domingo, 23 de dezembro de 2018

A "novilíngua" para a educação da OCDE

Recebi de duas pessoas próximas a entrevista que o Director do Departamento de Educação e Competências da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) deu a Teresa Campos, jornalista da revista Visão e publicada no passado dia 16. Uma frase do entrevistado, Andreas Schleicher, foi usada como título: a escola tem de conseguir produzir humanos de primeira, não pode continuar a originar robôs de segunda.

Talvez seja a diferença da língua ou a tradução (o entrevistado é alemão, domina o inglês), talvez seja a diferença de perspectiva (o entrevistado é formado em Física, tendo-se especializado em Estatística) que não me deixa entender o sentido dessa frase, principalmente pelas seguintes razões:
1. A escola deve contribuir para educar (sem ter o exclusivo dessa infindável tarefa), não para "produzir". A ideia de "produzir" está associada a um certo tipo de pensamento político-pedagógico originado nos Estados Unidos da América e preponderante entre os anos de 1920 e 1960, designado por "processo-produto": o aluno "processado" pelo currículo transformar-se-ia no "produto" pretendido;
2. No centro da filosofia da educação está, na verdade, a discussão das finalidades a perseguir pela escola (não confundir com o "produzir") para benefício de todas as pessoas; no seu vocabulário não consta a estranha expressão "humanos de primeira". Havendo "humanos de primeira" admite-se a existência de "humanos de segunda ou de terceira"?
3. Mesmo que se use a expressão "robôs de segunda" de modo figurativo, ela é manifestamente exagerada e sobretudo muito injusta, pois sugere-se (ou mais do que isso) que as escolas e os seus professores têm "originado" esse pseudo-tipo de pessoas (?). Na verdade, são as/algumas escolas e os/alguns professores que, com o seu trabalho cada vez mais mal compreendido, superam as enormes dificuldades educativas criadas pelas medidas impostas pela OCDE e pelas políticas nacionais que as legitimam.
Vale a pena ler alguns passos dessa entrevista (na qual se destaca a preparação das crianças e jovens para o mercado de trabalho) para melhor se perceber o sentido da frase. Não se deve perder de vista que o entrevistado é reconhecido como a pessoa mais importante e influente da educação escolar a nível global.

(Nota: sublinho o que é mais desconcertante no discurso, tanto pelas contradições que nele se encontram, como pela negação da prática histórica, como, ainda, pelo carácter impositivo das mudanças em causa).
(...) Tocava numa orquestra alemã, tinha um professor extraordinário que dirigia 100 alunos, e éramos obrigados a praticar todos os dias. Disciplina, esforço, aprendizagem, tudo isso mudou a minha vida (...). Foi assim que aprendi a esforçar-me e a concentrar-me. Todas essas competências que agora começamos a valorizar… Sim, percebi que, se tentar muito, tenho mais hipóteses de ser bem-sucedido.
(...)
Na sua conferência TED, em 2012, diz que há este conceito enganador de que a aprendizagem é um lugar e não uma prática. Quer explicar melhor? Percebemos, há algum tempo, que aquilo que é fácil ensinar e aprender será fácil de ser automatizado. Neste tempo da Inteligência Artificial, temos de pensar melhor sobre o que vai distinguir-nos das máquinas. A escola tem de conseguir produzir humanos de primeira, não pode continuar a originar robôs de segunda.
Concorda que, se alguém do século XVIII entrasse hoje numa sala de aula, não ia estranhar? É verdade em algumas coisas, noutras não. Mas há um risco de as escolas de hoje continuarem a ensinar para o passado em vez de para o futuro, a pensar no que aí vem (...). Achamos sempre que, como não se ensina como nós aprendemos, eles não estão a aprender nada…
As suas últimas palavras sobre o percurso e o desempenho de Portugal foram muito elogiosas. Continham, porém, esse aviso sobre o risco de os nossos alunos saberem reproduzir mas não aplicar o que aprenderam em situações reais… Exatamente: as aprendizagens só servem para alguma coisa se soubermos utilizá-las.
Isso explica, então, esta aposta num programa que quer avaliar competências sociais e emocionais. É preciso mudar este paradigma? Não se trata de escolher entre uma coisa e a outra. Deve haver uma combinação, a capacidade de mobilizar ambas as valências para um objetivo. Numa entrevista de emprego, o empregador vai querer saber dos seus resultados académicos, mas também quem é, do que gosta, se trabalha bem em equipa... E isso hoje faz toda a diferença porque é o que nos distingue das máquinas.
Como se ensina isso na escola? Essa é a grande questão. Algumas destas coisas "apanham-se", não se ensinam. Como a empatia, a resiliência. Mas é possível treiná-
las (...). De repente, compreendemos que a cultura que envolve a aprendizagem, e não só o que ensinamos, também faz a diferença, também tem os seus benefícios.
(...)
Quando me dizem que as escolas não podem resolver os problemas da sociedade, penso: “Então para que servem?”
(...)
E isso também explica a importância das tais soft skills. Bom, anda muita gente a falar de soft skills, mas eu nem gosto dessa expressão. Parece que é algo que não é muito importante. Digo sempre competências sociais e emocionais, até porque acredito que podem ser aprendidas, treinadas. Alguém pode ser muito bom a matemática e a ciências, mas se não tiver curiosidade para aprender, energia para ir à procura de mais, então nunca será bem-sucedido. Porque o que se ensina na escola em breve vai estar desatualizado.
E podemos sempre ir ao Google. Pois. E o mundo vai continuar a mudar e nós temos de ter a capacidade de nos adaptarmos. Se não formos capazes de andar com os outros, vamos ficar para trás. 
Isso quer também dizer que vamos ter de continuar a aprender ao longo da vida? Claro. Os que não forem capazes de continuar a aprender não serão capazes de acompanhar os outros. É que os computadores “aprendem” depressa. Num instante, estarão a fazer todo o trabalho que fazemos de forma automática. Para mim, esse é o lado bom da Inteligência Artificial. Vai obrigar-nos a focarmo-nos no que nos torna diferentes e relevantes num mundo robotizado (...) Se for um professor de desporto, pode sempre treinar a resiliência, a coragem, a responsabilidade pelo seu desempenho e pelo desempenho da equipa. Quando toquei na orquestra, percebi isso. Cada um tem de fazer o seu papel num todo, é preciso muita disciplina, muito esforço, muito treino.
Há quem defenda que a nossa cultura escolar não muda porque vivemos para os rankings e para as notas de acesso à faculdade. Se isso mudasse, mudaria tudo, não concorda? Concordo. As universidades são muito preguiçosas. Qualquer empregador quererá saber o máximo sobre quem está a empregar – e as universidades deviam fazer o mesmo. Bem, nós também devíamos exigir mais das universidades. Por exemplo, para estudar Medicina, é preciso ter muito boas notas. Mas isso não nos diz se aquela pessoa vai ser um bom médico. A empatia com o doente e a capacidade de ajudar também vão fazer a diferença. É muito preguiçoso escolher estudantes só pela sua “média”.

6 comentários:

Anónimo disse...

A partir dos excertos da entrevista referida neste texto, parece que o mais importante para o senhor Schleicher é defender-se dos críticos das políticas educativas da OCDE, os tais que "achamos sempre que, como não se ensina como nós aprendemos, eles não estão a aprender nada…". Aceitemos que o ensino antigo - quando era necessário aprender física e matemática, matérias tão fáceis e "automáticas" que até os computadores as aprendem melhor e mais depressa que os "humanos" -, já não dá resposta às exigências do nosso mundo construído sobre bases científicas e tecnológicas! Daqui não pode decorrer que a escola sirva apenas para transmitir capacidades emocionais e sociais aos alunos. Concordo, com Schleicher, que "deve haver uma combinação, a capacidade de mobilizar ambas as valências para um objetivo. Numa entrevista de emprego, o empregador vai querer saber dos seus resultados académicos, mas também quem é, do que gosta, se trabalha bem em equipa...". Porém, o que se verifica na prática quotidiana das escolas EB1,2,3 + S + JI, em Portugal, é que, atualmente, pretende-se dar tanta ênfase à criatividade e às capacidades sociais e humanas que corre-se o sério risco de afastar da escola o ensino e a aprendizagem os conhecimentos básicos e fundamentais das Ciências e das Humanidades.
É verdade que um indivíduo pode almejar o Prémio Nobel da Literatura se estiver bem estribado apenas numa sólida cultura popular, mas para brilhar em Medicina ou Física, ainda precisa da "velha" escola!

Carlos Ricardo Soares disse...

Das muitas reflexões que o texto suscita, vou fazer, à laia de comentário, duas ou três considerações.
Os agentes do ensino/educação devem ter a noção clara das diferenças entre Escola, Ensino, Educação, Professores e Alunos.
Os meus melhores professores, talvez não fossem bons professores e não me parece que me tenham ensinado muita coisa.
Talvez os considerasse melhores porque me ensinaram a aprender, que é tão importante para um estudante como para um professor é importante aprender a ensinar, a ensinar a estudar, a aprender.
É fácil constatar uma correlação entre a dedicação a tentar a melhor forma de aprender e de compreender uma matéria e a facilidade, rapidez e eficácia com que ela é aprendida, compreendida e assimilada para os mais diversos efeitos, discursivos, de aplicação de inovação, etc..
Ainda assim, os melhores professores, mesmo os bons, não o são para todos os alunos, assim como os piores, sejam ou não medíocres ou maus.
Nem todos os professores sabem aprender para o poderem ensinar, nem todos os professores sabem ensinar para os alunos poderem aprender.
Mas ser um bom professor é muito mais do que isso e não é pacífico o entendimento do que seja um bom professor, nem em teoria, quanto mais na prática?!
O professor é uma pessoa que avalia e classifica pessoas a quem, voluntária ou involuntariamente, pode marcar para a vida. Mas tem muitas outras funções e obrigações profissionais.
E, independentemente do cumprimento das suas obrigações profissionais, um professor pode não ser bom professor e vice-versa, pelo menos para alguns dos seus alunos.
Por vezes até a forma como um professor fala indicia suficientemente que não pode ser um bom professor.
As capacidades humanas podem sobrelevar às capacidades técnicas ou conceptuais, no que respeita às capacidades que devem ser predominantes num professor.
E, no que respeita a valores, por exemplo, a honestidade, uma das faces de um poliedro de verdade, humildade, seriedade, respeito, justiça, ombridade, verticalidade, realismo, lealdade, confiabilidade, credibilidade, etc., pode ser o pilar sem o qual ninguém consegue ser professor e, muito menos, um bom professor.
Atrevo-me a dizer que o papel do professor é tão complexo que ninguém está “idealmente” à altura de o representar.
Talvez por não ser apenas, nem principalmente, um papel, por mais que todos queiram atribuir.lhe um.

Anónimo disse...

Citando Eça de Queirós:
"Para ensinar há uma formalidadezinha a cumprir — saber."
E se na Escola Pública do século XXI, em Portugal, o próprio Estado prescreve, em forma de muitas leis dispersas e difusas, que é preferível aprovar um calaceiro ignorante do que estragar o quadro estatístico do sucesso educativo a 100 % para todos?! Onde é que fica o "professor bom"?
A resposta é muito simples: o bom professor é todo aquele, ou aquela, que não atribui notas inferiores a 18 valores, no ensino secundário, profissional ou normal, ou níveis inferiores a quatro, no ensino ministrado nas escolas EB 1,2,3 + JI.
O século XIX do Eça já foi há mais de cem anos!
Se concordo com Antero de Quental, para quem a nossa fatalidade é a nossa história, acrescento que, nos nossos dias, os principais culpados pelo descalabro da escola secundária são os cientistas doutores das ciências da educação, para quem, na nova escola inclusiva e flexível, vale tudo e cabem todos, exceto os que querem ensinar e os que querem aprender - haja Criatividade!
Haja Alegria!

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo das 15h47
Agradecendo o seu comentário, noto o estereótipo a que recorre e no qual terá necessariamente de me incluir: "cientista doutora das ciências da educação".
1. Nem todos os "cientistas de educação" produzem/reproduzem as políticas educativas a que aluda;
2. Talvez fosse importante tentar compreender quem são os autores/responsáveis por essas políticas, que formação têm, a que entidades pertencem, etc.
Cordialmente,
MHDamião

Anónimo disse...

Ex.ma Senhora Professora Helena Damião,

Agradecendo o seu reparo pertinente ao meu comentário publicado no Dia de Natal, esclareço muito respeitosamente que o alvo das minhas invectivas são os doutores das ciências da educação que, forçosamente, têm de pulular nos gabinetes do Ministério Educação, haja em vista o manancial de documentação orientadora, escrita em eduquês vulgar, que têm enviado para as escolas EB1,2,3 + S +JI, sobre as aprendizagens essenciais da escola inclusiva com currículos flexíveis. Como a Professora Helena nunca escreveu em eduquês neste blogue, não posso incluí-la no estereótipo dos "cientistas doutores das ciências da educação".
Todos somos poucos para defendermos as qualidades intrínsecas dos professores, dos alunos e das escolas!


Helena Damião disse...

Prezado Leitor
Presumo, pelas suas palavras, que seja professor. Nessa presunção, digo-lhe que percebo o que diz pois conheço bem os documentos desta reforma. Mas conheço também os documentos das duas reformas anteriores, bem como os documentos de reformas recentes de outros países (ainda que não de muitos). Assim, se me permite, peço-lhe para prestar atenção, a este alargamento temporal e espacial, e,sobretudo, a quem (pessoas e entidades) delineia essas reformas. Encontrará, certamente, na actualidade, um trio funcional (também presente na ciência), organizado por esta ordem, em termos de poder efectivo: empresários/empresas, políticos/política, executores.
Estes executores, indistintamente reconhecidos como especialistas em educação, têm a mais diversa formação, função profissional e posição social. Eu diria que quem quer fazer-se passar por especialista em educação "basta" apropriar-se de um certo vocabulário, que organiza numa certa "narrativa".
Com isto não estou a negar que no campo das ditas "Ciências da Educação" não seja cultivado um certo modo de pensar que o Leitor reconhece e nota (é-o, de facto). Mas gostaria de reafirmar que esse modo de pensar é estruturado e divulgado NÃO apenas NEM principalmente no campo das Ciências da Educação. Se nos ficarmos por aí, generalizando, não entenderemos o que se está a passar na escola pública a um nível que é global, que vive "tempos difíceis, mas não impossíveis".
Cordialmente,
MHDamião

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