pensar não é “fascista”.

No parágrafo final  encontra-se uma das mais fortes metáforas do livro, que o leitor pode sentir como um verdadeiro “murro no estômago”: segundo JMB, tal como foi desmembrado um jornalista saudita num consulado  da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia, em 2018, “também  a nossa cultura vai sendo silenciada e desmembrada por uma estranha forma de democracia” (p. 189).

João Maurício Brás é um homem livre e tiro-lhe o chapéu por isso. Não há muitos homens livres por aí. Pensa o que diz e diz o que pensa. Resiste a uma vaga que engoliu muita gente. Pois faz muito bem e oxalá o continue a fazer.

- João Maurício Brás, “Os Democratas que Destruíram a Democracia”, Opera Omnia, 2019. 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

MEU PREFÁCIO A "NEUROMITOS" DE ALEXANDRE CASTRO CALDAS E JOANA RATO

 

NEUROMITOS O CONFRONTO DA INTUIÇÃO COM A REALIDADE 

(prefácio a "Neuromitos. Ou o que realmente sabemos sobre como funciona o nosso cérebro", que acaba de sair na Contraponto)

  Vivemos num tempo de proliferação acelerada da informação, usando meios que a ciência e a tecnologia colocaram à disposição de todos: já havia a imprensa, a rádio, a televisão, e agora há também os computadores e a Internet, todos eles servidos por meios de comunicação extremamente rápida, que podem ser os cabos ópticos que atravessam os oceanos ou o próprio espaço vazio, quando se usam frequências de microondas e de rádio. O mundo é hoje uma aldeia global. 

 Tudo isto poderia ser uma possibilidade fantástica de enriquecimento da humanidade, diminuindo até as gritantes desigualdades entre povos e países não se desse o facto de que muita informação que circula não tem fundamento ou suficiente fundamento. Eu diria que é a maior parte. Vivemos na época das  notícias falsas (fake news), que por serem falsas nem sequer deviam merecer o nome de notícias, e da “verdade alternativa” (alternative truth),” um termo enganador pois a verdade não tem qualquer alternativa. Há quem diga que vivemos num tempo de pós-verdade (post-truth), um mundo tão estranho quanto perigoso em que a distinção entre a verdade e a mentira já não interessa. Não interessa, em particular, a alguns dirigentes políticos.

 Sempre houve informação errada a circular, usando meios técnicos primitivos.  Muitas vezes o erro devia-se a ignorância, como, por exemplo, no domínio das neurociências, pensar que a gaguez se deve a um susto. Mas o fenómeno comunicativo actualmente mais relevante, para além da escala enorme a que se dá a difusão informativa, é o facto de qualquer pessoa poder emitir qualquer tipo de mensagens. Qualquer um de nós diz o que quer para quem o queira ouvir, aqui ou noutro sítio, agora ou mais logo. Como bem mostram as redes sociais, que rapidamente ganharam um vulto inesperado, os intermediários deixaram de ser precisos. 

Acresce o facto – e os neurocientistas sabem bem isso – de o nosso cérebro ter uma avidez para o que é, ou parece ser, singular e maravilhoso, ou mesmo simplesmente curioso e engraçado. Uma coisa mirabolante tem muito mais procura do que uma coisa normal: neste livro os autores comparam o número de aparições na Internet do termo “unicórnio” – que designa um animal mitológico -  e ornitorrinco – um animal estranho mas real: acontece que a primeira é cerca de 20 vezes maior. Se alguém experimentar colocar uma notícia falsa – sei lá, que Madona teve um filho de um extraterrestre, o que é evidentemente falso, por não existirem extraterrestres – é fácil verificar que essa notícia se propaga mais rapidamente do que outra qualquer que seja verdadeira – como, por exemplo, que Madona teve um filho que marcou dois golos num jogo pelo Benfica, o que, por estranho que possa parecer, é absolutamente verdadeira. O algoritmo do Google ao colocar mais acima no ecrã e, portanto, mais apetecíveis ao olho sítios mais procurados favorece a difusão de erros.

Como o uso da Internet ilustra, se é certo que o nosso cérebro é um instrumento de racionalidade, não é menos certo que ele é capaz das maiores irracionalidades. Procuramos padrões reconhecíveis onde eles não estão. Como disse o filósofo escocês David Hume, vemos “caras na Lua e exércitos nas nuvens”. Construímos e divulgamos histórias e acreditamos sem discutir em histórias que nos são contadas. Desenvolvemos e interiorizamos mitos, histórias fabulosas, por vezes com requintes de magia. Os seres humanos têm uma clara propensão para a superstição e a magia.

A ciência é o mais bem sucedido empreendimento do cérebro humano, pois nos tem permitido desde a Revolução Científica, nos séculos XVI e XVII, viver mais e melhor. A ciência é bem mais do que um corpo de conhecimentos, pois este está em constante  mutação. É um método, que é uma fonte constante de conhecimentos. Funda-se na observação, na experimentação e no raciocínio lógico. É validado através da revisão pelos pares, isto é, a vigilância activa da comunidade científica.  O método permite ir para além das aparências, do senso comum. Permite superar mitos. Permite ir para além  da superstição e da magia.

No livro que o leitor tem entre mãos – cujo título Neuromitos é um curioso neologismo que o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa não contempla, mas que já se encontra profusamente na Internet -  Joana Rato e Alexandre Castro Caldas, respectivamente psicóloga educativa e professor de Neurologia na Universidade Católica Portuguesa que já tinham sido coautores de um livro com outro título curioso, Quando o cérebro do seu filho vai à escola (Verso de Capa, 2017), procuram desmontar algumas informações falsas sobre o cérebro humano que por aí circulam. A obra, escrita com a mestria de quem domina os assuntos e de quem tem notável habilidade para os comunicar, lê-se muito bem, podendo ser útil a todas as pessoas curiosas a respeito do funcionamento do nosso cérebro. Desnecessário será lembrar que, embora nem sempre o usemos bem, todos temos um. Nas últimas décadas, avanços extraordinários das Neurociências – uma área de ponta da ciência contemporânea, pois o cérebro é uma das “últimas fronteiras” – foi possível validar um corpo de conhecimentos que desmente muitas ideias feitas que grassam socialmente, que são em muitos casos histórias inventadas,  que com propriedade podem ser chamadas “mitos” (o referido Dicionário dá como um dos significados de mito  “formulação do espírito sem fundamento; o que apenas existe na imaginação = ficção, utopia”).

O nosso cérebro engana-se a respeito de várias coisas e também a respeito dele próprio. Há erros famosos da história da ciência, que são absolutamente normais  dados os recursos limitados de épocas recuadas– como os de Aristóteles, René Descartes, Leonardo da Vinci  e Franz Joseph Gall – e há outros com origem mais recente, que ganharam rapidamente raízes populares  - por exemplo, o “efeito Mozart”, segundo o qual a inteligência de um bebé melhora quando ele ouve música do famoso compositor austríaco. A credibilidade deste mito foi tal que um governador do estado americano da Geórgia propôs que se oferecesse um disco de música clássica a todas as grávidas georgianas. A proposta não passou no crivo do orçamento estadual que é feito pelo congresso local, mas o governador obrigou os legisladores ouvir uma peça de música, perguntando-lhes se não se sentiam mais inteligentes após aa audição… Este caso mostra como a demagogia e a retórica política podem invocar a ciência para enganar os cidadãos. Os políticos não perdem a ocasião para obter ganhos de popularidade.

 Se há mitos velhos e relhos sobre o funcionamento do cérebro como aquele que diz que “usamos apenas 10% do nosso cérebro” ou que o “canhotismo é um defeito”, não valendo a pena gastar muita tinta com eles, há outros mais sofisticados, por lhes ter sido atribuída uma densa fundamentação científica- como aquele a que os autores dedicam todo um capítulo – a tese do psicólogo cognitivo norte-americano Howard Gardner, autor entre outras obras de A Nova Ciência da Mente (Relógio d´Água, 2002), segundo a qual existem dez tipos de inteligência humana, que vão da inteligência linguística à inteligência existencial, seja lá o que isto for, passando pela inteligência lógico-matemática e pela inteligência espiritual, que também deve ser de difícil definição. Os dois autores nacionais discutem no livro que o autor tem entre mãos essa tese das inteligências múltiplas, que é transmitida em muitas das nossas escolas superiores e, pior do que isso, tem servido de base à formação de professores e a reformas educativas. De facto,revisões críticas recentes fundadas nas neurociências não têm dado a razão a Gardner, pelo que a sua teoria é considerada em círculos cada vez maiores uma “pseudo-ciência”, quer dizer, uma teoria que tem todo o aspecto de ser científica, mas que não resiste a testes empíricos bem conduzidos. No entanto, o autor norte-americano, laureado internacionalmente em diversas ocasiões, não reconhece os erros que lhe apontam, conforme assinalam Joana Rato me Alexandre Castro Caldas. Reclama, em particular, que uma coisa são as suas ideias e outra é a sua aplicação na Pedagogia. Quem procurar por “inteligências múltiplas” na Internet, encontra na Wikipedia  um resumo dessas críticas, nas várias línguas ocidentais, mas não na entrada em língua portuguesa. Na minha opinião, a pedagogia e a política de educação em Portugal – e também no Brasil - teriam muito a ganhar se passassem a basear-se em provas científicas mais sólidas, designadamente nos contributos das modernas neurociências. Recomenda-se este livro a todos os detentores de cérebros, não só pela apresentação  resumida e clara do exemplo da teoria das inteligências múltiplas de Gardner, mas também por outras relativas a muitos outros exemplos (como “jogos violentos não têm efeito sobre o comportamento”, “as pessoas podem aprender enquanto dormem”,  ou “os tumores cerebrais são consequência do uso excessivo do telemóvel”).  Recomendo, em particular, este livro a professores e, mais em geral, a educadores, que são todos os pais e encarregados de educação. E, já agora, embora sejam menos, a políticos, a ver se aprendem alguma coisa, passando a acreditar mais na ciência do que em mitos. É um livro de cultura científica – o único antídoto contra a ignorância e a mitologia - para todos.

Carlos Fiolhais

Professor de Física da Universidade de Coimbra e divulgador científico

QUE TESTES EXISTEM PARA O NOVO CORONAVÍRUS SARS-COV-2?

Modelo tridimensional do coronavírus SARS-CoV-2 VISUAL SCIENCE

(Artigo primeiramente publicado na imprensa regional de todo o pais.)



Testar, testar, testar. Tem sido esta uma das palavras de ordem enunciada repetidamente pela Organização Mundial da Saúde. De facto, uma das formas de parar a propagação do novo coronavírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, é a de detectar o mais rápido possível as pessoas infectadas e isolá-las de forma a parar a transmissão na comunidade. Que testes existem para o efeito? Existem pelo menos três testes para detectar a presença do novo coronavírus. Um detecta o seu material genético, outro detecta a presença de anticorpos que tenham sido produzidos pelo sistema imunitário de uma pessoa infectada e um terceiro, mais recente, detecta pequenas partículas virais (por exemplo as espículas do capsídeo proteico) que são designadas por antigénios, por serem capazes de desencadear uma resposta imunitária no hospedeiro.





Cerca de duas semanas depois de o SARS-CoV-2 ter sido identificado pela primeira vez, na China, cientistas chineses conseguiram mapear o código genético deste novo coronavírus. Este conhecimento, que foi partilhado a nível mundial no prenúncio da colaboração científica sem precedentes à escala global que se tem verificado, permitiu, quase de imediato, desenvolver um teste de biologia molecular que permite detectar a presença de material genético do vírus no corpo humano. Os cientistas estavam preparados para o fazer, pois a estratégia de detecção subjacente foi sendo desenvolvida para outros vírus há décadas, baseada na utilização da técnica bioanalítica de PCR (sigla inglesa para a recção em cadeia da polimerase, desenvolvida em 1983 por Kary Mullis, o que lhe valeu o prémio Nobel em 1993).

Como funciona este teste? Com a ajuda de uma zaragatoa apropriada, é retirada uma amostra de secreções e células epiteliais do nariz ou da parte posterior da garganta do suspeito. A zaragatoa com a amostra do exsudado biológico é colocada num tudo adequado e esterilizado, que contem uma solução que evita a sua degradação. O tubo com a amostra é de seguida enviado para um laboratório certificado, onde será efectuado primeiramente um tratamento que inactiva os vírus eventualmente presentes. Isto é importante para evitar que acidentes de contaminação possam acontecer com o pessoal de laboratório. Depois, o conteúdo da amostra é tratado com reagentes próprios que extraem o material genético que existe no vírus (no caso do SARS-CoV-2, o material genético é constituído por uma cadeia simples de RNA). Como o material genético existirá em pequenas quantidades, é preciso amplificá-lo para que possa ser detectado, se eventualmente presente. E isto é feito através da reacção em cadeia da polimerase (PCR), um processo cíclico que pode demorar várias horas. Numa determinada fase deste processo, é adicionado um marcador fluorescente que se liga ao material genético. O resultado é depois analisado medindo a fluorescência presente. Se esta tiver uma determinada intensidade significativa, isso é indicador de que existiam coronavírus na amostra retirada da pessoa testada e que ela está infectada com vírus activos. O teste é então dito positivo. Ressalve-se que, como acontece em todos os testes laboratoriais, este também apresenta uma certa incerteza, que pode chegar, segundo alguns estudos recentes, até aos 11%. Ou seja, em 100 testes efectuados, 11 podem ser falsos positivos ou negativos. Mas é o melhor que temos até agora a nível de testes de biologia molecular para detectar directamente a presença do SARS-CoV-2 numa determinada pessoa.

O segundo tipo de testes referido é aquele que é designado por teste serológico. O objectivo deste teste é o de tentar identificar a presença de anticorpos que tenham sido desenvolvidos pelo sistema imunitário de uma pessoa que tenha estado infectada com o SARS-CoV-2. Este tipo de teste é mais útil numa fase posterior da infecção, uma vez que o sistema imunitário de uma “pessoa normal” “precisa” de cerca de 5 a 10 dias após o contágio, para produzir anticorpos em número suficiente para poderem ser detectados de forma quantitativa ou qualitativa. A análise neste tipo de teste serológico é mais rápida do que a do tipo de teste descrito anteriormente, não precisa de ser realizada num laboratório de biologia molecular, podendo gerar resultados em cerca de menos de uma hora. São testes de diagnóstico ditos rápidos!


Quando realizado numa amostra representativa da população, este teste serológico pode dar informações sobre a taxa de exposição ao vírus de uma população e, consequentemente, servir de base para o conhecimento da evolução epidemiológica da doença e assim orientar, científica e adequadamente, as autoridades de saúde nos seus esforços para atenuar ou aumentar as medidas de confinamento social.


Este teste é efectuado a partir de uma pequena amostra de sangue de uma pessoa. Os testes são desenhados para detectarem a presença de anticorpos específicos dos tipos IgM e IgG para o SARS-CoV-2. De uma forma muito simples, podemos dizer que a presença de anticorpos do tipo IgM significa que a pessoa ainda se encontra numa fase precoce da infecção, enquanto que a presença de anticorpos do tipo IgG e ausência de IgM específicos para este coronavírus pode indicar que a pessoa teve contacto com o vírus mas já não estará infectada. Em relação à COVID-19, este padrão de seroconversão entre IgM e IgG ainda não está completamente estabelecido, não se sabendo bem quanto tempo os anticoporpos do tipo IgG permanecem no organismo e se conferem uma potencial imunidade natural contra o SARS-CoV-2. A exactidão deste tipo de teste serológico continua a ser estudado, estando em causa quer a sua sensibilidade em detectar pessoas infectadas, quer a sua especificidade às estirpes circulante de SARS-CoV-2 o que condiciona a percentagem de falsos positivos e negativos.

O terceiro tipo de teste acima referido foi desenvolvido ainda mais recentemente e detecta, de forma mais rápida do que o primeiro, a presença do vírus numa pessoa eventualmente infectada. É recolhida na mesma com uma zaragatoa um exsudado do nariz ou da parte posterior da garganta. A amostra é sujeita a um tratamento de forma a fragmentar as proteínas dos vírus que possam estar presentes. Os fragmentos proteicos virais resultantes são depois testados por interacção com anticorpos monoclonais desenvolvidos especificamente para antigénios do SARS-CoV-2.  Este tipo de teste pode ser realizado fora do laboratório, por exemplo no consultório de um médico ou numa triagem hospitalar, o resultado qualitativo (positivo ou negativo) é obtido em cerca de 15 minutos e dá a indicação de a pessoa estar, ou não, infectada com o novo coronavírus. Apesar de ser muito mais impreciso do que o teste molecular que identifica a presença de material genético, este tipo de teste à presença de antigénios virais tem a vantagem da sua rapidez permitir isolar de imediato um potencial suspeito. Um resultado positivo poderá ter de ser confirmado pelo teste genético e não é sinal de imunidade para o SARS-CoV-2.

Estes testes de diagnóstico rápido, menos onerosos também por não necessitarem de laboratórios de biologia molecular e poderem ser efectuados por pessoal não especializado, apesar de menos precisos, podem ser ferramentas essenciais e valiosos na monitorização da exposição e circulação do vírus SARS-CoV-2 na comunidade e permitir avaliar a tão desejada “imunidade de grupo” de uma dada população.

Por fim, e por agora, dizer que estes cinco meses de “convivência” pandémica com esta nova doença permitiu-nos apreender a compreendê-la e trata-la melhor na frente hospitalar, mesmo ainda sem medicamentos específicos e na ausência de uma vacina eficiente e protectiva que poderá tardar a estar disponível apesar dos enormes esforços de cooperação interlaboratorial a nível mundial.

Temos de aprender a conviver com este vírus que, tudo indica, se tornará endémico, veio para ficar entre nós, num equilíbrio difícil entre a prevenção pelo princípio da precaução e o restabelecimento de uma normalidade de convivência social. A ciência está a dar e dará respostas seguras, que os políticos necessitam para fundamentar as suas decisões de saúde pública, mas precisa para isso de tempo para corrigir eventuais erros e dissipar dúvidas e incertezas inerentes ao próprio método científico. É preciso ser humilde e dizer que ainda há muitas coisas que não sabemos sobre a COVID-19 e sobre a evolução futura da pandemia.

Protejam-se e protejam os outros. É que a pandemia ainda não terminou!

António Piedade

Toss Gascoigne - Science Communication

terça-feira, 26 de maio de 2020

O COSMOS DE ANN DRUYAN


Saiu há dias em português, quase ao mesmo tempo que a edição original, o livro “Cosmos. Mundos possíveis”, de Ann Druyan (National Geographic e Gradiva, 2020),  numa altura em que está a passar a série televisiva, com 13 episódios,  com o mesmo título no National Geographic Channel. Druyan, viúva de Carl Sagan, tinha ajudado a escrever a série  “Cosmos” original, transmitida na PBS – Public Braoadcasting Service também com 13 episódios, que teve no original o subtítulo “Uma viagem pessoal.” Também escreveu e produziu a sequela, “Cosmos. Uma Odisseia no Espaço-Tempo”, ainda com 13 episódios, em 2014 (34 anos depois da primeira série e 18 anos após a morte de Sagan!), que passou na Fox e na National Geographic, apresentada por Neil deGrasse Tyson, o director do Planetário Hayden no Museu de História Natural de Nova Iorque, que conheceu Sagan em adolescente. Não houve livro dessa vez. Na segunda sequela (40 anos depois da primeira série e 24 anos após a morte de Sagan!) “Cosmos. Mundos Possíveis” volta a ser apresentado por DeGrasse Tyson, mas, tal como no “Cosmos” original, há um livro que acompanha a série. E o livro é, todo ele, de Ann.

Ann Druyan (n. 1949), que casou com Carl Sagan (1934-1996 ) em 1981, um ano após a estreia de “Cosmos”,  tem sido a figura de maior destaque na salvaguarda da memória do grande astrofísico e divulgador de ciência norte-americano. Os dois conheceram-se em 1974 em Nova Iorque no escritório de uma produtora novaiorquina. Apaixonaram-se três anos depois, em 1977, quando trabalhavam no projecto do disco a bordo das duas sondas Voyager, um disco que devia deixar uma mensagem para eventuais extraterrestres. Ann já contou como foi: ela tinha descoberto uma música chinesa antiga para incluir no disco, telefonou para Carl que estava no Arizona para dar uma palestra e parece que se deu um coup de foudre.  Ali mesmo, à distância. Mesmo sem uma date tradicional, ter-se-ão nessa altura comprometido. Após o seu trabalho conjunto na série “Cosmos”,  que alcançou um tremendo impacto mediático, não demoraram a casar. 

Sagan divorciou-se em 1981 da sua segunda mulher, Linda Salzman (n. 1940), uma escritora e artista (foi, com Ann  Druyan, coautora do livro “Murmurs of the Earth,” traduzido em português do Brasil, uma obra que apresenta os sons do planeta Terra enviados para o espaço). A primeira mulher de Sagan tinha sido uma cientista, Lynn Margulis (1938-2011), proponente do conceito de simbiose na evolução e autora de livros publicados em português (“Microcosmos” e “As Origens do Sexo”, os dois nas Edições 70). Sagan teve teve dois filhos de Margulis, cujo nome de família era Alexander (Margulis foi o nome do segundo marido): Dorion (que é escritor de ciência, quem sai aos seus não degenera) e Jeremy. Teve um filho de Linda Salzman, de seu nome Nick (autor de livros de ficção científica; Sagan escreveu um livro, “Contacto,” desse género). E teve, finalmente,  dois filhos de Druyan, Alexandra (“Sasha”, que já escreveu com a mãe um livro contando histórias do pai) e Samuel (“Sam”, que sofreu uma hemorragia cerebral, contada no cap. V de “Cosmos. Mundos possíveis”). 

Desde a morte do seu marido, apanhado por um cancro raro, em 20 de Dezembro de 1996 (quando só tinha 62 anos), que Druyan tem feito tudo para continuar a obra de Sagan. Natural de Nova Iorque, filha dos proprietários de uma fábrica de lãs, Ann não terminou uma educação formal num college. É, por isso, uma drop-out.  Ela já contou que, antes de conhecer Sagan, teve uma relação algo difícil com a ciência, acreditando nalgumas coisas inacreditáveis (como a vinda de astronautas extraterrestres à Terra). A vida conjunta com Sagan tornou-a uma comunicadora de ciência profissional. Tyson que me desculpe, mas ela é talvez a melhor herdeira de Sagan, apesar de não ter um background científico formal. Tem evidente talento para a escrita, sabe contar muito bem histórias, sabe ligar as histórias com imagens.

Em co-autoria com Sagan, Druyan escreveu vários livros “Cometa” (bela edição ilustrada da Gradiva, 1986, julgo que está esgotado), “Sombras de antepassados esquecidos: em busca do que somos” (Gradiva, 1996, está acessível) e organizou “As variedades da experiência científica (Gradiva, 2007).  Fez a introdução para a edição portuguesa de “Cosmos” ilustrada (Gradiva, 2001) e  também para “As ligações cósmicas. Uma perspectiva extraterrestre” (Gradiva, 2001), co-escreveu com Sagan quatro capítulos de “Um mundo infestado de demónios. A ciência como uma vela na escuridão” (Gradiva, 1997) e  escreveu o epílogo de “Biliões e Biliões. Pensamentos sobre a vida e a morte no limiar do milénio,” (Gradiva, 1998) e um capítulo do livro de homenagem “O Universo de Carl Sagan” (Gradiva, 1998). Portanto, ela como minguém conhece o estilo inigualável de Sagan. O dela é uma boa aproximação: Second best, na impossibilidade de the best. Em 2000 Druyan fundou os Estúdios Cosmos, cujo nome é elucidativo sobre a intenção: continuar a série que deu fama global a Sagan. Co-escreveu e coproduziu o filme “Contacto”, que teve como guião o romance de ficção científica de Sagan, que ficou filho-único. O filme, com Jodie Foster no principal papel, já não pôde ser visto por Sagan.

A história de amor entre Carl e Ann é muito intensa e julgo que está a aguardar tratamento cinematográfico, na sequência aliás da história de amor entre  Stephen Hawking e a sua primeira mulher Jane (“Teoria de tudo,” filme de 2014). O livro “Cosmos” é dedicado a Ann, com uma formulação muito bonita: “na vastidão do espaço e na imensidade do tempo, é minha alegria e privilégio partilhar um planeta e uma época com a Annie." Mas o símbolo maior (literalmente) do amor dos dois é a designação de um par asteróides em honra de Carl  (2708 Sagan, descoberto em 1982) e de Ann (4790 Druyan, descoberto em 1987), que estão em órbitas “de anel de casamento,”  na cintura de asteroides, entre a Terra e Marte.

O livro “Cosmos – Mundos possíveis” – tem uma bela execução gráfica que causa forte impacto à vista logo que se folheia. Pude acompanhar a sua produção como revisor científico (infelizmente, mea culpa, deixei passar, nem sei como, uma gralha aborrecida no calendário cósmico inicial: Onde está  “1 semana = 265 mil milhões de anos” deve ser “1 semana = 265 milhões de anos” e onde está “1 dia = 37,86 mil milhões de anos” deve ser “1 dia = 37,86 milhões de anos”). O resto julgo estar bem: encontrei gralhas no original norte-americano, por exemplo a temperatura das nuvens mais frias do sistema solar, que estão em Úrano, um “gigante de gelo”: abaixo de 200 graus Celsius negativos. Se alguém souber de mais gralhas que me diga, mas conto não receber mensagens.

O prólogo começa  com a Feira Mundial de Nova Iorque de 1939 que Sagan visitou quando era miúdo (tinha  cinco anos) e em cuja inauguração Einstein desempenhou papel proeminente ao fazer um discurso laudatório da ciência. Para se ver a qualidade do pensamento de Ann e da sua escrita leia-se  este trecho do prólogo, antes dos 13 capítulos, cada um associado a um episódio (p. 27):

“(…) A ciência ama a Natureza. Esta ausência de destino final, uma verdade absoluta, é o que faz da ciência o método certo de uma busca sagrada. É uma lição de humildade sem fim. A vastidão do Universo – e do amor, aquilo que torna essa vastidão suportável - está fora do alcance dos arrogantes. O cosmos só aceita de forma plena os que ouvem com atenção a voz íntima que lhes sussurra que podem não ter razão. A realidade tem de importar mais que aquilo em que queremos acreditar.”

A leitura é facilitada pela boa tradução de Isabel Pedrome, cujo nome merece estar na capa.

O livro, com a espessura de 420 páginas, tem um índice remissivo, ao contrário do que infelizmente hoje é norma.  Não está no índice remissivo, mas Portugal aparece uma vez quando se fala dos judeus de Amesterdão, entre os quais se inclui Espinosa. E há uma citação de Fernando Pessoa (de facto, devia vir Alberto Caeiro, pois é Caeiro puro, oops outra gralha, mas não há mais nenhuma), a abrir um dos capítulos,  o onze (“A graça efémera da zona habitável”), que não está no original:

“Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.”

Com Caeiro, o livro em português ainda ficou melhor do que o original.

Os capítulos do livro de Ann incluem novidades científicas que não estão  porque não podiam estar no “Cosmos” original: por exemplo, a preocupação com as alterações climáticas,  a descoberta das ondas gravitacionais originadas pela espectacular junção de dois buracos negros, os exoplanetas, alguns dos quais poderão albergar vida, os progressos das neurociências (no capítulo V, sobre o cérebro, aparece a história clínica do filho Sam; o médico colombiano que o tratou quando se apercebeu de quem era filho disse-lhe que tinha seguido uma carreira científica por causa do pai, um dos seus heróis de juventude!), etc. Não devo roubar o prazer da novidade na leitura. As histórias são atraentes, assim como as grandes metáforas, como a da comparação das navegações de povos primitivos no oceano Pacífico, fixando-se em ilhas longínquas, com as futuras viagens interestelares com que Ann sonha.

A autora deixa algumas notas pessoais. Fala da sua adolescência, que classifica como irresponsável.  Comenta do seguinte modo o seu namoro com Sagan (o livro exibe duas fotografias do casal, uma durante a produção de Cosmos, antes do casamento, e outra mais tardia, quando Ann fez 40 anos):

“Quando nos apaixonámos para mim foi como descobrir um mundo novo… Um mundo que eu tivera esperança de existir, mas nunca tivera oportunidade de ver.  Neste novo mundo, a realidade excedia  a fantasia em todos os sentidos. Acima de tudo o que mais importava era o que era verdadeiro”. Acrescenta: “Dediquei o resto da minha vida a continuar o trabalho que tínhamos feito juntos”. Foi, entre os dois, um admirável “Contacto”.

Tenho uma história pessoal passada com Ann Druyan. Carl Sagan desejava ter vindo a Portugal, onde as suas obras, graças não só ao autor mas também ao editor Guilherme Valente, se venderam muito bem, mas a doença impediu-o. Veio, depois da morte, Ann sua substituição. Depois da best, a second best. Houve uma homenagem a Sagan na Universidade de Aveiro, onde eu disse algumas palavras. No fim, como ela não sabia português, apressei-me a traduzir-lhe o que tinha dito. Ela respondeu-me: “I got everything”. Não é que ela tinha mesmo apanhado pelo tom de voz e pela linguagem gestual o que eu que eu disse? É um dos feitos em comunicação de que hoje mais me posso orgulhar.

Ann conta alguns episódios da história da ciência de um modo que seduz, mostrando que a ciência é humana, podendo nela haver tanto comédia como tragédia. Uma das histórias que preenche todo um capítulo (o quarto) diz respeito ao cientista agrário soviético Nikolai Vavilov, uma das muitas vítimas do regime de Estaline, que morreu num campo de trabalhos forçados. No lugar de direcção científica que devia ser dele alcandorou-se um dos maiores charlatães científicos de todos os tempos – Trofim Lysenko, o qual,  ao recusar as ideias darwinistas, foi o responsável pela morte de milhões de cidadãos da União Soviética. Tal como o partido educava o povo, ele propunha “educar” as sementes, preparando-as para o Inverno, através do arrefecimento prévio. Mas elas, encolhidas logo à partida, não germinavam. E, por falta de colheitas, as pessoas não tinham pão para comer. A recusa da ciência pode significar a morte.

Ann também  escreve sobre um tema infelizmente muito, os vírus. Uma imagem do vírus da raiva ocupa toda a p. 75. Escreve a autora: “Os micro-organismos ligados as doenças são caçadores diabolicamente hábeis – capazes de derrotar os seus hospedeiros depois de os terem explorado como transmissores da doença.” Apesar do advérbio “diabolicamente,” não são uma obra do demónio, como se julgava antigamente. São vírus, um parasita à procura de abrigo para sobreviver, e apenas isso. E também neste caso dos vírus a recusa da ciência pode significar a morte, como está a acontecer nos países de Trump e Bolsonaro.

Tal como o “Cosmos” original, este “Cosmos. Mundos possíveis” é o guião de uma série televisiva. E, tal como na série de Sagan, o livro e o filme valiam por si, reforçando-se no seu conjunto, também agora o livro e o filme valem por si, nenhum prejudicando o outro, antes pelo contrário. O leitor pode ler o livro ou ver o filme, ou as duas coisas. Se viu o filme vai gostar de ler o livro e, se leu o livro, vai gostar de ver o filme. Nestes tempos de crise do livro – o livro saiu em Portugal em plena pandemia, com as livrarias fechadas - o impresso e o audiovisual não têm que ser inimigos. Ann é não só porta-voz de Carl, mas uma voz ela própria, no livro e no filme.

Consta que Ann Druyan já está a pensar na terceira sequela. Mesmo que o consiga faltar-lhe-á ainda muito, nesta enorme obra de divulgação das estrelas e dos filhos delas (não somos mais do que “poeira das estrelas”), para chegar às nove sequelas de “A Guerra das Estrelas”, de George Lucas, que começou em 1977, quando Ann e Carl se apaixonaram, e o episódio IX  e último, que só chegou ao grande ecrã em 2019. Foram, no total, 42 anos de “Guerra das Estrelas”: eu vi o primeiro episódio quando era estudante de Física e vi no ano passado o último. Eu li e vi o “Cosmos” original quando era estudante de doutoramento em 1980, li e vi o “Cosmos“ de Ann agora e conto estar cá, provavelmente já reformado, para ver a terceira continuação. Sagan, graças a Ann, continua a brilhar. E ela própria brilha.

- Ann Druyan. “Cosmos. Mundos Possíveis”. Lisboa:  National Geographic e Gradiva, 2020

O Desporto Escolar Numa Perspectiva Histórica, Jurídica e Política

“A história é uma mediação entre o passado e o  futuro num círculo hermenêutico” (Paul Ricoeur).

Meses atrás recebi em amiga oferta do Professor universitário João Marreiros, com uma dedicatória que muito me desvanece, o seu livro, ”Desporto Escolar - A influência motivacional no contexto da sua prática a nível Histórico, Jurídico e Politico, espelhado em  cerca de trezentas páginas (“Edições Cosmos, 1.ª edição, Março/2019).”

Da respectiva introdução, extraio umas tantas razões que motivaram o seu autor a escrever uma obra em que se empenhou com “engenho e arte” louváveis. Assim:

 “Em Portugal, os trabalhos de investigação sobre a História do Desporto não são muito numerosas atendendo à bibliografia existente que é muito limitada. Aqueles   que se publicaram  são concordantes  em afirmar a importância que esta actividade  de complemento curricular tem para o desenvolvimento harmonioso dos jovens, que frequentam as nossas escolas, bem como a criação de hábitos salutares a nível de uma educação para um  estilo de vida mais activo  e saudável”.

Neste contexto, não pode ser secundarizado, ou sequer beliscado, o papel da Mocidade Portuguesa quando  o Desporto Escolar seguia esta doutrina preconizada  por Salazar: “Há que  reagir pela verdade da vida que é trabalho e dar aos portugueses pela disciplina da Educação Física  o segredo de tornar  imorredoura a sua juventude em benefício de Portugal”.

Dessa altura para cá, tem o desporto escolar andado de Herodes para Pilatos soprado por ventos abrilinos quais tsunamis   para a  sua massificação com corridas do género todos a monte e fé em Deus sem ter em linha de conta a saúde dos seus milhares praticantes.

Na página 55 da referida obra, lê-se: “Depois de larga pesquisa sobre a expressão “desporto escolar”, lemos, pela primeira vez,  estas duas palavras no Jornal “Diário” de Lourenço Maques, de 22 de Fevereiro de 1961, de que se transcreve a parte inicial   de uma  minha extensa entrevista a  três páginas desse órgão de informação moçambicano: “O problema do Desporto Escolar. Toda a juventude deve praticar desporto devidamente orientado tecnicamente  e norteado pedagogicamente quando para tal possua condições físicas atestadas por um prévio exame médico” – disse-nos  o Dr. Rui Baptista, diplomado pelo INEF, professor da Escola Industrial de Lourenço Marques”.

Nesse tempo, se a memória me não falha, eram dedicadas duas horas semanais nas tardes de quarta-feira e outras duas nas manhãs de sábado às actividades desportivas da Mocidade Portuguesa, sendo os professores de Educação Física responsáveis por essa actividade. 

“Last but not least”, da contracapa deste  livro que nos deve merecer uma análise cuidada e aprofundada, transcrevo esta  sinopse  do seu autor: ”Com esta publicação pretende-se  aumentar  o seu conhecimento  a nível de algumas fases e momentos no seu enquadramento histórico, jurídico e político, os conceitos e tipos de motivação no contexto da prática desportiva sobre a complexidade na actualidade do Desporto Escolar reflectindo nesta obra todas as minhas  investigações”.

Obra, portanto, a merecer atenção cuidadosa e lugar destacado na biblioteca dos docentes interessados em conhecer o passado para dar uma resposta aos desafios actuais e futuros de uma profissão de obreiros de uma educação que devia primar por integral, mas já nem mesmo livresca é porque escravizada a consultas ao já chamado, com ironia amarga, “doutor Google”!

segunda-feira, 25 de maio de 2020

In Memoriam José Cutileiro (1934-2020)



No pretérito sábado foi a primeira vez desde há um bom rol de anos que não li o “In Memoriam” do Expresso, escrito por José Cutileiro. Numa prosa escorreita, e como é uso e costume nos grandes jornais do mundo, José Cutileiro, antropólogo de formação, embaixador de profissão e escritor de vocação, descrevia um duas ou três pinceladas vidas bem vividas. Não conheci José Cutileiro senão através dos seus tão inteligentes escritos, nos jornais e em livro, e  da sua voz lúcida no programa “Estado de sítio” na TSF. E, no entanto, tenho a pretensão de o ter conhecido, pelo menos tanto quanto se pode conhecer alguém através dos referidos meios de intermediação.

Admiro-o muito. Nascido em Évora, foi um moderno estrangeirado, com a inteligência e lucidez que poucos exibiram nos nossos tempos. Tenho-me interessado pelos estrangeirados, quer os dos século XVIII quer os dos tempos mais recentes, porque eles costumam ter uma noção muito mais nítida do seu país de origem do que que domina entre nós. Eu quando me estrangeirei, embora não em demasia (vivi no total seis anos fora do país, a maior parte na Alemanha mas também na Dinamarca, na Espanha ou melhor no País Basco, e nos Estados Unidos), julgo ter ficado a conhecer melhor Portugal, uma vez que só na cotação com outras se pode conhecer uma cultura nacional. Já um dia disse que Portugal desafia as leis da óptica: vê-se melhor à distância.

Logo em adolescente Cutileiro estava a ir para Cabul, Afeganistão, acompanhando o pai, José como ele, que era médico, destacado no Afeganistão pela Organização Mundial de Saúde, após afastameento do país natal por questões políticas. Não é qualquer um que começa a conhecer o mundo, saído directamente do Alentejo para o Afeganistão. Regressado depois e com uma experiência académica doméstica em que saltitou entre a arquitectura e a medicina sem completar qualquer delas, licenciou-se e doutorou-se em Oxford com uma tese que no original se intitulava anodinamente “A Portuguese rural society” (Oxford University Press, 1971) e em português tinha um título bem mais apelativo: “Ricos e pobres no Alentejo” (Sá da Costa, 1977). Li-a na Alemanha, nos idos dos anos 80, pois, pelo meu distanciamento social relativamente à pátria, senti curiosidade por conhecer melhor a sociologia do país (e, além disso, tinha-se tempo: tem-se um tempo imenso se se está a estudar teoricamente a cisão do urânio). O autor, trabalhando numa escola com pergaminhos, fez um retrato, a partir de material autêntico, sobre o que era o Sul de Portugal no tempos de Salazar, um Portugal muito desigual. Esteve uns anos como lecturer na London School of Economics, mas a vida a académica não o atraía (acho que o consigo perceber…).

Pela mão de Mário Soares, no rescaldo da Revolução de 1974, entrou na carreira diplomática pelo posto de conselheiro cultural em Londres. Apesar da desconfiança dos diplomatas encartados, haveria de singrar nos Negócios Estrangeiros, revelando-se um dos melhores: teve postos em Moçambique, na África do Sul e na União Europeia. Desempenhou um papel relevante nas negociações desencadeadas pela guerra na Jugoslávia e assumiu um cargo dirigente na União da Europa Ocidental, um dos projectos falhados do Velho Continente (finou-se após o Tratado de Lisboa de 2000). Europeu, Cutileiro era um céptico, cético também sobre a Europa. Gostava de citar o General De Gaulle, quando este disse que as nações europeias eram ovos cozidos e com ovos cozidos não se faz uma omelete.

Voltou à Academia nos início do século XXI, ensinando no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde Einstein  e Dyson tinham sido professores. Ele tinha um certo orgulho por ter respirado o ar que estes físicos também respiraram. Tornou-se cada vez mais um céptico (como céptico deve ser qualquer pessoa minimamente inteligente), mas, mais do que um céptico, após Trump e o Brexit, tornou-se um pessimista (nessa fileira já não o acompanho, por achar que a esperança deve ser, como diz o povo, "a última a morrer"). Pela rádio, ouvia-o, no seu timbre roufenho, falar com desencanto do mundo actual, em particular quando referia Trump ou Bolsonaro. Não falta por aí quem os defenda, quanto mais não seja por terem ganho eleições, mas para ele não era difícil reconhecer um burro quando era mesmo um burro. Aliás, basta hoje olhar para as trágicas estatísticas da pandemia.  Cidadão europeu e do mundo, residia em Bruxelas, onde, como ele dizia, "há de tudo". Com uma ironia fina afirmou numa entrevista ao “Sol”:  Não tenho taras especiais, mas presumo que se gostasse de sodomizar pavões arranjaria um senhor que trataria disso”. Sonhava com uma casa em Cascais, com vista para o mar. No coração da Europa, faltava-lhe o mar.

Nas entrevistas não tinha papas na língua. Aos diplomatas recomenda-se tacto, mas ele era um diplomata reformado. Em entrevista recente ao Observador, apontou o costume português de favorecer a família e os amigos, usando o esquema e a mentira, se preciso for em tribunal. Sobre um alfaiate lisboeta, o senhor Gueifão, que se gabou, ainda ele era rapaz, de cometer perjúrio em tribunal, Cutileiro disse sem rodeios: 

Em todos os países que tiveram a Reforma, que foram luteranos ou calvinistas, uma pessoa não se pode gabar de perjurar num tribunal. O tipo gabava-se disto num desses sítios e levava um pontapé no cu e ia para a rua. E talvez o pudessem denunciar. E esta espécie de indiferença pela verdade e a mentira em relação ao Estado é uma grande falha nacional. E isto continua a ser assim.”

Na sua juventude conviveu com grandes nomes da cultura portuguesa de quem foi amigo e que ele gastava de citar, como o José Cardoso Pires, o Luís de Sttau Monteiro, o Alexandre  O’Neill e o Vasco Pulido Valente.  Fez com alguns deles a revista “Almanaque”, que deve ter sido um gozo pegado. Tinha, desde o tempo de infante, o gosto da escrita. Publicou dois livros de versos, mas não deviam ser grande coisa , pois o próprio não insistiu, pelo menos publicamente, na afirmação da veia lírica. Como ele próprio dizia, e o povo também diz, “as coisas são como são". Uma verdade filosófica profunda!

A sua obra magnum são os “Bilhetes de Colares”. Há uma recolha feita pelo jornal Independente, publicada em 2004 (se virem num alfarrabista, comprem; tem uma caricatura de Cutileiro na capa feita pelo André Carrilho), em que o seu nome está anteposto ao título “Bilhetes de Colares de A.B. Kotter (1993-98)”. Cutileiro assina uma nota introdutória, intitulada “lembrança da Beldroega”. E há uma recolha maior, de 2007, impressa pela Assírio e Alvim, dos textos de A. B. Cotter (incluindo, no final, um “in memoriam” de  Cutileiro; este dá Cotter como falecido, com um testamento que beneficiava os Bombeiros Voluntários de Colares), com tradução de J. Fonseca e organização e posfácio de Fernando Venâncio (que me ofereceu o livro com uma dedicatória muito simpática, que agora reli). Este livro, grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores de 2009, está à venda na Wook. Kotter é um pseudónimo de Cutileiro, um alter ego – o próprio  sempre o reconheceu de uma maneira elegante: nunca guardou dele a distância. Criou um personagem de um ex-espião britânico, aristocrata, estabelecido em Colares, na Quinta da Beldroega, que escreve sobre Portugal e os portugueses, a partir do quer se vai passando à sua volta. O pretenso tradutor Fonseca, dado como ex-comando, é o seu fiel secretário, para não dizer "criado", uma palavra que deixou de ter uso. Acontece que Kotter gosta de Portugal, pelo menos tanto como Cutileiro. E, por gostar dele, lamenta os seus defeitos. As manhas e artimanhas dos portugueses estão bem nítidas nessas notas, escritas num português de lei que faz lembrar Eça de Queirós. O par Kotter - Fonseca evoca Jacinto e Zé Fernandes de  “A Cidade e as Serras”. Dá gosto ler Kotter - Fonseca, isto é, Cutileiro – Cutileiro, o estrangeiro e o português. Tenho os dois livros de Kotter como peças únicas na minha bem nutrida estante sobre Portugal e os portugueses, bastante perto do “Ricos e Pobres no Alentejo,” porque Colares não fica muito longe do Alentejo.

Para dar um cheirinho de Kotter respigo a nota “Jornais” inserta nos “Bilhetes de Colares” (p. 166).
“A Quinta da Beldroega tem endereço postal e número de telefone portugueses, mas, sem jornais locais, sem televisão, com a telefonia trancada no BBC World Service, não é bem aqui que eu vivo. O Carlinhos disse-me uma vez que a Beldroega era um enclave e talvez tivesse razão. 'Um salpico de Europa no meio da moirama’, acrescentou o consumidor principal dos meus álcoois brancos, para aplauso da Mãe, que acrescenta pelo seu punho 'Marrocos de Cima' ao timbre do seu papel sempre que nele escreve as suas cartas.”

Mais adiante, queixa-se que faltam nos jornais portugueses “as duas secções principais de qualquer jornal inglês sério: o obituário e a correspondência dos leitores. A primeira informa-nos com quem deixámos de poder contar: a segunda de com quem ainda temos de nos haver”.

Na referida entrevista ao Observador, Cutileiro diz que uma das coisas que mais o impressionou quando voltou com o pai de Cabul, passando por Madrid, é que os nossos “jornais eram muito mal escritos”. É o que pode acontecer a quem anda a ler os clássicos portugueses na estranja, nesse tempo em que a Internet era um futuro distante.

Não li “Abril outras transições”  de José Cutileiro (Dom Quixote, 2017), mas acabo de ler o “Inventário” (Dom Quixote, 2020), que foi a sua última obra. Muito bem escrita. Com o subtítulo “Desabafos e divagações de um céptico”,  agora não é Kotter que fala, mas o próprio. Belo volume, a começar pela qualidade da edição de capa dura e a acabar nas poucas estampas seleccionadas pela sua amiga Vera Futscher Pereira, em cujo blogue (“Retrovisor”) viram a luz do dia estas notas (textos curtos, parte de um “Bloco-notas”).

Nestas notas nota-se a inteligência do escriba. Algumas histórias são pitorescas e algumas frases são lapidares.  Na sua crónica “Descoberta de Portugal”, na p. 236, a propósito dos “brandos costumes,” Cutileiro lembra que no tempo de Salazar Cunhal fez os exames finais de Direito, em 1940, numa altura em que estava preso indo dormir à cadeia e acrescenta, com graça e até parece que a despropósito, que uma amiga brasileira lhe confidenciara que: “No Brasil, se eu vou jantar com um homem, tinha de dormir com ele, e em Portugal não.” Enfim, portugalidades. O país é simplesmente diferente dos outros. Nos anos 40, quando o pai foi fazer exame de Obstetrícia, o respectivo catedrático (o “Moreirinha”, os portugueses são especialistas em diminutivos, como várias vezes assinalou Cutileiro) perguntou-lhe: “O senhor não tem vergonha de vir fazer exame sem uma recomendaçãozinha?” (outra vez o diminutivo, o nome vulgar é “cunha”). E a crónica termina de um modo queirosianamente genial:

 “Entre compadres cuja ajuda falha e computadores que não dominam bem, portuguesas e portugueses sofrem – e cogitam, à portuguesa, que não há-de ser nada” 

(é o que o governo no meio de uma pandemia agora  diz - não há-de ser nada - e não é que todos acreditam?). As últimas linhas do livro, datadas de 2 de Outubro de 2019, são de um cepticismo extremo, mas também de uma lucidez impressionante: “E agora? A cambada de Tancos? Pátria, verdade, honra, serviço, que valor têm? Como se metem na ordem heróis do mar e nobre povo assim?”

Na nota "Vergonha na cara" de 10 de Agosto de 2016,  que não está no livro, mas está na Internet, escreve: "O país mais parecido com Portugal depois do 25 de Abril é o Portugal antes do 25 de Abril".

Homem de letras – fluentíssimo não só em português como em inglês e francês – Cutileiro, conhecia do seu percurso antropológico o método científico. Pouca gente sabe (mas sabe o António Araújo, que sabe tudo) que ele traduziu do inglês para português dois livros de bolso de divulgação científica que saíram na saudosa colecção Pelicano da Ulisseia: um, da autoria de um geólogo inglês que academicamente vingou na América, Frank H. T. Rhodes, é “A Evolução da Vida” e o outro,  de um psiquiatra escocês, Ian D. Sutie, é  “As origens do amor e do ódio”.

Além disso, Cutileiro foi tradutor literário: traduziu dois romances de um francês de origem russa e campeão da Segunda Grande Guerra, Romain Gary, que foi o único a ganhar dois prémios Goncourt (o regulamento impede-o, mas ele escreveu o segundo livro sob pseudónimo e guardou o segredo até à hora da morte, por ele escolhida já que se suicidou). Comprei outro dia, olhando apenas ao preço, numa  banca de alfarrabista o livro “Lady L” de Gary (Bertrand, 1966) e, sabendo agora da qualidade da tradução, vou lê-lo. Também escreveu poesia, mas deve-se ter arrependido, pois só publicou, em   jovem, dois livros. No entanto, o "Inventário" abre com um poema sobre a revolução de Abril, datado de 1977.

Cutileiro era um literato, mas conhecia e respeitava a ciência. Veja-se por exemplo o “In memoriam” que escreveu no expresso sobre Stephen Hawking. Fiquei contente por ele  me ter citado, era sinal que alguns dos escritos do rectângulo eram lidos em Bruxelas. Em 21 de Março de 2018, uma semana depois da morte de Hawking, Cutileiro escreveu no “Retrovisor” um texto que não está recolhido no “Inventário”. Mas está à mão de semear na Internet. O texto resume em poucas linhas a vastidão cósmica e a nossa pequenez nela. Quando fala do Big bang, o  tremendo clarão de há 14 mil milhões de anos, Cutileiro comenta: “Faz espécie que assim seja - mas faz ainda mais espécie que se saiba que assim é.” Faz lembrar Einstein: “A coisa mais incompreensível do universo é que ele seja compreensível”. Leia-se na Internet  o final desse texto, “Escala nossa”, para se perceber o que são os anos humanos (no spoilers).

Noutro texto cronologicamente anterior, com um título filosófico, “As coisas são o que são são. O que é ser? O que são coisas?” (p. 151-152 do “Inventário”, datada de 22 de Março de 2017), Cutileiro fala de uma questão de alcance cosmológico que colocou em Monsaraz (encoberta sob o nome de “Vila Velha”, para a distinguir de Reguengos, “Vila Nova”), onde fazia o trabalho de campo para a sua tese, a um velho alentejano:

“Quando perguntei ao tio Zé Peidinho, pastor reformado (de gado, não de almas) como é que acabava que o mundo tinha começado, analfabeto com melhor cabeça que muitos doutores que eu conheci  (…) respondeu: ‘Há-de ter começado como tudo: de pequenino.’ “

A singela mas expressiva expressão “há-de ter” revela uma sabedoria imensa para um pastor analfabeto de 82 anos (“era muita idade nesse tempo,” comenta José, que na época tinha 32). Depois de ouvir a gravação o ancião exclamou: “Olha que mánicazinha tã esperta!” Comenta o agora idoso Cutileiro: “Concordei, os dois embevecidos com aquela maravilha do progresso”. O trecho faz lembrar  “ACidade e as Serras”, em que a grafonola não para de grasnar: ”Quem não admirará os progressos deste século?”

A ideia científica de Big Bang, da criação a partir de um ponto, pode parecer ainda hoje fantástica. Mas não o era nos anos 60 para o compadre Peidinho (o corrector ortográfico quer que eu lhe chame Pedrinho, assim como não quer aceitar o “mánicazinha,” não percebe nada de alentejano).

Não sei se Cutileiro sabia (o António Araújo sabe, porque sabe tudo) que em Reguengos de Monsaraz nasceu, nos alvores do século XX, um físico, de seu nome António Gião, que se haveria de corresponder em 1946 com Einstein. Um estava em Reguengos e outro estava em Princeton, do outro lado do Atlântico, e, através do correio, se entenderam. Reguengos  não está tão afastado de Princeton como pode à primeira vista parecer.

Pois, neste universo muito antigo, a vida humana é efémera, pesem embora todos os progressos e todas as "mánicazinhas". Não acreditando em Deus (como seria de esperar de um alentejano de cepa). Cutileiro não tinha pejo em polvilhar as suas prosas com a palavra “Deus”. Também Einstein, que não acreditava num Deus pessoal, achava que Deus era uma excelente metáfora. “Deus o tenha em bom descanso”, disse José Cutileiro de amigos seus, incluindo Cotter, esse um amigo íntimo. Agora Cutileiro foi para a companhia de Cotter e dos outros infelizmente já finados. Se existir outra vida, José Cardoso Pires e companhia, devem lá estar muito divertidos a conversar, a beber e a escrever, tendo agora ganho companhia. Pois eu, que gosto de imitar os mestres, também digo: “que Deus o tenha em bom descanso.”

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...