Uma das minha entradas no "Dicionário dos Antis" (IMPRENSA NACIONAL):
O cientismo ou cientificismo é uma doutrina filosófica que teve origem em França
no séc. xix (o termo original é scientisme), que defende o primado, para
não dizer mesmo a exclusividade, da ciência empírica na aquisição de
conhecimento. Segundo os seus adeptos, nada mais interessa ao entendimento que
o ser humano faz do mundo do que as descrições fornecidas pela ciência dos
fenómenos naturais. Nos alvores do séc. XXI,
sem prejuízo do reconhecimento do papel relevante e, em alguns casos, único da
ciência na descoberta do mundo, o cientismo é considerado uma visão dogmática e
ultrapassada.
A ascensão da ciência deu-se no séc. xvii com a Revolução Científica, cujos
nomes cimeiros foram o italiano Galileu Galilei e o inglês Isaac Newton, na física,
e o inglês William Harvey, na medicina. No século das luzes, a ciência triunfou
ao conseguir descrever o funcionamento do Universo por meio de leis universais:
de facto, com a teoria de Newton conseguia-se ao mesmo tempo descrever os movimentos
dos astros e dos objetos em queda na superfície da Terra. Apesar de Newton ter
sido claramente um teísta, foi um seu seguidor, o matemático e astrónomo
francês Pierre-Simon de Laplace, que, no
séc. xviii, veio a
dispensar a hipótese de Deus no seu Tratado
de Mecânica Celeste, o que significava que a ciência bastava para a
explicação dos fenómenos naturais (sobre a origem do mundo, Laplace e o seu contemporâneo
Emmanuel Kant conjeturaram, de forma independente, sobre a origem natural do
sistema solar, afastando para mais longe a eventual intervenção divina). Deus
não ficou completamente excluído da descrição e explicação do cosmo, mas
tornou-se bem nítida a separação entre a área do mundo material, onde a
numerosa e variada fenomenologia pode ser explicada pelos métodos da ciência, e
a área do espírito.
Apesar da reação romântica, a ciência continuou o seu trajeto ascensional
ao longo do séc. xix não só na física, com o desenvolvimento da termodinâmica e do
electromagnetismo, mas também na química, separada da alquimia pelos trabalhos
do francês Antoine-Laurent Lavoisier, ainda antes de o séc. xviii terminar, na biologia, com a Teoria
da Evolução do naturalista inglês Charles Darwin, que integrou a espécie humana
na gigantesca árvore da vida, e na geologia, com o reconhecimento de uma
história lenta da Terra divulgada na obra do geólogo inglês Charles Lyell,
substituindo a ideia de uma criação rápida, como o Génesis narra. Na
medicina, triunfou no mesmo século o raciocínio hipotético-dedutivo graças ao
médico francês Claude Bernard. Todos os ramos do conhecimento passaram, pois, a
adotar o método científico, fundado na observação, na prática experimental e no
raciocínio lógico-matemático. Por outro lado, a Revolução Industrial, iniciada
com a invenção da máquina a vapor pelo escocês James Watt no séc. xviii, expandia-se
rapidamente não só na Grã-Bretanha como na Europa do Norte, levando a economia
a um caminho de crescimento extremamente rápido. Não admira que na filosofia se
tenham afirmado as ideias inspiradas pela ciência conhecidas por positivismo,
devidas principalmente ao sociólogo francês Auguste Comte. Algumas dessas
ideias de inspiração científica chegaram à política, e procurou-se passar para
a sociedade noções como a do evolucionismo, que tão boas provas tinham dado na
biologia. A evolução era entendida como um movimento no sentido do progresso,
uma noção que foi enfatizada pelo biólogo, sociólogo e filósofo inglês Herbert
Spencer. E o progresso era desejável no governo dos povos.
Em Portugal, tal como no mundo ocidental em geral, foram grandes as
expectativas no progresso da ciência, alicerçadas nos progressos da
investigação científica e suas aplicações, e, por extensão, no progresso da
sociedade. A ciência não se desenvolveu, porém, entre nós com o mesmo ritmo que
no estrangeiro; chegou com o atraso provocado pela distância que vai do centro
para a periferia, embora essa distância começasse a ser vencida por meios
tecnológicos como o caminho de ferro e o telégrafo. A Revolução Industrial
chegou a Portugal bastante tarde e, quando chegada, não conheceu aqui as
proporções atingidas noutros países do Norte da Europa e da América do Norte. De
qualquer modo, a criação de escolas politécnicas em Lisboa e da Academia
Politécnica no Porto, em 1837, assim como, no mesmo ano, das escolas médico-cirúrgicas
nas referidas cidades, reflete, nos tempos que se seguiram à Revolução Liberal
de 1820, a vontade de uma melhor adaptação do ensino superior à sociedade em
rápido desenvolvimento. A escola do Porto, em particular, soube cultivar uma
boa relação com a Associação Industrial
Portuense que, fundada em 1849 por um seu professor, o Eng. José Vitorino Damásio (que desenvolveu entre nós a rede do telégrafo eléctrico), e por um grupo de homens
de negócios da região, deu depois lugar à Associação Empresarial de Portugal. . Já antes, em 1837, tinha sido fundada em
Lisboa a Associação
Industrial Portuguesa.
A
defesa do cientismo foi crescendo em Portugal ao longo do séc. xix, à medida que a
visibilidade da ciência avançava na sociedade. O cientismo está ligado de perto
ao positivismo, ao naturalismo e ao materialismo. O positivismo terá entrado no
nosso país através dos professores de matemática de Escola Politécnica do Porto
e de Lisboa. O principal defensor do positivismo foi, porém, um homem de
letras, Teófilo Braga, formado em Direito em Coimbra mas mais tarde professor
do Curso Superior de Letras de Lisboa, que, em 1878, fundou e dirigiu, com
o médico Júlio de Matos, a revista O Positivismo.
Foi membro do partido republicano e presidiu ao governo provisório que adveio
logo após a Revolução de 5 de outubro de 1910, tendo em 1915 chegado, ainda que
por pouco tempo, a Presidente da República. A ideia republicana desenvolveu-se em
Portugal ao longo da segunda metade do séc. xix,
muito assente em ideias científicas e ideias filosóficas baseadas na ciência.
Nomes grandes
simultaneamente do movimento republicano e das ideologias positivista e
naturalista foram dois médicos da área da psiquiatria: Miguel Bombarda,
professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, e o já referido Júlio de Matos,
da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, embora depois se tenha transferido para
Lisboa. O primeiro protagonizou uma famosa polémica com o padre jesuíta Manuel Fernandes Santana, que reflete bem o laicismo republicano. O confronto,
que ficou conhecido como polémica entre ciência e religião, iniciou-se
em 1897 com uma conferência de Bombarda, e continuou com um comentário do Jesuíta
intitulado Evisceração da
Consciência e Livre Arbítrio do Sr. Dr. Miguel Bombarda; após a
publicação de Consciência e Livre Arbítrio, de Bombarda (1898), o sacerdote
replicou com Materialismo em Face da Ciência (1899) e Curso de Religião: Apologetica, vol. i, Bases
Científicas da Religião (1900). A polémica só terminou após a morte de Santana, quando Bombarda publicou
A
Ciência e o Jesuitismo – Réplica a um Padre Sábio (1900). Este
confronto, que se revestiu amiúde de alguma agressividade (principalmente por
parte de Bombarda), impregnou o cientismo português de um forte tom anticlerical
(m;Anticlericalismo). Assinale-se
que o interesse dos Jesuítas por temas científicos cresceu logo no início do
séc. xx, o que se manifestou pela
criação do Colégio de S. Fiel,
em Castelo Branco, em 1902, e pela fundação da
revista Brotéria – Revista de Sciencias
Naturaes, que continuava a publicar-se
no começo do séc. xxi, embora com
um teor mais cultural do que científico.
Mas houve outras reações contra o cientismo além das que vieram do lado
da Igreja. Deve destacar-se o pensamento de Antero de Quental, o poeta e
filósofo da Geração de 70 que, embora reconhecendo os méritos da ciência e
admirando os progressos que ela conseguia, reconhecia a necessidade de uma
exigência espiritual. Em Tendências
Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890), Quental
escrevia: “Esta concepção de Universo, resultado da elaboração científica de
quatro séculos, aparece-nos como alguma coisa simples e grandiosa e, ao mesmo
tempo, tenebrosa e desolada. É imensa e todavia falta-nos o ar. É que esta
conceção não é um produto harmónico de todas as faculdades do espírito humano,
mas somente o produto especial de algumas de certas [...]. Desta sua atitude em
face da realidade resulta um ponto de vista limitado, o que quer dizer
incompleto. É a experiência no seu máximo de organização, mas é sempre a
experiência. A base do seu edifício é estreita: generaliza impressões e delas
tira inferências, mas os resultados mais elaborados deste processo lá trazem
sempre o cunho da origem, que é sensual”.
Semelhante rejeição do cientismo, sem ser acompanhada de inteira rejeição
da ciência, ocorreu com o filósofo Sampaio Bruno, contemporâneo de Antero, segundo
o qual a ciência não é antagónica do espírito, podendo ajudar na procura da
verdade, mas está decididamente longe de satisfazer aos maiores desejos
humanos. Estas ideias antimaterialistas (m;Antimaterialismo) e antipositivistas (m;Antipositivismo) renasceram na Primeira República, em 1912, com a chamada Renascença
Portuguesa, um movimento filosófico-literário de pendor nacionalista e até
sebastianista que integrou, entre outros, o poeta Teixeira de Pascoais, diretor
da revista Águia, publicada no Porto,
e o filósofo Leonardo Coimbra, que tentou conciliar de um modo bastante
original ciência e espiritualidade na sua obra O Criacionismo (1912), tese do seu concurso para professor
universitário, para a qual não obteve aprovação. Surgiram depois os seguidores
do neopositivismo, inspirados pelo Círculo de Viena, criado nos anos 20, mas,
como num novo balanço do pêndulo, logo irrompeu entre nós, em 1943, o movimento
chamado da Filosofia Portuguesa, animado por Álvaro Ribeiro (o autor de O Problema da Filosofia Portuguesa, publicado
nesse mesmo ano), José
Marinho e António Quadros, com um claro pendor antipositivista, na esteira das
ideias de Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra. Aos valores da universalidade
proporcionados pela ciência e pela modernidade, obtida com a ajuda da técnica,
estes pensadores opunham outros valores: o nacionalismo e a tradição.
Ainda no quadro da filosofia, deve acrescentar-se que ideias pós-modernas
como as que foram apresentadas pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos
seus livros O Discurso sobre a Ciências (1987)
e Introdução a uma Ciência Pós-Moderna
(1989) constituem uma forte crítica à ciência moderna.
Do ponto de vista político, se a Primeira República se afirmou favorável
à ciência, já o mesmo não se poderá dizer do Estado Novo, o regime que vigorou entre
1933 e 1974, sob a forte liderança, primeiro e na maior parte do tempo, de
António de Oliveira Salazar e, depois, de Marcello Caetano. Só assim se poderão
compreender as purgas que atingiram um grande número de cientistas portugueses
antes e depois da Segunda Guerra Mundial, respetivamente em 1935 (Abel Salazar
e Aurélio Quintanilha) e 1947 (Mário Silva e Ruy Luís Gomes, entre vários
outros). Salazar, o professor de direito da Universidade de Coimbra que começou
a sua carreira governativa em 1926 como ministro das Finanças, almejava um país
rural, projetado em ideais históricos, como se viu em 1943, nas Comemorações do
Duplo Centenário da Nacionalidade (fundação e restauração). Já Marcello
Caetano, o professor de direito da Universidade de Lisboa e político que lhe
sucedeu em 1968 na Presidência do Conselho de Ministros, reconhecia relevância
à investigação científica, mas mais nas colónias e não tanto na metrópole.
Escrevia ele nos anos 50, após ter ocupado o cargo de ministro das Colónias: “No Ministério da Educação
Nacional, a investigação científica pode, na ordem das preocupações, ocupar o
quarto, o quinto, o sexto lugar; no Ministério das Colónias trata-se de uma
preocupação de primeiro plano”. Por sua vez, Alberto Franco Nogueira, ministro
dos Negócios Estrangeiros de Salazar, afirmou em 1969: “Buscou-se na ciência e
na técnica a resposta aos anseios insofridos. A ciência e a técnica, todavia,
são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos”.
Com a Revolução
de 25 de abril de 1974, e mais ainda com a integração de Portugal na União
Europeia em 1986, o anticientismo de cariz político desvaneceu-se. Quanto ao
anticientismo de cariz religioso, já há muito tempo se havia desvanecido. No
começo do séc. xxi, não era
difícil reconhecer que o cientismo deixara de fazer sentido e que a ciência é
uma dimensão do ser humano, tal como a política e a religião. E essas dimensões
podem comprovadamente coexistir, influenciando-se mutuamente, mas sem ingerências
nem preponderâncias despropositadas.
Bibliog.: BERNARDO, Luís
Miguel, Cultura Científica em Portugal. Uma
Perspectiva Histórica, Porto, Universidade do Porto Editorial, 2013; CATROGA, Fernando, O
Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 2.ª ed., 2 vols., Lisboa, Editorial Notícias, 2001; Id., “Cientismo Político” e
“Anticlericalismo”, in MATTOSO, José, História
de Portugal, vol. V, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 583-593;
QUENTAL, Antero de, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda
Metade do Século XIX, in
QUENTAL, Antero de Obras Completas. Filosofia, org., introd.
e notas Joel Serrão, Universidade dos Açores - Editorial Comunicação, 1991.
Carlos Fiolhais
Sem comentários:
Enviar um comentário