quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

CIÊNCIA E LITERATURA: ENCONTROS E DESENCONTROS

Meu artigo no último numero da revista “Atlântida”, do Instituto Açoriano de Cultura:

.Contrariando a distância que muita gente crê existir entre ciência e literatura, são apresentados neste artigo vários exemplos de encontros entre a ciência e a literatura portuguesa, tanto em verso como em prosa, incluindo não só grandes nomes do cânone nacional como Luís de Camões, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa, mas também autores mais recentes como António Gedeão, Adília Lopes e Gonçalo M. Tavares. Incluem-se escritores açorianos como Antero de Quental e Vitorino Nemésio. O primeiro é, por exemplo, autor de um notável soneto intitulado “Evolução”, marcado pela visão darwinista, e o segundo de vários poemas, no livro “Limite de Idade”, claramente influenciados pela física e biologia modernas.

A ciência e literatura têm mais pontes entre si do que normalmente se crê. A literatura alimenta-se, por vezes, da ciência. Sem a ciência algumas das grandes páginas da literatura não teriam decerto sido possíveis. E, por outro lado, a ciência também não se dispensa de, por vezes, se alimentar da literatura. Como disse o biólogo Thomas Huxley: “Ciência e literatura não são duas coisas diferentes, mas dois lados da mesma coisa”.


 1. INTRODUÇÃO

 Faz neste ano de 2018 dois séculos que foi publicada uma obra-prima da literatura mundial, que fazia uma crítica forte à ciência, uma crítica tão forte que chegou até aos dias de hoje: a ciência podia criar monstros, isto é, criaturas terríveis que escapassem ao controlo do seu criador. Refiro-me a Frankenstein [1] da inglesa Mary Shelley (1797-1851), que foi mulher do escritor romântico Percy Shelley (1792-1822), autor do prefácio da obra publicada na primeira edição sob anonimato e que ostentava o sugestivo subtítulo “O Moderno Prometeu”. A obra é icónica do movimento do Romantismo, que teve lugar na primeira metade do século XIX, um movimento que se insurge contra a moderna ciência que, irrompendo com a Revolução Científica nos séculos XVI e XVII, conheceu um triunfo com o Iluminismo do século XVIII que não podia deixar de ter uma reacção. A ciência, que tinha crescido tanto, era afinal perigosa. Mais do que satisfação de curiosidade a ciência estava a dar aso a artefactos cuja utilização colocava por vezes questões éticas. Mesmo a omnipresença da ciência na satisfação da curiosidade humana a respeito da natureza parecia demasiada. O poeta inglês John Keats (1795-1821) escreveu em 1819 o poema “Lamia” [2], em que lamentava que a ciência estava a desfazer o arco-íris.Um excerto é o seguinte (tradução de João da Mata):

“Todos os encantos não se vão 
Ao mero toque da fria filosofia? 
Existia um maravilhoso arco-íris no firmamento:
 Conhecemos sua trama, a sua textura, aparece 
No frio catálogo das coisas comuns.
 A filosofia podará as asas de um Anjo,
 Decifrará os mistérios por instrumentos, 
Esvaziará o encanto do ar e o tesouro escondido – 
Desvendará o arco-íris.”

 Em Portugal, o movimento romântico chegou relativamente tarde, como tarde chegaram outros movimentos de renovação intelectual, artística, social e política. Apesar de os Portugueses terem sido percursores da Revolução Científica, com os Descobrimentos, e de terem tido um claro papel na sua transferência do Ocidente para o Oriente, circunstâncias várias, designadamente de ordem religiosa e política, impediram que as ideias de Galileu, Descartes e Newton (a “nova ciência”) florescessem em solo nacional. Mas encontramos eco do movimento anti-científico nas palavras de João de Almeida Garrett (1799-1854), um dos expoentes do nosso romantismo, que nas Viagens na Minha Terra (1846) [3] escreve:

“A ciência deste século é uma grandessíssima tola. E como tal, presunçosa e cheia do orgulho dos néscios.”

No entanto, esses desencontros com a ciência, internacionais e nacionais, tão visíveis em certos autores e obras literárias mesmo na actualidade (basta lembrar, por exemplo, a invectiva de José Saramago contra a viagem a Marte no discurso de atribuição do Nobel que proferiu em Estocolmo: “Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante” [4]), deixaram de ter a mesma frequência e força. De resto, no século XIX, a ciência continuou a crescer de modo imparável. Bem podia lamentar-se o romântico Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) de não conseguir descrever as plantas e as nuvens (ver, por exemplo, [5] e [6]), apesar das suas porfiadas tentativas, mas o certo é que a ciência e a literatura foram aparecendo mescladas em obras de literatura, que ou davam conta de avanços da ciência de uma forma admirada ou criticavam a ciência de uma forma muito mais suave. Podemos falar de encontros entre ciência e literatura, encontros que se têm revelado fecundos ao contribuir para a unidade da cultura.

 Pretendemos neste artigo apresentar uma antologia necessariamente breve de alguns desses encontros entre literatura e ciência portuguesa, incluindo prosa e poesia. Mais do que tentar fazer uma selecção crítica, queremos apresentar de uma forma sugestiva exemplos que, não ultrapassando as margens de um curto ensaio, dêem uma ideia da riqueza com que a literatura portuguesa fez e faz o acompanhamento da ciência.

Vivemos num tempo em que traços profundos de paralelismo entre ciência e literatura têm sido apontados. Ambas são manifestações da criatividade humana. Essa criatividade manifesta-se no facto de o homem tentar unir, por um processo mental, aquilo que parece estar separado. Uma metáfora é precisamente isto, assim como, num outro nível, uma analogia científica e, de um modo mais evidente, uma lei física.

Escreveu o matemático e ensaísta Jacob Bronowski (1908-1974) em A Responsabilidade do Cientista e outros Escritos (1992) [7]:

“As descobertas da ciência, os trabalhos de arte, são explorações – ou antes, são explosões de uma semelhança oculta. O investigador científico ou o artista apresentam neles dois aspectos da natureza e funde-os num só. É o acto da criação que nasce um pensamento original, e o acto é o mesmo na ciência ou nas artes.”

Curiosamente, já um autor português, o matemático tal como Bronowski António Lobo Vilela (1902-1966), tinha escrito em 1955, no seu livro Ciência e Poesia [8]:

“Radicou-se há muito no meu espírito a convicção de que entre sábios e poetas existem íntimas afinidades, contrariamente a uma opinião muito vulgarizada.”

E forneceu, entre outros exemplos, uma frase de um autor português do século XIX, Guerra Junqueiro (1850-1923), já da fase pós-romântica que ficou conhecida por realismo (prefácio de A Morte de D. João, 2.ª ed., 1887, [10]):

“A poesia é a verdade transformada em sentimento. A lei descoberta por Newton tanto pode ser explicada num livro de física, como cantada num livro de versos. O sábio analisa-a, demonstra-a, e o poeta, partindo dessa demonstração, tira dos factos todas as consequências morais, sociais e religiosas, traduzindo-as numa forma sentimental. A ciência, neste caso, dá o convencimento, a certeza; a poesia dá a emoção, o entusiasmo.”

É verdadeiramente notável que Lobo Vilela tivesse escrito o seu livro pouco antes da famosa conferência Rede sobre As Duas Culturas [9], que teve lugar em 1959, do romancista e físico-químico inglês Charles P. Snow (1905-1980), uma obra emblemática e também polémica sobre a separação entre a cultura literária e a cultura científica.

2. ENCONTROS ENTRE CIÊNCIA E LITERATURA AO LONGO DA HISTÒRIA

 Que a língua portuguesa sempre acompanhou os desenvolvimentos do saber é provado, à exaustão, pela publicação em curso de Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa [11]. Uma delas é pioneira por, embora tenha sido escrita em português num tempo em que a ciência era escrita em latim, ter revelado ao mundo as virtudes medicinais de algumas plantas orientais: Garcia de Orta (c. 1501-1568), Colóquio dos Simples (1563) [12]. Esse livro é bem conhecido e não podia deixar de ser considerado uma obra pioneira da cultura portuguesa. Mas menos conhecido é o facto de o nosso maior poeta, Luís de Camões (c. 1524-c. 1580), que na Índia foi contemporâneo e amigo de Orta, ter escrito, numa introdução poética ao livro, os seus primeiros versos impressos (ortografia actualizada):

AO CONDE DO REDONDO, 
VICE-REI DA ÍNDIA 

(…) “Favorecei a antiga 
Ciência que já Aquiles estimou; 
Olhai que vos obriga, 
Verdes que em vosso tempo se mostrou 
O fruto daquela Orta onde florescem
 Plantas novas, que os doutos não conhecem. 

Olhai que em vossos anos 
Produz uma Orta insigne várias ervas 
Nos campos lusitanos, 
As quais, aquelas doutas protervas 
Medeia e Circe nunca conheceram, 
Posto que as leis da Mágica excederam (…)”

Os Lusíadas [13] foram publicados pouco depois (em 1572) e neles Camões mostra amplos conhecimentos de astronomia e botânica: Acima de tudo, é valorizada a experiência que os marinheiros tinham no seu trabalho a bordo, o saber empírico que contrastava com o saber livresco, imperante até então:

EXCERTO DO CANTO V 

Os casos vi, que os rudos marinheiros,
 Que têm por mestra a longa experiência, 
Contam por certos sempre e verdadeiros,
 Julgando as cousas só pola aparência, 
E que os que têm juízos mais inteiros, 
Que só por puro engenho e por ciência 
Vêm do mundo os segredos escondidos, 
Julgam por falsos ou mal entendidos.” 

Passando por cima do período romântico, damos um salto até à literatura realista ou naturalista que caracterizou a nossa segunda metade do século XIX, em particular após a brilhante geração de 70: o expoente dessa geração foi Antero de Quental (1842-1891), natural de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, nos Açores. Quental escreveu em 1882 um soneto intitulado “Evolução”, no qual, após apontar que o homem é o resultado da História Natural, num processo que envolve longas e profundas transformações geológicas e biológicas e no qual se misturam o acaso e a necessidade, acentua que o futuro permanece em aberto, como uma possibilidade de realização do homem, ao exercer a sua liberdade (Sonetos Completos [14]):

EVOLUÇÃO

 “Fui rocha em tempo, e fui, no mundo antigo, 
tronco ou ramo na incógnita floresta… 
Onda, espumei, quebrando-me na aresta 
Do granito, antiquíssimo inimigo…

 Rugi, fera talvez, buscando abrigo 
Na caverna que ensombra urze e giesta; 
Ou, monstro primitivo, ergui a testa 
No limoso paul, glauco pascigo… 

Hoje sou homem - e na sombra enorme 
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, 
Que desce, em espirais, da imensidade…

 Interrogo o infinito e às vezes choro… 
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro 
E aspiro unicamente à liberdade.” 

A polémica entre realismo e romantismo, patente na questão “Bom Senso e Bom Gosto” entre António Feliciano de Castilho (1800-1875) e Antero de Quental, que eclodiu no ano de 1865, está literariamente também patente na resposta que Quental dá, em forma poética, nesse mesmo ano, a João de Deus (1830-1876), que tinha sido autor de um poema no qual o Sol era metáfora de crença (“Luz da fé”). O Sol passava agora a ser razão em vez de crença (em Odes Modernas. Primaveras Românticas [15]):

LUZ DO SOL, LUZ DA RAZÃO 

“(…) Mas se a razão, surgindo, 
Nossa alma esclareceu, 
Também tu, sol, no espaço 
Surges, razão do céu… 

Por isso é que me alegras, 
Ó luz, o coração! 
Por isso vos estimo… 
Tu, sol, e tu, razão!” 

Eça de Queiroz (1845-1900), um pouco mais novo do que Quental e seu grande admirador, é o autor do romance Os Maias (1988) [16], no qual um dos personagens principais, João da Ega, que pode ser considerado o seu alter-ego, admira os progressos trazidos por Darwin à compreensão do mundo vivo (a teoria da evolução das espécies de Darwin é de 1859, ano de publicação de A Origem das Espécies [17]) e só nega Darwin quando está completamente embriagado:

“— Se vocês soubessem que corpo de mulher! — gritou ele de repente. — Oh! meninos, que corpo de mulher… imaginem vocês um peito… 

— Não queremos saber — disse Carlos. — Cala-te, tu estás bêbedo, miserável! 

Ega ergueu-se, retesando a perna, arrimado de lado à mesa. 

Bêbedo! Ele? Ora essa!… Era coisa que não podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possível, bebido tudo, até aguarrás. Nunca! Não podia… 

- Olha, vou pôr aquela garrafa à boca, tu verás… E fico frio, fico impassível. A discutir filosofia… Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta… Ora aí tens. Dá cá a garrafa.”

Eça de Queiroz foi cônsul em Newcastle e Bristol entre 1874 e 1878 e teve decerto conhecimento das polémicas em que a teoria de evolução esteve envolvida, e na qual Darwin se absteve de participar. No seu livro póstumo Cartas de Inglaterra (1905) [18] conta o ambiente na época, designadamente quando descreve a exposição de um gorila africano (o hipotético antepassado do homem) num parque em Londres, num texto de 1877:

“Darwin é, como sabem (é quase ridículo lembrá-lo), o grande filósofo e naturalista que primeiro estabeleceu a teoria da descendência do homem, e declarou-o nascido directamente do macaco. Parecia natural que Pongo, vendo pela primeira vez o sábio ilustre que lhe deu uma tão alta posição na criação, fazendo-o pai do género humano, lhe daria ao menos um shake-hands cordial. Pois não senhor! Detesta-o. Com uma ingratidão africana, apenas o avista, franze a testa, arreganha os dentes, fita-o e volta-lhe as costas. E todavia se há uma bela e doce fisionomia, é a de Darwin com a sua longa barba branca!” 

Já no século XX, o modernismo de Fernando Pessoa (1888- -1935) está bem patente na admiração estética da ciência que o seu heterónimo Álvaro de Campos, engenheiro naval nascido em Tavira, mostra num poema escrito c. 1915 [19, ortografia actualizada]:

“O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. 
O que há é pouca gente para dar por isso (…)”. 

Possivelmente esta comparação é uma paráfrase de outra que o italiano Filippo Marinetti (1876-1944), introdutor do futurismo, fez no seu “Manifesto Futurista” (1909) entre a Vitória de Samotrácia e um carro de corrida. O escritor Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), um amigo de Fernando Pessoa, que se costuma associar mais à poesia do que à prosa, mas que é também um prosador notável, escreveu um conto fantástico, ou talvez melhor de ficção científica, intitulado A Estranha Morte do Professor Antena [20], no qual se encontra um grande elogio da ciência:

 “Com efeito um grande sábio cria – imagina tanto ou mais do que o Artista. A Ciência é talvez a maior das artes – erguendo-se a mais sobrenatural, a mais irreal, a mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer arte é Prever. Eis pelo que Newton e Shakespeare, se se não excedem, se igualam.”

Já na segunda metade do século XX, outro açoriano, Vitorino Nemésio (1901-1978), este natural da Praia da Vitória, na ilha da Terceira, publicou em 1972, perto do final da sua vida, o livro Limite de Idade [21], dedicado ao seu amigo também açoriano Aurélio Quintanilha (1892-1987), biólogo ilustre que conheceu a desgraça do afastamento do país. Esse livro é um repositório de poemas que falam de vários ramos da ciência - a astronomia, a física, química, mas sobretudo a biologia, então em franca mudança após a descoberta da estrutura do ADN e os grandes desenvolvimentos da biologia molecular que vieram ajudar a compreender a doutrina de Darwin. Nemésio nasceu em 1901, o ano em que se deu o fenómeno astronó mico que ficou conhecido como “Grande Perturbação de Júpiter”, uma alteração da grande mancha de Júpiter. O fenó - meno é aqui misturado com referências pessoais e familiares num poema escrito em 1971:

JÚPITER 1901 

“Nasci no ano em que se descobriu a Grande Perturbação de Júpiter. 
Minha Mãe não deu por nada, meu Pai não era 
astrónomo, 
Mas houve lá em casa uma grande perturbação 
na água do banho, 
Que meu Pai, músico, acompanhava regulando encantado 
o seu metrónomo.
 E Júpiter, assim mimado, com pai por ele, saiu poeta, 
Com seus doze satélites, quatro deles principais: 
Serafina, Lourdes, Lídia, Isaura, 

A Primeira Grande Perturbação de Júpiter 
No ano em que nasci. 
Elas em roda da banheira, 
Meu Pai tocando flauta 
(Serpentes? no ninho em mim) 
E um céu de vapor de água, 
Difracção de satélites… 
Júpiter! Júpiter! 
Tu és o Toiro de fumo 
Que nunca terás Europa.” 

Um outro poema de Nemésio refere-se à química (curiosamente, a escrita da fórmula química da água está mal, com o 2 em sobreíndice em vez de subíndice, mas vai como saiu grafado no livro):

FRAGMENTO DE UM MADRIGAL EXTRAVIADO

 “… 
Deutério moderador 
(Para alguns água pesada) 
De teus dedos me dirija 
A reacção encadeada. 
Que eu só acelero por Amor 
Por morrer com Energia. 
Não chores mais, flor do isótopo, 
Que tudo isto é poesia 
E tempestade num copo 
De H2O bem comum: 
Sem número de massas nem Z antes,
 Que seu destino é nenhum.” 

Um dos mais extraordinários exemplos de simbiose entre ciência e poesia encontra-se Rómulo de Carvalho (1906- -1997) o professor de Física e Química que foi também poeta, sob o pseudónimo de António Gedeão. Eis dois dos seus poemas, que contrastam a pequeez do homem em comparação com a amplidão do mundo, mas também expressam com uma sensibilidade rara a metáfora do homem como espelho do mundo (os dois de Máquina de Fogo, 1961 [22]):

AMOSTRA SEM VALOR 

“Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
 Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível: 
com ele se entretém 
e se julga intangível. 

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
 sei que o Mundo é maior do que o bairro onde
 habito, 
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, 
não pesa num total que tende para infinito. 

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida 
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo, 
nesta insignificância, gratuita e desvalida, 
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.” 

MÁQUINA DO MUNDO

“O universo é feito essencialmente de coisa
 nenhuma. 
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. 
Espaço vazio, em suma. 
O resto, é a matéria. 
Daí, que este arrepio, 
este chamá-lo e tê-lo,
 erguê-lo e defrontá-lo,
 esta fresta de nada aberta no vazio,
 deve ser um intervalo.” 

O nosso único Prémio Nobel da Literatura José Saramago (1922-2010), embora não seja grande cultor de termas científicos, escreveu um notável poema sobre a luz onde a ciência entra luminosamente (In Poemas Possíveis, [23], 1985).

FÍSICA

“Colho esta luz solar à minha volta,
 No meu prisma a disperso e recomponho: 
Rumor de sete cores, silêncio branco.

 Como flechas disparadas do seu arco, 
Do violeta ao vermelho percorremos
 O inteiro espaço que aberto num suspiro 
Se remata convulso em grito rouco. 

 Depois todo o rumor se reconverte, 
Tornando as cores ao prisma que define, 
À luz solar de ti e ao silêncio.”

Na contemporaneidade, e considerando a partir de agora auto - res vivos, veja-se a óbvia presença da ciência, seja ela a física e a matemática, na poesia experimental do poeta ou engenheiro têxtil E. M. de Melo e Castro (nascido em 1932) (os dois poe - mas foram retirados da sua Antologia para Inici-Antes [24]):

PÊNDULO 



SONETO SOMA 14x 

 1 4 3 4 2
 2 3 3 0 6 
4 1 6 1 2 
3 2 2 1 6 

5 0 0 1 8
 2 1 2 5 4 
1 4 0 1 8
 3 2 4 1 4 

3 1 2 3 5 
5 4 1 2 2
 3 0 4 2 5 

4 3 3 1 3 
5 1 2 1 5
 8 9 3 5 3

Vale a pena ler o seguinte breve poema de inspiração astronómica do poeta e médico (com a especialidade de obstetrícia) Jorge Sousa Braga (n. 1957). O poema foi publicado original mente em De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu (1981), mas está contido na sua antologia O poeta nu [poesia reunida] [25]):

POEMA DE AMOR 

“Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno 
e quase ia morrendo com o receio de que não
 te coubesse no dedo.”

 Sousa Braga é também autor de outros poemas contendo intersecções com a ciência, como nos livros de poesia infantil (mas que são para todos) Herbário, de 1999 [26], e Pó de estrelas, de 2004 [27]), respectivamente sobre botânica e astronomia.

A poetisa Adília Lopes (n. 1960), pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, estudou Física na Universidade de Lisboa sem nunca ter concluído o curso. É uma voz singular na moderna poesia portuguesa, surgindo amiúde temas científicos na sua obra. Veja-se como aborda a questão da seta do tempo, manifesta na Segunda Lei da Termodinâmica, ou Lei do Não Decréscimo da Entropia (em sistemas isolados), no seguinte poema [28]:

MEMÓRIAS DAS INFÂNCIAS 

“Gostávamos muito de doce de framboesa 
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa 
do que era costume
 mas
 a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa 
para nosso bem
 porque estávamos doentes 
esconderam colheres do remédio 
que sabia mal 
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa 
e tinha fiapos brancos 
isso aconteceu-nos uma vez e chegou 
nunca mais demos pulos por ir haver
 doce de framboesa à sobremesa
 nunca mais demos pulos nenhuns 
não podemos dizer
 como o remédio da nossa infância sabia mal! 
como era doce o doce de framboesa da nossa 
infância! 
ao descobrir a mistura 
do doce de framboesa com o remédio 
ficámos calados 
depois ouvimos falar da entropia aprendemos que 
não se separa de graça
 o doce de framboesa do remédio misturados 
é assim nos livros
 é assim nas infâncias 
e os livros são como as infâncias 
que são como as pombinhas da Catrina
 uma é minha 
outra é tua
 outra é doutra pessoa.” 

De facto, na nossa vida, apesar de os seres humanos serem sistemas abertos, há sempre algo perdido quando se envelhece, tal como, num sistema isolado, o crescimento inexorável da entropia dá conta da evolução do passado para o futuro.

Finalmente, um prosador e poeta contemporâneo cuja obra está já amplamente traduzida no estrangeiro é o poeta Gonçalo M. Tavares (n. 1970), autor de alguns textos literários de clara inspiração filosófica, que escreveu um poema quase aforístico sobre o alegre optimismo dos cientistas, em Breves notas sobre a ciência [29], de 2006:

UMA HIPÓTESE 

“A alegria é um catalisador de uma experiência 
científica; a tristeza um inibidor. 
A tristeza encolhe; como pode um homem triste 
descobrir algo? 
Só quem é alegre arrisca. 
A tristeza é anticientífica.” 

3. CONCLUSÃO

 Ciência e literatura são partes do grande corpo da cultura humana [30-34]. Não há duas culturas, mas uma só. Tanto a arte como a ciência procuram decifrar mistérios do mundo e tanto uma como outra usam para isso a poderosa arma da imaginação. A ciência e literatura têm, portanto, mais pontes do que normalmente se crê. A literatura alimenta-se, por vezes, da ciência. Sem a ciência algumas das grandes páginas da literatura não teriam decerto sido possíveis (ver duas recentes antologias sobre poesia portuguesa relacionada com a ciência [35-36]). E, por outro lado, a ciência também por vezes se alimenta da literatura, como transparece da inspiração que alguns cientistas encontram em textos de ficção científica. Como disse o biólogo inglês Thomas Henry Huxley (1825-1895), um dos maiores responsáveis pelo espalhamento da fama de Darwin: “Ciência e literatura não são duas coisas diferentes, mas dois lados da mesma coisa” [37]. [

REFERÊNCIAS
s
[1] Mary Shelley (2015), Frankenstein, Porto: 1001 Mundos – Edições ASA. Original (1818): Frankenstein; or the Modern Prometheus, 3 vols., London: Lackington, Hughen, Harding, Mayor & Jones.
[2] John Keats, Lamia, in “O arco-íris de Keats”, http://www.substantivoplural.com.br/o-arco-irisde- keats/ (consultado em 15 de Agosto de 2018).
[3] Almeida Garrett (2013), Viagens na minha terra, Porto: Civilização. Original (1846): 2 vols., Lisboa, Typ. Gazeta dos Tribunais.
[4] José Saramago (1999), Discursos de Estocolmo, Lisboa: Caminho.
[5] Maria Filomena Molder (1995), O pensamento morfológico de Goethe, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
[6] Johann W. von Goethe (2012), O Jogo das Nuvens, Lisboa: Assírio e Alvim.
 [7] Jacob Bronowski (1992), A responsabilidade do cientista e outros escritos, introdução, organização, notas e tradução de Nunes dos Santos, Christopher Auretta e J. L. Câmara Leme, Lisboa: Dom Quixote.
[8] Charles P. Snow (1965), As Duas Culturas. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Nova ed.: (1996). Lisboa: Presença. Original (1963): The Two Cultures and a second look, Cambridge: Cambridge University Press.
[9] António Lobo Vilela (1955). Ciência e Poesia, Lisboa: Portugália, 2.ª ed. (2012): Lisboa: António da Costa Lobo Vilela.
 [10] Guerra Junqueiro (1887), A Morte de D. João, Lisboa: Livraria António Maria Pereira, 4.ª ed., “Prefácio da Segunda Edição,” p. 10.
 [11] José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais (coords.) (2017- ), Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, 30 vols., Lisboa: Círculo de Leitores.
[12] Garcia da Orta (2011), Colóquio dos Simples e Drogas da Índia, 2 vols., 3.ª ed., reproduzida em fac-simile da ed. de 1987, 2.ª ed. reproduzida em fac-símile da ed. de 1891 dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Original (1563): Goa: Ioannes de Endem.
[13] Luiz Vaz de Camões (2017), Os Lusíadas, in Obras Completas de Luiz Vaz de Camões, 1.º vol. Épica e Cartas, introdução e organização de Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa: E-primatur. Original (1572): Lisboa: António Gonçalves.
[14] Antero de Quental (2018), Poesia II. Sonetos Completos, edição crítica de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa: Abysmo. Original (1861): Sonetos de Anthero, Coimbra: Sténio.
[15] Antero de Quental (2016), Poesia I. Odes Modernas. Primaveras Românticas, edição crítica de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa: Abysmo. Original (1865): Odes Modernas, Coimbra: Imprensa da Universidade.
[16] Eça de Queiroz (2017), Os Maias, Lisboa: Livros do Brasil. Original (1888): Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chadron.
[17] Charles Darwin (2011), A Origem das Espécies, Lisboa: Verbo. Original (1859): The Origin of Species, London: John Murray.
 [18] Eça de Queiroz (s.d.), Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, fixação e notas de Helena Cidade Moura, Lisboa: Livros do Brasil Original (1905).
[19] Fernando Pessoa, in Jerónimo Pizarro e António Cardiello (eds.) (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos, Lisboa: Tinta da China. Original (1944): Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática.
20] Mário de Sá-Carneiro (2000), A estranha morte do professor Antena, Colares: Colares Editora. Original (1914).
[21] Vitorino Nemésio (1989), Limite de Idade, in Obras Completas. Vol. II – Poesia, prefácio, organização e fixação e texto de Fátima Freitas Morna, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda). Original (1972).
[22] António Gedeão (2004), Obra Completa, Lisboa: Relógio d’Água. Original (1961): Máquina de Fogo, Coimbra: Atlântida editora.
[23] José Saramago (1985), Poemas Possíveis, Lisboa: Caminho.
[24] E. M. de Melo e Castro (2003), Antologia para Inici-Antes, Vila Nova de Gaia: Ausência. [25] Adília Lopes (2009), O Decote da Dama de Espadas, in Dobra. Poesia Reunida 1983-2007, Lisboa: Assírio e Alvim. Original (1988): Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
[26] Jorge Sousa Braga (2007), De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu, in O poeta nu [poesia reunida], Original (1981): Coimbra: Fenda.
[27] Jorge Sousa Braga (2014), Herbário, Lisboa: Assírio e Alvim. [28] Jorge Sousa Braga (2014), Pó das estrelas, Lisboa: Assírio e Alvim.
[29] Gonçalo M. Tavares (2006), Breves notas sobre a ciência, Lisboa: Relógio d’Água.
[30] Carlos Fiolhais (1994). Universo, computadores e tudo o resto, Lisboa: Gradiva.
[31] Carlos Fiolhais (2008). “Imaginação, ciência e arte”, Biblos, n.º 4, 2.ª série, pp. 3-16.
 [32] Carlos Fiolhais (2013). “Einstein: entre a Ciência e Arte”, in J. Carvalho (coord.), Arte e Ciências em Diálogo, Coimbra: Grácio Editor, pp. 27-35.
[33] Carlos Fiolhais (2015). “Ciência e Humanismo. A visão da ciência de Erwin Schrödinger,” Biblos, n.º 1, 3.ª série, pp. 127-151.
[34] Carlos Fiolhais, “ ‘Estranhas mas irmãs’: revisitando a questão das duas culturas”, Revista Lusófona de Estudos Culturais, vol. 3, n.º 2, pp. 103-111. [35] Vasco Graça Moura e Maria Bochicchio (orgs.) (2011). O binómio de Newton e A Vénus de Milo. Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa, Lisboa: Alêtheia.
 [36] Rui Malhó (org.) (2014). O Bosão do João. 88 Poemas com ciência, Lisboa: By the Book.
[37] Thomas V. Huxley and Henrietta A. Huxley (eds.) (1908), Aphorisms and Reflections from the works of T. H. Huxley, London: Macmillan and Co. Lim.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

A literatura é uma arte, cujo limite é a imaginação e a inteligência e o conhecimento, o engenho, a loucura, de expressar por palavras o humano, o científico e o aberrante, o natural, a natureza, não apenas segundo os cânones científicos da ordem, de que seria, aliás, uma cópia ou reprodução, mas no que essa natureza, supostamente ou apenas por hipótese, "representa" para o escritor, ou este quer representar, porque sim.
Aqui, no escritor, no indivíduo, reside o factor chave, o interesse, o valor, a originalidade, a instauração de uma realidade, não de uma realidade científica da natureza física, mas de uma realidade humanamente significativa, o estado crítico (mais avançado?) da matéria.
A ciência é tão afim da literatura como outra coisa qualquer, como uma pedra ou o sol, ou um rio. A literatura é tão afim da ciência como a vontade ou o desejo de dar expressão a problemas e significados e respostas, ainda que não sejam soluções de nada. Muitas vezes as soluções vêm com a técnica. A literatura, não obstante, é a única forma de conhecimento de realidades sociais e humanas que a ciência sabe ou presume existirem, mas que não tem outra forma de conhecer. A literatura é e será um grande desafio à observação, compreensão e conhecimento das realidades sociais e humanas, tanto mais quanto mais sabemos que, enquanto o conhecimento da natureza é instrumental, o conhecimento das realidades sociais e humanas é incontornável e "existencial".
Se bem que ambas, ciência e literatura, tenham a aptidão para o conhecimento (e o conhecimento não é sempre conhecimento de realidades?) a literatura não se define nem tem como função ou objetivo ou estatuto conhecer seja o que for.
A literatura tem como objetivo ser conhecida, como outra coisa qualquer.
A relação entre a literatura e a ciência parece, assim, fácil de estabelecer.
A ciência, para a literatura é como outra coisa qualquer e vice-versa.

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