quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

A “esquerda” de Estaline e Trotsky, de Cunhal e de Louçã, ou de Soares e Mitterrand?

Artigo de Guilherme Valente publicado no Público a 27/11:

 Façamos uma leitura informada e livre - palavra cara a Rui Tavares (RT) - do artigo expressivo que acaba de divulgar no PÚBLICO “A esquerda comeu o meu trabalho de casa” (19/11), que só agora mesmo li.

 Se a direita adopta um bom valor da esquerda fá-lo por... hipocrisia, isto é, por genética (!!!), diz Rui Tavares. Eu, pelo contrário, congratulo-me com isso. Bem-vinda a um justo valor, a uma boa prática!

RT, por seu lado, adopta, exibe, uma espécie de racismo político. Dito com uma parábola: se uma jovem paquistanesa islâmica oferecer um copo de água a um confrade cheio de sede, é um acto nobre, de fé exemplar. Mas se a jovem for cristã e o oferecer a um islâmico é uma blasfémia - um acto hipócrita, diria RT - punido com a pena capital. Isto é, o copo de água deixa de poder matar a sede!

 Se eu aplicar esse critério inquisitorial que RT no caso vertente adopta, direi que a confusão que faz (de mau aluno de liceu) sobre a questão que levantou no seu artigo não resulta de ignorância, mas da perversidade genética. Isto é uma hipótese académica, repito, porque na verdade penso que resulta de cegueira ideológica. Que começo a recear incurável, eu que tinha esperança de o ver tornar-se em breve um excelente militante do PS, destino “etário” feliz de muitos trotskistas em França, nomeadamente Jospin e Moscovici. Destino que é uma pena para o País ser já tardio para Francisco Louçã, suponho.

 Desmontemos a confusão de RT:

 Quando diz “esquerda” refere-se a quê? À esquerda democrática liberal, movida pela exigência de liberdade, liberdade de pensamento e de expressão, de igualdade social, da educação e da cultura para todos, da independência da justiça, da recusa de todas as discriminações e da preocupação com a valorização das minorias? À esquerda dos direitos humanos universais? À esquerda que, com as direitas democráticas e cristãs, venceu os totalitarismos carniceiros do século XX? À esquerda herdeira dos ideais iluministas (a que RT justamente faz referência), designadamente os da liberdade de pensamento e de expressão, insisto, do humanismo, do cosmopolitismo e do universalismo, do mercado – regulado, tal como a liberdade é regulada pelo direito penal, o “doce mercado” (Montesquieu), factor de prosperidade, que exige a redistribuição e inclui o estado social? À esquerda do critério do mérito (a que RT chama ou junta bem a responsabilidade social), critério que a direita, tradicionalmente valorizadora do critério do nascimento – posteriormente adoptou? À esquerda herdeira do ideal europeísta (sim, Voltaire era um europeísta e a lógica dos grandes ideais do Iluminismo era, é essa)? À esquerda de Mário Soares e Mitterrand, de António Costa, não duvido, e, já agora que estamos no mês da transformadora cultura científica, de José Mariano Gago que quero lembrar sempre? À minha esquerda, permita-me V. Excelência, que essa sim está na minha “genética”, perdão, na minha história?

 Ou à extrema-esquerda – igual à extrema-direita, seja lá qual for o discurso que ostentem – que exterminou milhões de seres humanos sufocando aqueles ideais? À esquerda do ódio aos ideais iluministas e, já agora que é um combate meu, do ódio à Ciência, à prova de realidade? Esquerda da estigmatização dos factos, da alteração impossível, delirante, da História e da realidade?

 É História, RT, embora a tenham sempre tentado reescrever.

Surgiu agora em Itália – “onde nasce o perigo surge a salvação”, escreveu Hölderlin? – um livro em que se pretende explicar como identificar um fascista. Quanto a mim é mais simples do que diz a autora: se quiserem contactar um fascista, ou um estalinista que são idênticos, procurem um activista anti-europeu e terão uma esmagadora probabilidade de o encontrar. E o inverso é absolutamente infalível: um fascista e um estalinista são sempre anti-europeus.

 Será que também preciso de lhe explicar isto, meu decepcionante Rui Tavares? Repare como estão tão unidos no anti-europeísmo o França Insubmissa do Senhor Mélanchon, o BE do inteligentíssimo (para mim sempre urbano, registe-se) Francisco Louçã e a Frente Nacional do Senhor Le Pen (diz-se agora que a Marine até já nem o está tanto assim). E prepare-se porque em breve os vai ter a todos a destaparem também a xenofobia que lhes está na matriz comum original.

 E o Rui Tavares, que já o vi defender tão justamente o ideal e o projecto europeísta (em que é preciso enfrentar o que o está a fragilizar e a perverter, aprofundá-lo, claro), onde está agora?

 Setenta e três anos de paz, como nenhuma geração antes da minha tinha vivido na Europa! Sem fronteiras. E de prosperidade, que temos de continuar a trabalhar, a lutar para levar a todos. Como se pode ser anti-europeísta?

Guilherme Valente (editor da Gradiva)


6 comentários:

Rui Baptista disse...

Infelizmente, meu Caro Dr.Guilherme Valente, tornou-se uma espécie de doutrina política diabolizar a extrema-direita e santificar a extrema-esquerda do golpe de Estado bolchevique e dos crimes cometidos por Staline Chegou-se a ponto de dizer que o Muro de Berlim foi construído pela Alemanha Oriental para evitar que os cidadãos da Alemanha Oriental tivessem acesso ao Paraíso Comunista. Enfim...

Rui Baptista disse...

Staline, não; Stalin ou Estaline, sim!

Anónimo disse...

Ser de esqª ou de dirª é, em primeira aproximação, uma questão de autodenominação, uma questão de conveniência (ou até gramatical) em vez de ideológica, e geralmente a prazo. Ele há, num e outro lados, ricos, remediados e assim-assim; cultos, eruditos, ignorantes e assim-assim. Ser de um "lado" ou de outro, qual clubismo, é, com frequência, uma cara(c)terística conjuntural.
"Os fascistas do futuro chamar-se-ão a si próprios anti-fascistas", Churchill dixit; e hoje (já) é o futuro do tempo dele.

Rui Baptista disse...

Ser de esquerda ou de direita, como bem escreve, é uma característica conjuntural. Obrigado pelo seu comentário que clarifica uma situação nebulosa.

Fernando Martins disse...

Excelente texto - de facto, cada vez mais, os extremos tocam-se e equivalem-se...

Anónimo disse...

O Doutor Cunhal foi para a classe proletária deste mundo o que o Sol é para a Terra!

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