Meu posfácio ao livro que acaba de sair na Imprensa da Universidade de Coimbra reunindo duas peças de teatro de Mário Montenegro:
"A Expressão das Emoções" e
"LED - Viagem ao interior num computador", cujos textos aqui ficam
publicados, são duas peças de “teatro científico”, isto é, teatro inspirado em
temas da ciência, da autoria de Mário Montenegro, que as encenou para a sua
companhia, a “Marionet,” sedeada em Coimbra. “A Expressão das Emoções” estreou
no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, a 25 de Novembro de 2014,
integrada na Semana da Cultura Científica e Tecnológica, ao passo que “LED –
Viagem no Interior de um Computador” estreou a 25 de Setembro de 2006 no Teatro
Académico de Gil Vicente, na mesma cidade.
Une as duas peças, para além de ambos os temas
serem científico-técnicos – num caso a classificação das emoções humanas, que
começou por ser ensaiada por fisiologistas e naturalistas do século XIX e no outro
o funcionamento interno de um computador digital, que surgiu no século XX - o
experimentalismo na exploração literária dos temas. Mário Montenegro recorreu,
como é de resto seu timbre, tanto numa peça como noutra à discussão de ideias
com o grupo dos seus colaboradores e falou também com investigadores científicos,
num processo criativo que o levou, a partir da escolha do tema, à escolha de um
enredo e do texto ora fixado em livro. Os dois resultados não podem deixar de
ser considerados originais, tal como de resto ocorreu com as numerosas peças
também de “teatro científico” que o mesmo dramaturgo e a mesma companhia
prepararam e representaram desde 2001, numa experiência verdadeiramente
singular no nosso país. Podemos falar de “escrita de cena” (em inglês, “devised
theater”), um teatro que é construído em colectivo, emergindo o texto a partir
de sucessivas reuniões e ensaios em palco. É um teatro que levanta mais
perguntas do que responde, um teatro que provoca e inquieta, um teatro que
procura envolver directamente os espectadores quer pela sua proximidade aos
actores quer mesmo pela sua participação activa dentro de cena. Enfim, um
teatro que desafia muitas das normas tradicionais.
A leitura dos textos dramatúrgicos não dá
porque não pode dar a noção da sonoridade das falas, da visualidade dos
cenários e dos figurinos e da expressão dos actores. No entanto, os textos
permitem-nos, sem as distracções dos outros elementos cénicos, atentar melhor nas
palavras e nas frases que elas, encadeadas, formam. São decerto as palavras e
as frases mais adequadas que o autor-actor (nas representações, o autor foi ele
próprio actor) encontrou, ponderando os contributos recebidos, para exprimir as
ideias e os sentimentos que pretendia transmitir. Em “A Expressão das Emoções”,
o título remete-nos para uma das obras mais conhecidas de Charles Darwin, “A Expressão
das Emoções no Homem e nos Animais”, publicada em 1872, treze anos depois da
“Origem das Espécies”, onde estuda a associação entre sete emoções consideradas
básicas (tristeza, raiva, surpresa, medo, nojo, desprezo, alegria) e expressões
faciais. Darwin estava interessado nos paralelismos entre homens e animais,
ligados por uma longa história evolutiva. Sendo a ênfase desta peça colocada
nas emoções, facilmente se percebe que a leitura do texto não pode dar a ideia
da riqueza plástica do espectáculo, ao qual tive o prazer de assistir. Uma
parte da peça nem sequer aparece codificada sob a forma de escrita: falta mesmo
o texto, pois a ideia do autor é, em certos momentos, a representação de um modo livre de cenas que exemplifiquem
algumas emoções básicas, a começar pela tristeza. A acção leva-nos, no primeiro
acto, a uma situação de ficção científica: Ana, uma investigadora de um Centro
de Análise Emocional e Comportamental, vem à boca de cena falar da Arqueologia
das Emoções, uma ciência que se serviria de objectos deixados em palco para
chegar a conclusões sobre emoções associadas a eles. A partir das emoções neles
detectadas, os objectos são classificados e colocados num sistema de
quadrículas como o dos terrenos de escavação arqueológica, que correspondem às
emoções padronizadas. Quer dizer, o palco fica literalmente um terreno de
emoções. O segundo acto passa-se num Laboratório de Experimentação de Emoções,
no qual se dá a experimentação das emoções por uma técnica teatral: um
investigador, Leonardo, vai-se colocando nas várias quadrículas emocionais,
revelando corporalmente o respectivo conteúdo. É uma espécie de teatro dentro
do teatro. Ana não resiste a interagir coreograficamente com Leonardo, passando
os dois rapidamente de emoção em emoção. O leitor que leu o texto conhece o desfecho:
o jogo de emoções conduz a uma delas, a raiva, quando o chefe descobre o que se
chama “relação no local de trabalho” (é a “katastrophe” do teatro grego”). Como
o teatro imita a vida, os laboratórios científicos reais são também palcos de
emoções, onde por vezes ocorrem picos emocionais, pela simples razão de que os
cientistas são humanos, por vezes muito humanos. Provam-no à exaustão os
numerosos casos de assédio sexual em ambiente científico que têm vindo a ser
revelados nos últimos tempos. Para o teatro ser credível, é preciso que ele,
por muita imaginação que incorpore, esteja ligado à realidade de que somos
parte. E a realidade é que nos emocionamos facilmente, pois faz parte da nossa
natureza. Ou será que, dissimulando emoções, podemos esconder a nossa natureza?
Na peça “LED - Viagem ao interior num computador”,
recorre à personificação de uma partícula elementar, o electrão, que interpela
filosoficamente a fonte de alimentação, que o manda dar a volta ao circuito sem
que ele de início queira obedecer. Neste caso, a sobreposição entre o
microscópico e o macroscópico permite que uma partícula fale tal como os
animais das fábulas. Vale a pena transcrever um excerto do diálogo: O electrão
diz: “Ainda não parei desde o primeiro instante. Sempre a saltar de átomo para
átomo. Neste instante quero saber mais. Quero fazer a saber. Preciso. É esta a
minha carga, aqui. Agora quero um objectivo.” Ao que a fonte responde: “Não
podes deixar de ser atraído. É a natureza. Segue o teu impulso.” E o electrão replica:
“Neste agora o impulso é perguntar”. Mais uma vez não se pode contrariar a
natureza. O electrão, por não poder opor-se ao seu destino (o ”ananké” do
teatro grego) acaba por saltar sucessivamente para o condutor, para a
resistência, para o processador e a memória, a seguir para o transístor (bem, um
processador é feito de transístores, mas o “teatro científico” não tem de ser estritamente
científico), num processo, descrito por uma escrita frenética, que desemboca num
espaço onde há o LED que dá o título à peça. Aqui os protagonistas são fotões, as
partículas de luz, que interagem alegremente com os electrões. E faz-se luz! Há
nesta peça uma espécie de “deus ex machina”, designado por ELE, que nunca
aparece: é o programador que controla tudo o que acontece. Tal como os actores têm
de fazer o que o autor do texto manda, também o electrão da peça, apesar das
suas dúvidas existenciais, terá de fazer aquilo que o programador ordena. Ao
lembrar a presença de um ELE, escondido mas
subjacente à intimidade do computador, o dramaturgo estará talvez a reforçar
a ideia comum de que os computadores são nossos escravos e que, por isso, não podem
ter vida própria. Mas ficará no espectador (aqui no leitor) a pergunta: será
que os electrões algum dia poderão ser livres? Isto é, será que, como sustentam
alguns defensores da inteligência artificial, as máquinas não poderão um dia
ver-se livres dos humanos, irrompendo como modernas criaturas de Frankenstein.
Onde está afinal a fronteira entre o natural e o artificial?
O teatro, tal como a arte em geral, serve para
colocar questões. O pintor francês Georges Braque, um dos fundadores do
cubismo, declarou um dia que “a arte é feita para perturbar; a ciência
tranquiliza”. Tal como as pinturas cubistas o papel do teatro de vanguarda
consiste em perturbar. Mas servirá a ciência para tranquilizar? Não duvidando
que em certas circunstâncias o possa fazer, o certo é que ciência também perturba,
como é evidenciado por estas estas duas peças de Mário Montenegro. A ciência e
a arte têm mais semelhanças do que normalmente se julga. E o “teatro
científico” só o vem confirmar.
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