Meu artigo saiu no n.º 1 da VISÃO - BIOGRAFIA:
Para
o historiador inglês David Wootton em A Invenção da Ciência,
“a ciência moderna foi inventada entre 1572, quando
Tycho Brahe avistou uma nova estrela (uma supernova)
e 1704, quando Newton publicou a sua Óptica, onde demonstrava que a luz branca é composta por
luz de todas as cores do arco-íris.” No meio está Galileu, que em 1609 observou
pela primeira vez o céu com o telescópio. E, muito antes de Galileu, está
Leonardo da Vinci (1452 - 1519). Por ter sido extremamente multifacetado – além
de artista, foi engenheiro, inventor, arquitecto e cientista, que se multiplicou por áreas
como a física, a botânica e a
anatomia – ele é considerado um modelo inigualável do homem do Renascimento.
Tendo
nascido 112 anos antes de Galileu, Leonardo foi um precursor da ciência
moderna. A
observação e a experimentação, duas das componentes do método científico, estão omnipresentes nos seus livros de apontamentos,
dos quais só um quarto chegou até nós e que não
vieram a lume em vida do autor. Eles mostram o artista, o cientista e o
engenheiro. O seu olho era de uma precisão incrível,
como revelam os desenhos e as notas nesses livros. Com a sua perícia
experimental, Leonardo bem poderia ter sido um Galileu prematuro. Mas
faltou-lhe a terceira e não menos importante componente do método científico, o raciocínio teórico. De facto, Leonardo, que se considerava um
“homem sem letras,” só na maturidade se dedicou a aprender matemática, tarefa
em que foi ajudado por Frei Luca Pacioli, autor de A Divina Proporção
(1509). A sua matemática era sobretudo a geometria e não tanto os
números. Quando Leonardo se apercebeu do poder da matemática, vislumbrou o
poder da ciência. Escreveu no Tratado da Pintura, só publicado em 1651:
“Nenhuma investigação humana pode ser considerada verdadeira ciência se não for
capaz de uma demonstração matemática.
Se se diz que as ciências que começam e terminam na mente são genuínas, tal não é aceite e é negado por muitos motivos e
principalmente porque o teste da experiência se encontra ausente destes
exercícios da mente e sem ele nada pode ser certo.” Esta crítica a Aristóteles,
muito antes de Galileu, é de uma modernidade extraordinária. Leonardo chegou ao
método da ciência, só
não a exerceu de modo sistemático. Mas, em contrapartida, foi ímpar na
engenharia.
A
geometria serviu a Leonardo tanto na arte (vejam-se os seus sólidos platónicos
na Divina
Proporção ou o “homem de Vitrúvio”, já para não falar da
sua pintura, escassa, mas superlativa) como na ciência e engenharia. Nos dois
domínios serviu com igual eficiência, num tempo que não era de “duas culturas” como hoje, mas de uma só. De
facto, tendo a arte do Renascimento explodido no início do século XV com a
descoberta da perspectiva, a técnica de representar o espaço tridimensional
num plano, tanto as pinturas de Leonardo como as suas representações naturais e
os desenhos mecânicos mostram como ele
dominava na perfeição a perspectiva: por exemplo, um torniquete do Codex Atlanticus (1478-1519) parece um desenho assistido por
computador (CAD), dos que se fazem hoje (Fig. 1). Graças à precisão dos
seus esboços foi possível fabricar réplicas
funcionais de alguns engenhos, que têm sido admiradas em exposições
internacionais, como as que já estiveram em Lisboa e Porto.
Os
desenhos de máquinas proliferam nos cadernos de Leonardo. Algumas são máquinas voadoras, como o parafuso aéreo que faz
lembrar um helicóptero. Outras são máquinas de guerra, como um carro armado que faz
lembrar um blindado, outras são máquinas
hidráulicas, como uma ponte giratória, outras são máquinas mecânicas, como um guindaste para escavar
canais, outras são máquinas para espectáculos teatrais, como um carro autopropulsado, e outras ainda são máquinas
musicais, como um tambor mecânico.
O parafuso aéreo não poderia voar, mas Leonardo concebeu uma
máquina, baseada no voo dos animais, que talvez pudesse. Leonardo
observou cuidadosamente as aves para estudar
o seu voo, como mostra o seu Codex sobre
o Voo dos Pássaros (1505). e dar ases ao homem. Partiu para esse projecto de homem-pássaro como
um discípulo da experiência:
“a minha intenção é consultar em primeiro lugar a
experiência e só depois pelo raciocínio mostrar como essa experiência tem de
funcionar”. Usando a referida máquina o homem poderia, segundo o visionário
engenheiro, voar alto. Tal como muitas outras, essa máquina não foi construída
na época, mas o sonho de voar cumprir-se-ia.
Einstein disse que o seu maior dom era a “curiosidade apaixonada”. A
curiosidade de Leonardo não era inferior à de Einstein. Einstein disse também
que a “imaginação era mais importante do que o conhecimento.” Leonardo já sabia
isso, pois deixou voar a sua imaginação. Ao observar com rigor a Natureza e ao
descortinar nela padrões descolava para analogias surpreendentes. Para ele, se um
pássaro era uma máquina, uma máquina poderia ser um pássaro. Nos dias da
robótica, alguns descendentes de Leonardo defendem que, se um homem é uma
máquina, uma máquina pode ser um homem. Ontem como hoje a imaginação continua a
voar.
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