segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Anticientismo - Uma entrada do "Dicionário dos Antis"


Uma das minha entradas no "Dicionário dos Antis" (IMPRENSA NACIONAL):


O cientismo ou cientificismo é uma doutrina filosófica que teve origem em França no séc. xix (o termo original é scientisme), que defende o primado, para não dizer mesmo a exclusividade, da ciência empírica na aquisição de conhecimento. Segundo os seus adeptos, nada mais interessa ao entendimento que o ser humano faz do mundo do que as descrições fornecidas pela ciência dos fenómenos naturais. Nos alvores do séc. XXI, sem prejuízo do reconhecimento do papel relevante e, em alguns casos, único da ciência na descoberta do mundo, o cientismo é considerado uma visão dogmática e ultrapassada.


A ascensão da ciência deu-se no séc. xvii com a Revolução Científica, cujos nomes cimeiros foram o italiano Galileu Galilei e o inglês Isaac Newton, na física, e o inglês William Harvey, na medicina. No século das luzes, a ciência triunfou ao conseguir descrever o funcionamento do Universo por meio de leis universais: de facto, com a teoria de Newton conseguia-se ao mesmo tempo descrever os movimentos dos astros e dos objetos em queda na superfície da Terra. Apesar de Newton ter sido claramente um teísta, foi um seu seguidor, o matemático e astrónomo francês Pierre-Simon de Laplace, que,  no séc. xviii, veio a dispensar a hipótese de Deus no seu Tratado de Mecânica Celeste, o que significava que a ciência bastava para a explicação dos fenómenos naturais (sobre a origem do mundo, Laplace e o seu contemporâneo Emmanuel Kant conjeturaram, de forma independente, sobre a origem natural do sistema solar, afastando para mais longe a eventual intervenção divina). Deus não ficou completamente excluído da descrição e explicação do cosmo, mas tornou-se bem nítida a separação entre a área do mundo material, onde a numerosa e variada fenomenologia pode ser explicada pelos métodos da ciência, e a área do espírito.

Apesar da reação romântica, a ciência continuou o seu trajeto ascensional ao longo do séc. xix não só na física, com o desenvolvimento da termodinâmica e do electromagnetismo, mas também na química, separada da alquimia pelos trabalhos do francês Antoine-Laurent Lavoisier, ainda antes de o séc. xviii terminar, na biologia, com a Teoria da Evolução do naturalista inglês Charles Darwin, que integrou a espécie humana na gigantesca árvore da vida, e na geologia, com o reconhecimento de uma história lenta da Terra divulgada na obra do geólogo inglês Charles Lyell, substituindo a ideia de uma criação rápida, como o Génesis narra. Na medicina, triunfou no mesmo século o raciocínio hipotético-dedutivo graças ao médico francês Claude Bernard. Todos os ramos do conhecimento passaram, pois, a adotar o método científico, fundado na observação, na prática experimental e no raciocínio lógico-matemático. Por outro lado, a Revolução Industrial, iniciada com a invenção da máquina a vapor pelo escocês James Watt no séc. xviii, expandia-se rapidamente não só na Grã-Bretanha como na Europa do Norte, levando a economia a um caminho de crescimento extremamente rápido. Não admira que na filosofia se tenham afirmado as ideias inspiradas pela ciência conhecidas por positivismo, devidas principalmente ao sociólogo francês Auguste Comte. Algumas dessas ideias de inspiração científica chegaram à política, e procurou-se passar para a sociedade noções como a do evolucionismo, que tão boas provas tinham dado na biologia. A evolução era entendida como um movimento no sentido do progresso, uma noção que foi enfatizada pelo biólogo, sociólogo e filósofo inglês Herbert Spencer. E o progresso era desejável no governo dos povos.


Em Portugal, tal como no mundo ocidental em geral, foram grandes as expectativas no progresso da ciência, alicerçadas nos progressos da investigação científica e suas aplicações, e, por extensão, no progresso da sociedade. A ciência não se desenvolveu, porém, entre nós com o mesmo ritmo que no estrangeiro; chegou com o atraso provocado pela distância que vai do centro para a periferia, embora essa distância começasse a ser vencida por meios tecnológicos como o caminho de ferro e o telégrafo. A Revolução Industrial chegou a Portugal bastante tarde e, quando chegada, não conheceu aqui as proporções atingidas noutros países do Norte da Europa e da América do Norte. De qualquer modo, a criação de escolas politécnicas em Lisboa e da Academia Politécnica no Porto, em 1837, assim como, no mesmo ano, das escolas médico-cirúrgicas nas referidas cidades, reflete, nos tempos que se seguiram à Revolução Liberal de 1820, a vontade de uma melhor adaptação do ensino superior à sociedade em rápido desenvolvimento. A escola do Porto, em particular, soube cultivar uma boa relação com a Associação Industrial Portuense que, fundada em 1849  por um seu professor, o Eng. José Vitorino Damásio (que desenvolveu entre nós a rede do telégrafo eléctrico), e por um grupo de homens de negócios da região, deu depois lugar à Associação Empresarial de Portugal. . Já antes, em 1837, tinha sido fundada em Lisboa a Associação Industrial Portuguesa.

            A defesa do cientismo foi crescendo em Portugal ao longo do séc. xix, à medida que a visibilidade da ciência avançava na sociedade. O cientismo está ligado de perto ao positivismo, ao naturalismo e ao materialismo. O positivismo terá entrado no nosso país através dos professores de matemática de Escola Politécnica do Porto e de Lisboa. O principal defensor do positivismo foi, porém, um homem de letras, Teófilo Braga, formado em Direito em Coimbra mas mais tarde professor do Curso Superior de Letras de Lisboa, que, em 1878, fundou e dirigiu, com o médico Júlio de Matos, a revista O Positivismo. Foi membro do partido republicano e presidiu ao governo provisório que adveio logo após a Revolução de 5 de outubro de 1910, tendo em 1915 chegado, ainda que por pouco tempo, a Presidente da República. A ideia republicana desenvolveu-se em Portugal ao longo da segunda metade do séc. xix, muito assente em ideias científicas e ideias filosóficas baseadas na ciência.


Nomes grandes simultaneamente do movimento republicano e das ideologias positivista e naturalista foram dois médicos da área da psiquiatria: Miguel Bombarda, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, e o já referido Júlio de Matos, da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, embora depois se tenha transferido para Lisboa. O primeiro protagonizou uma famosa polémica com o padre jesuíta Manuel Fernandes Santana, que reflete bem o laicismo republicano. O confronto, que ficou conhecido como polémica entre ciência e religião, iniciou-se em 1897 com uma conferência de Bombarda, e continuou com um comentário do Jesuíta intitulado Evisceração da Consciência e Livre Arbítrio do Sr. Dr. Miguel Bombarda; após a publicação de Consciência e Livre Arbítrio, de Bombarda (1898), o sacerdote replicou com Materialismo em Face da Ciência (1899) e Curso de Religião: Apologetica, vol. i, Bases Científicas da Religião (1900). A polémica só terminou após a morte de Santana, quando Bombarda publicou A Ciência e o Jesuitismo – Réplica a um Padre Sábio (1900). Este confronto, que se revestiu amiúde de alguma agressividade (principalmente por parte de Bombarda), impregnou o cientismo português de um forte tom anticlerical (m;Anticlericalismo). Assinale-se que o interesse dos Jesuítas por temas científicos cresceu logo no início do séc. xx, o que se manifestou pela criação do Colégio de S. Fiel, em Castelo Branco, em 1902, e pela fundação da revista Brotéria – Revista de Sciencias Naturaes, que continuava a publicar-se no começo do séc. xxi, embora com um teor mais cultural do que científico.
Mas houve outras reações contra o cientismo além das que vieram do lado da Igreja. Deve destacar-se o pensamento de Antero de Quental, o poeta e filósofo da Geração de 70 que, embora reconhecendo os méritos da ciência e admirando os progressos que ela conseguia, reconhecia a necessidade de uma exigência espiritual. Em Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890), Quental escrevia: “Esta concepção de Universo, resultado da elaboração científica de quatro séculos, aparece-nos como alguma coisa simples e grandiosa e, ao mesmo tempo, tenebrosa e desolada. É imensa e todavia falta-nos o ar. É que esta conceção não é um produto harmónico de todas as faculdades do espírito humano, mas somente o produto especial de algumas de certas [...]. Desta sua atitude em face da realidade resulta um ponto de vista limitado, o que quer dizer incompleto. É a experiência no seu máximo de organização, mas é sempre a experiência. A base do seu edifício é estreita: generaliza impressões e delas tira inferências, mas os resultados mais elaborados deste processo lá trazem sempre o cunho da origem, que é sensual”.


Semelhante rejeição do cientismo, sem ser acompanhada de inteira rejeição da ciência, ocorreu com o filósofo Sampaio Bruno, contemporâneo de Antero, segundo o qual a ciência não é antagónica do espírito, podendo ajudar na procura da verdade, mas está decididamente longe de satisfazer aos maiores desejos humanos. Estas ideias antimaterialistas (m;Antimaterialismo) e antipositivistas (m;Antipositivismo) renasceram na Primeira República, em 1912, com a chamada Renascença Portuguesa, um movimento filosófico-literário de pendor nacionalista e até sebastianista que integrou, entre outros, o poeta Teixeira de Pascoais, diretor da revista Águia, publicada no Porto, e o filósofo Leonardo Coimbra, que tentou conciliar de um modo bastante original ciência e espiritualidade na sua obra O Criacionismo (1912), tese do seu concurso para professor universitário, para a qual não obteve aprovação. Surgiram depois os seguidores do neopositivismo, inspirados pelo Círculo de Viena, criado nos anos 20, mas, como num novo balanço do pêndulo, logo irrompeu entre nós, em 1943, o movimento chamado da Filosofia Portuguesa, animado por Álvaro Ribeiro (o autor de O Problema da Filosofia Portuguesa, publicado nesse mesmo ano), José Marinho e António Quadros, com um claro pendor antipositivista, na esteira das ideias de Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra. Aos valores da universalidade proporcionados pela ciência e pela modernidade, obtida com a ajuda da técnica, estes pensadores opunham outros valores: o nacionalismo e a tradição.


Ainda no quadro da filosofia, deve acrescentar-se que ideias pós-modernas como as que foram apresentadas pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos seus livros O Discurso sobre a Ciências (1987) e Introdução a uma Ciência Pós-Moderna (1989) constituem uma forte crítica à ciência moderna.


Do ponto de vista político, se a Primeira República se afirmou favorável à ciência, já o mesmo não se poderá dizer do Estado Novo, o regime que vigorou entre 1933 e 1974, sob a forte liderança, primeiro e na maior parte do tempo, de António de Oliveira Salazar e, depois, de Marcello Caetano. Só assim se poderão compreender as purgas que atingiram um grande número de cientistas portugueses antes e depois da Segunda Guerra Mundial, respetivamente em 1935 (Abel Salazar e Aurélio Quintanilha) e 1947 (Mário Silva e Ruy Luís Gomes, entre vários outros). Salazar, o professor de direito da Universidade de Coimbra que começou a sua carreira governativa em 1926 como ministro das Finanças, almejava um país rural, projetado em ideais históricos, como se viu em 1943, nas Comemorações do Duplo Centenário da Nacionalidade (fundação e restauração). Já Marcello Caetano, o professor de direito da Universidade de Lisboa e político que lhe sucedeu em 1968 na Presidência do Conselho de Ministros, reconhecia relevância à investigação científica, mas mais nas colónias e não tanto na metrópole. Escrevia ele nos anos 50, após ter ocupado o cargo de ministro das Colónias: “No Ministério da Educação Nacional, a investigação científica pode, na ordem das preocupações, ocupar o quarto, o quinto, o sexto lugar; no Ministério das Colónias trata-se de uma preocupação de primeiro plano”. Por sua vez, Alberto Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, afirmou em 1969: “Buscou-se na ciência e na técnica a resposta aos anseios insofridos. A ciência e a técnica, todavia, são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos”.


            Com a Revolução de 25 de abril de 1974, e mais ainda com a integração de Portugal na União Europeia em 1986, o anticientismo de cariz político desvaneceu-se. Quanto ao anticientismo de cariz religioso, já há muito tempo se havia desvanecido. No começo do séc. xxi, não era difícil reconhecer que o cientismo deixara de fazer sentido e que a ciência é uma dimensão do ser humano, tal como a política e a religião. E essas dimensões podem comprovadamente coexistir, influenciando-se mutuamente, mas sem ingerências nem preponderâncias despropositadas.


Bibliog.: BERNARDO, Luís Miguel, Cultura Científica em Portugal. Uma Perspectiva Histórica, Porto, Universidade do Porto Editorial, 2013; CATROGA, Fernando, O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 2.ª ed., 2 vols., Lisboa, Editorial Notícias, 2001; Id.,Cientismo Político” e “Anticlericalismo”, in MATTOSO, José, História de Portugal, vol. V, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 583-593; QUENTAL, Antero de, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, in QUENTAL, Antero de Obras Completas. Filosofia, org., introd. e notas Joel Serrão, Universidade dos Açores - Editorial Comunicação, 1991.


Carlos Fiolhais


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