Meu artigo do "As Artes entre as Letras" que saiu ontem:
À pergunta celebrizada pelo escritor Baptista Bastos “onde
estava no dia 25 de Abril de 1974?”, passam agora 45 anos, eu respondo que estava numa aula do Departamento de
Matemática da Universidade de Coimbra, muito perto da sala (hoje chamada “17 de
Abril”), onde cinco anos antes tinha começado a crise académica de 1969.
Frequentava então o 1.º ano do curso de Física e o meu curso seria
contemporâneo dos tempos, por vezes conturbados que se seguiram. Não se pode
dizer que o curso tenha sido prejudicado, pois éramos muito poucos (apenas
quatro no fim) e o entendimento com os
professores era bastante bom. Depois
passei um período de três anos e meio em doutoramento na Universidade Goethe na
Alemanha, para regressar a Coimbra no Natal de 1982. Em 12 de Junho de 1985,
curiosamente no dia dos meus anos, era assinado no Mosteiro dos Jerónimos o
acordo de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, que teve
efeitos a partir do ano seguinte. De então para cá, Portugal tem sido um país
integrado na União Europeia, parte de uma comunidade de países que, no meio de
vicissitudes várias (o Brexit é uma das maiores), tem um projecto comum de paz,
democracia e prosperidade.
A ciência faz parte desse projecto. Primeiro sem o 25 de Abril de 1974 e depois
sem o 12 de Junho de 1985 não teríamos tido o enorme crescimento do sistema
científico e tecnológico que de facto tivemos. Em primeiro lugar, a ciência era
incipiente antes de existir democracia entre nós, pela simples razão de a
ciência precisar da liberdade para florescer. Em segundo lugar, sem os fundos
que vieram da Europa, designadamente para o reforço da qualificação aos níveis
mais elevados, não teria sido possível criar massa crítica humana para haver
ciência.
Uma boa imagem do afastamento da ciência dos portugueses é dada
pelo cartoon de João Abel Manta dos
tempos da Revolução de Abril que mostra um oficial do MFA a apresentar ao Zé Povinho e à sua família um
grande cortejo de famosos sábios e grandes personagens do mundo da cultura, com
o Einstein à frente. A metáfora é boa: o Zé Povinho não conhecia o Einstein nem
o resto da comitiva. “Muito prazer em conhecer vosselências,” diz a legenda.
Mas se uma imagem em certos casos vale mais do que mil
palavras, os números também têm um indiscutível valor. Vejamos alguns.
Reportamo-nos aos dados estatísticos que constam da PORDATA. Em 1986 o nosso
país gastava em ciência e tecnologia (as duas são indissociáveis) juntando
sector público e o privado 0,35% do PIB, em 2017 foi 1,33%, cerca de quatro
vezes mais, devendo acrescentar-se que o PIB subiu cerca de sete vezes (nos
últimos tempos a subida não tem sido grande coisa). O que se fez com esse
dinheiro? Um dos resultados mais importantes foi a formação avançada: em 1986
doutoraram-se no país e no estrangeiro 216 pessoas, mas em 2015 já foram 2969
pessoas, cerca de 14 vezes mais. Existem cerca de 30.000 doutores em Portugal
(não é muito: não somos, ao contrário do que se diz, um país de doutores, mas é
interessante que esse número esteja a crescer 10% ao ano). E esses novos
investigadores, juntando-se a outros mais velhos, produziram novo conhecimento,
traduzido em publicações científicas. Em 1986 saíram 664 artigos da autoria ou
coautoria de portugueses, com endereço em Portugal, ao passo que em 2015 já
foram 21.333, isto é 32 vezes mais. Portanto investiu-se claramente mais em
ciência e a produção científica acompanhou o investimento. Plantou-se a árvore,
a árvore cresceu e estão a recolher-se os frutos. Um dos principais plantadores
da árvore – é justo reconhecê-lo – foi o físico José Mariano Gago, que em 1995
foi o primeiro detentor da pasta da Ciência e Tecnologia, que além de ter
aproveitado os fundos europeus para a ciência percebeu que a cultura científica
era condição indispensável ao desenvolvimento da ciência entre nós.
Não quer este notável incremento dizer que estamos bem.
Longe disso. Há carências gritantes, nomeadamente a ligação do conhecimento à
economia (os doutorados não têm sido absorvidos por empresas e têm também problemas em arranjar lugares condignos
no sector público), e a cultura científica da população continua a ser pouco
mais do que precária, isto é, a ciência não está suficientemente viva na
população (neste tempo em que se detectam ondas gravitacionais em que tiram
fotografias de buracos negros, será que o Zé Povinho conhece mesmo quem foi
Einstein?).
Tudo é relativo. Se a ciência abriu em Portugal após Abril e
fizemos um caminho ascensional de que nos podemos orgulhar, estamos ainda longe
neste como noutros sectores dos lugares cimeiros da União Europeia a que
pertencemos. A Europa gasta em média 2,1% do PIB em investigação e
desenvolvimento e planeia agora para 2030 chegar à média de 3%, um número que
já hoje alguns países europeus exibem, devendo notar-se que o PIB português
está abaixo do da média europeia. O número de doutoramentos dividido pela
população total está, apesar de crescente. infelizmente abaixo da média
europeia. E o mesmo se passa com o número de publicações científicas. O que é
preciso, portanto, fazer? Continuar, na ciência, Abril e Junho, isto é,
assegurar os níveis de crescimento que foram conseguidos com o 25 de Abril de
1974 e o 12 de Junho de 1985. A
interrupção no investimento na ciência que se deu com a intervenção da “troika”
foi um desastre no meio de outros desastres. É nas alturas mais críticas que é
preciso maior clarividência para pensar o futuro e, na altura, não houve essa iluminação.
Hoje, passados os tempos mais difíceis do resgate, dificilmente poderemos dizer que há uma visão
que atribua à ciência o devido lugar. O piedoso discurso governamental sobre a
ciência – e, mais em geral, sobre a cultura é implacavelmente desmentido pelos
factos. A ciência, que é um factor crucial do desenvolvimento do país, continua
na prática a ser considerada como uma componente menor do projecto do país.
Este ano vamos ter eleições europeias, regionais na Madeira e legislativas – é
mais um ciclo da nossa democracia que se completa. É altura de reclamar para
ciência – e para a cultura – o lugar a que ela tem direito. Perguntemos aos
candidatos que lugar vêem eles para a ciência. A verdade é que sem ciência não
teremos futuro.
3 comentários:
"Se a ciência abriu em Portugal após Abril e fizemos um caminho ascensional de que nos podemos orgulhar, estamos ainda longe neste como noutros sectores dos lugares cimeiros da União Europeia a que pertencemos."
O desenvolvimento industrial de Portugal não começou no dia 25 de abril de 1974. Antes da Revolução dos Cravos já havia Ciência em Portugal. Dantes, éramos o país menos desenvolvido da Europa Ocidental. Hoje, o PC tem presença obrigatória em praticamente em todos os lares portugueses, qual eletrodoméstico de uso diário, mas, ainda assim, o lugar de Portugal continua a ser na cauda da Europa! As comparações, em História, são sempre muito traiçoeiras!...
Devo imenso ao 25 de abril de 1974. Nessa altura era eu uma criança. A liberdade tirou-me a pátria e não me deu outra. É claro que vivo aqui, livre, nesta espécie de lugar. Acho que nunca cheguei, realmente... Sempre em viagem para onde não quero ir só porque não posso ficar. Por isso, amo este mestre que odeio porque me ensinou a impermanência, a mandala desfeita depois de perfeita, a felicidade do desapego e as inegáveis virtudes da aceitação do vazio que tudo é.
Neste dia, distraio-me sempre a desfolhar o vermelho de um cravo e deposito-o, solene, ao fim da cadeira.
A liberdade que abril quis é uma liberdade dos amordaçados pela ditadura e dos oprimidos pela exploração e dos arregimentados à força...Mas não apenas uma liberdade de contestação, manifestação e protesto.
A liberdade dos criminosos e dos fascistas e dos arrivistas, dos corruptos, vendilhões, oportunistas, vigaristas, mafiosos...É a negação da liberdade.
A liberdade não existe simplesmente para todos. A liberdade de uns, não raro, é falta de liberdade de outros. A liberdade, em abstrato, não existe, nem sequer a liberdade de pensamento.
Ou temos liberdade de pensar, fazer e de escolher, ou de pouco vale a liberdade de protestar.
Quanto à liberdade de votar, é do mais falacioso e perverso que pode haver.
Basta ver as eleições nos regimes ditatoriais.
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