terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Pode a educação impedir que a maior pessoas passe a viver num limiar de sobrevivência?

Na sequência de textos recentes divulgados neste blogue (por exemplo, "A ética está para além da ciência" ou "Bons e maus cidadãos. A urgência do diálogo entre a tecnologia e a ética"), vale a pena ler uma entrevista de grande interesse feita pelo jornalista Rui Antunes a Luís Moniz Pereira, especialista em inteligência artificial.

Essa entrevista, com o título "A máquina é mais barata do que o Homem para executar as mesmas tarefas. As pessoas vão viver num limiar de sobrevivência", publicada na revista Visão de 18 de Novembro passado, interpela necessariamente quem é educador e têm essa consciência. A questão é:
- se a busca de conhecimento científico, decorrente do desejo muito humano de saber, não deve, em circunstância alguma, perder de vista o respeito pelos direitos humanos e pelo planeta, consagrados a nível universal, e
- se a tecnologia, derivada do conhecimento conseguido, só tem sentido quando melhora a vida das pessoas (de todas elas),
porque é que vemos essa busca (progressivamente?) enviesada no sentido daquilo que pode ter lucro imediato (para um número cada vez mais restrito de pessoas), desprezando tudo o resto?
Entrar nesta questão requer uma educação escolar forte, capaz de concorrer para a sua compreensão, análise e crítica, sempre com base em saber fundamental. Que outro modo há de impedir o retrocesso civilizacional expreso na segunda frase do título de entrevista?
Em que medida a Inteligência Artificial está a tomar conta das nossas vidas? Na verdade, a Inteligência Artificial ainda não chegou. Ou chegou apenas uma pequena amostra. A maior parte do que hoje se chama com espetacularidade Inteligência Artificial é aquilo que, em Ciências da Computação, os cientistas mais rigorosos apelidam de Data Science (...) a IA é significa um todo que envolve imaginar, argumentar, provar teoremas matemáticos, e tudo continua ausente. Portanto, a IA ainda vai tomar conta das nossas vidas de maneiras muito mais sofisticadas.
As máquinas vão pensar? Claro. Digamos que são mais um utensílio que os humanos vão ter, como em tempos tiveram o arco e a flecha. O desafio é pôr o pensamento fora do cérebro, transpor para outro hardware todas as nossas capacidades cognitivas, criatividade incluída. Da mesma forma que os biólogos pensaram em criar vida num laboratório, outros cientistas pensam em colocar inteligência noutro suporte. Não será num tubo de ensaio, certamente.
(...)
Se faz raciocínios já não é só uma máquina que analisa padrões e imagens. Justamente. Os robôs autónomos são outra forma da IA que me surpreendeu. Já não é o robô que faz sempre o mesmo, começa a ter autonomia. São os drones, os carros sem condutor, os robôs que vão à mercearia pela rua fora e fazem a entrega das compras. A simbiose homem-máquina vai ser o futuro e, certamente, as máquinas vão tornar-se mais humanas. A autonomia obriga-as a conviver connosco e, para se inserirem na sociedade, vão precisar de regras sociais e morais. Até mesmo na convivência entre elas (...).
Esse cenário pressupõe que não exista um humano a supervisionar? (...) Cada vez haverá mais robôs com esse grau de iniciativa e que não podem estar à espera das instruções de um humano, além de que a máquina que está no terreno tem muito mais informação do que o humano que está longe. É o que já acontece com os drones autónomos, que são capazes de identificar caras e têm autonomia para atacar. Ainda não a usam, ou é-lhes negado que a usem, mas a tecnologia existe e pode começar a ser utilizada de um momento para o outro, até porque o inimigo também a tem.
As grandes potências estão numa corrida para terem o melhor desse tipo de armamento? Temos o exemplo do projeto da Google com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, que contribui com o seu know how de gestão de imagens para a identificação de caras. Os drones conseguem reconhecer pessoas no meio de uma manifestação, coisa que também já se faz na China. Não se trata de um clima de guerra, mas as autoridades têm uma espécie de ficha em que vão pondo as coisas boas e más das pessoas e em que lhes atribuem pontos que determinam a rapidez do acesso à saúde, ao emprego, a uma casa, etc. Sabem quem contactou com fulanos suspeitos, quem encomendou alguma coisa pela internet, quem andou a ler artigos sobre o fabrico de explosivos – é uma espécie de controlo social através de ferramentas de IA.
Foi um dos 56 cientistas e académicos que apelaram, em abril, ao boicote a uma universidade sul-coreana, devido ao envolvimento num projeto para desenvolver robôs de guerra autónomos. Há um risco demasiado elevado de haver um engano nos algoritmos ou até de serem criados algoritmos com as piores intenções? Ainda não há técnicas de informática que certifiquem as propriedades morais das máquinas. Estamos muito atrasados na criação de um software de segurança, com padrões internacionais, que também as protejam, por exemplo, de ataques de hackers. E enquanto uma bomba atómica exige tecnologia muito complicada, já os drones estão ao alcance de todos. Hão de aparecer robôs para roubar e matar, ou um drone que entra por uma janela com um explosivo sem ninguém saber quem o enviou. É muito difícil ter a certeza de que as máquinas não fazem nada de errado, e aí entramos no campo da moral.
Tem sido esse o centro das suas investigações. Porque diz que estamos muito atrasados na introdução de uma moral nas máquinas? Sabemos pouco sobre a nossa moral, e as teorias não se entendem quanto a esta questão. Temos várias religiões no mundo e, entre os seus pares, são todos muitos bonzinhos, mas com os outros já não o são. Porque a moral evoluiu para se criar coesão dentro de determinado grupo, e a Humanidade encontra-se nesta encruzilhada em que ainda não foi capaz de se ver como um único grupo, à escala planetária.
Não existindo uma moral universal, como se poderão minimizar as divergências para impor alguma ordem na autonomia crescente dos robôs? Não podemos esperar que eles tenham logo uma moral completa que se aplique a todos os casos. Podemos criar uma base moral, com um conjunto de regras gerais, e depois o informático configura o programa de acordo com as regras morais específicas de cada cultura. E também tem de haver a possibilidade de o robô ir revendo a sua moral à medida que as situações se desenrolam. Mas estamos longe de poder produzir esse software (...).
(...)
Alinha com a tese de que as máquinas nos vão roubar empregos e criar maior desigualdade social entre pobres e ricos? É inevitável. O próprio trilho da nossa espécie diz-nos que há sempre uns que beneficiam mais do que outros. E com a amplificação tecnológica, os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Acredito que vamos evoluir para uma sociedade de castas, no sentido em que teremos acima de todos os donos dos robôs, depois os administradores das máquinas, a seguir os seus executivos e, por fim, os explorados. Para uns criarem riqueza vão ter de explorar outros. Isso vai gerar revoltas, e os robôs serão usados para proteger as castas mais elevadas e dominar a população.
Como nos filmes de ficção científica? Nós já estamos bastante robotizados nas nossas vidas de consumo permanente. As crianças estão tão habituadas ao smartphone que nem sabem lidar com as outras. As pessoas são transformadas em meros objetos de consumo e serão ainda mais mal pagas. Como o software vai ser cada vez mais cognitivo, as máquinas e os robôs vão substituindo os humanos com uma perversidade que é como se estivéssemos a marcar golo na própria baliza. Há centenas de milhares de pessoas a ganhar dinheiro no ensino das máquinas. Estão a trabalhar para ficarem sem emprego.
Já não vamos a tempo de virar o jogo a nosso favor? Vamos caminhar para uma uberização de todas as profissões. Está um arquiteto numa uber de arquitetos e recebe uma chamada a solicitar os seus serviços durante três horas, para verificar se uma planta está conforme os regulamentos. “Está livre?” “Sim, estou, vou a caminho.” Vai ser assim.
Olha o futuro com preocupação? É uma questão ideológica. A Humanidade cria instrumentos que permitem aproveitar recursos da Natureza. Pergunta-se: quem beneficia com isso? Porque há de ser o grande beneficiado o presidente da empresa tal, que a criou com vários contributos da sociedade envolvente, a começar nas universidades? Como a sociedade está cada vez mais globalizada, deve ser o todo a beneficiar da riqueza que produz. Tem de haver uma distribuição muito maior, mas o que se vê é que o hiato está a aumentar e não a diminuir. Em vez de ser posta ao serviço de todos, a IA vai agravar esse problema de uma maneira muito aguda. A máquina é mais barata do que o humano para executar as mesmas tarefas. Cada vez mais, as pessoas vão viver num limiar de sobrevivência e a consumir coisas que não lhes interessam para nada. Seremos como aquelas quintas de galinhas e porcos em que os animais vivem todos ao molho, só a produzir riqueza para outros.
É um cenário catastrófico. Por isso é que ninguém fala dele. É completamente tabu. Tenho 70 anos e a mim este cenário já não me vai afetar, mas acho que não está muito distante.
É para o século XXI? É certamente para o século XXI.

4 comentários:

marina disse...

enquanto não introduzirem globalmente um rendimento máximo permitido não sairemos da cepa torta. que mundo mais deprimente a ciência construiu.

boas festas. gostei muito deste post, obrigada.

Carlos Ricardo Soares disse...

É cada vez mais óbvio que as pessoas são cada vez mais livres de serem e de fazerem o que lhes aprouver dentro dos limites que lhes são permitidos.
Os limites à liberdade dos indivíduos e dos grupos são a grande preocupação de toda a gente. Assim sendo, quem está no domínio dos meios de controlo dessa liberdade é quem poderá beneficiar mais, mas os seres humanos não são carneiros, por mais que queiram fazê-los ser. E aqui tudo muda de figura.
Vai haver luta pelo controlo da liberdade, como já, em grande parte, acontece.
Os que, hoje, detêm esse controlo têm cada vez menos tempo para se dedicarem a outra coisa, ou seja, têm cada vez menos liberdade.
O ciclo vicioso acentuar-se-á com a introdução das máquinas. A vantagem do controlo da liberdade deixa de existir a partir do momento em que essa liberdade, ou não existe, ou é de tal ordem que não precisa de ser controlada.
Do mesmo modo que a ignorância continua a ser o capital mais valioso nas economias de exploração de humanos, a liberdade será o capital mais precioso nas economias de exploração de IA.
Mas não haverá um problema de exploração humana por parte da IA?
A IA não precisará de explorar os humanos, porque a IA não precisa de explorar.
O próprio conceito de Inteligência exclui qualquer necessidade de exploração de humanos. A exploração de humanos não é Inteligente.
Que venha, quanto antes, a Inteligência que falta.

Anónimo disse...

A Inteligência e a Bondade não são a mesma coisa!
Veja o caso do Professor Gavião, o génio do mal das histórias em quadradinhos da Walt Disney. Essa ave de rapina não tem nada de burro bondoso.
Quer dizer, se acreditamos que as máquinas inteligentes só podem ser melhores do que nós, humanos, fomos uns para os outros, ao longo de toda a história, somos muito burrinhos!

marina disse...

dizer que somos cada vez mais livres numa sociedade cheia de leis, regulamentos e proibições , que nos amputaram a liberdade de acção, é de marciano, só pode.

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