terça-feira, 18 de dezembro de 2018

PREFÁCIO DO "DICIONÁRIO DOS ANTIS" (IMPRENSA NACIONAL)


DICIONÁRIO DOS ANTIS
APRESENTAÇÃO

Foi há sete anos. José Eduardo Franco estava em Paris e apresentou-me o seu projeto de fazer uma história dos antis, e da cultura em negativo que estes produziram. Dada a diversidade de domínios que teria de abordar, concluiu que só a forma de dicionário permitiria fazer justiça à amplitude desta questão. A ideia seduziu-me imediatamente e, olhando para trás, perguntei a mim próprio como era possível que tal projeto nunca tivesse sido realizado. Estava diante de um daqueles conceitos simples e evidentes que mudam o ângulo de interpretação de toda a evolução humana, mas de cuja eficácia ainda ninguém se tinha apercebido. Existem, com efeito, numerosas mobilizações e organizações que foram criadas unicamente para se oporem a uma opção política, a uma ideologia, a uma religião; ou simplesmente a uma lei, a um decreto; ou então a um espetáculo ou a uma moda. Existem mesmo gerações inteiras de movimentos de oposição que forjaram múltiplos vocábulos para assinalar a radicalidade do seu desacordo.

Para um historiador contemporâneo, surgem em primeiro lugar aqueles que se ergueram contra os princípios que mudaram a sociedade em que viviam: a contrarreforma, a contrarrevolução, que manifestam o desejo de bloquear movimentos de transformação que colocavam em perigo, segundo os seus promotores, o equilíbrio do mundo. Ora, os que eram contra esperavam uma erradicação completa desses processos destrutores.

No século xx, desenvolveram-se movimentos anti fortemente implicados no terreno ideológico e partidário. É a grande época dos anticomunistas, dos antifascistas, dos antimarxistas, dos antinazis, dos antimaçónicos... De tal modo que estes termos entraram na linguagem corrente e se tornaram tema de teses e de obras de investigação. Os antis têm como ponto comum serem simétricos e pressuporem que os seus adversários se manterão ativos durante muito tempo.

De algumas décadas a esta parte, houve um sufixo entrou na linguagem corrente para desqualificar um adversário: “fóbico”. Com os islamofóbicos, os homofóbicos e outros judeofóbicos, deixou de haver uma oposição racional; o que há é uma espécie de loucura, de doença mental, que obrigará à exclusão da sociedade dos “fanáticos” que fazem tais discursos. Estamos perante um testemunho vivo daquela eufemismização da violência pensada por Norbert Elias em Dans la Dinamyque de l’Occident, onde o pensador alemão profetizou, já nos anos de 1960, uma psicologização das relações sociais, que iria ao ponto de transformar o debate publico numa polémica clínica...

A originalidade do dicionário que o leitor tem entre mãos consiste em observar as práticas sociais de hoje e as suas representações em comportamentos e argumentações muito mais antigos. E porque não desde a aurora da humanidade? Vemos assim que os antis não constituem apenas uma história reduzida às oposições pontuais, mas uma história de cada século, de tal modo que cada geração escreve a sua própria redefinição intelectual e alimenta a criação de novas instituições para efeitos de contradição e afronta.

Em suma, José Eduardo Franco e os seus colegas mostram-nos, através dos antis, como se tem desdobrado uma dimensão negativa da cultura desde a Antiguidade. Prolongando o seu propósito, compreendemos que a crítica acabou por se tornar uma forma de arte: o confronto promove o saber-fazer, modela maneiras de pensar que constituem uma afirmação. Um olhar sobre o panorama dos antis permite observar as grandes questões da civilização ocidental e as tensões que subjazem aos seus enredos. As entradas sobre ateísmo e antiateísmo ilustram bem este perceção e lançam-nos na longa duração, demonstrando que a atitude de pôr em causa as crenças está relacionada com os sistemas religiosos de cada época.

O leitor pode usar este livro para tomar conhecimento dos verbetes saborosos que aguçam a sua curiosidade e navegar aleatoriamente na história; ou regalar-se, por assim dizer, lendo a entrada sobre anticarnivorismo (antiantropofagia); ou ficar admirado ao ver o antidonjuanismo impor-se como doutrina literária. As ilustrações pertinentes favorecem esta vagabundagem ao sabor do humor, entre retratos de personagens importantes e cenas inesperadas.

Mas este dicionário permite também uma leitura contínua, como quem lê um ensaio, repleto de uma série de curtos capítulos ricos em aproximações entre os valores e os acontecimentos.

Desta leitura, podem retirar-se duas conclusões fundamentais. A primeira é que o Dicionário dos Antis constitui uma verdadeira história pluridisciplinar de Portugal, através de cujas entradas se revisitam as grandes rotações do país: a reconquista, a afirmação do poder da monarquia, os movimentos eclesiásticos, nomeadamente os Jesuítas, seguidos das tensões coloniais e partidárias... Também se pode observar de que modo filósofos, historiadores, juristas e sociólogos contribuíram, ao lado dos escritores e juntamente com os políticos, para este movimento. As mudanças, até mesmo da língua portuguesa, encontram-se nas obras pioneiras que influenciaram o futuro do estilo académico e político. Por esta via, distingue-se claramente como se formaram as normas do bem crer, do bem pensar, do bem agir.

Em segundo lugar, a obra ilustra de forma notável a grande utilidade dos estudos globais aos quais se consagra a equipa responsável por este projeto. Ao longo das suas muitas páginas, este dicionário manifesta a extraordinária conexão de Portugal com a história do mundo: reencontramos os contactos aventurosos dos navegadores, bem como o desenvolvimento de uma esfera lusófona onde circulam as palavras e os discursos de oposição; viajantes e migrantes são os promotores de uma circulação transnacional das ideias que aparecem depois com grande vitalidade em Portugal, provindas de paradigmas imaginados noutros países. É o caso, por exemplo, do anticomunismo, cujas raízes remontam, no mundo ocidental, à luta contrarrevolucionária, que atingiu o seu cume após 1917; e do antifascismo, que, nascido em Itália em 1919, se transplantou em seguida, ao ritmo da radicalização europeia, para a península Ibérica.

No fundo, os antis não têm fronteiras. As bibliografias que concluem os artigos são a maior prova da variedade de referências e da diversidade da sua proveniência. O leitor constata de que modo os argumentos passam de um país a outro, ora alumiando um debate, ora relançando uma polémica, ora inspirando certas ondas intelectuais em movimento perpétuo.

Não há dúvida, por outro lado, de que o Dicionário dos Antis vai suscitar um vasto debate internacional. Não estamos em altura de denunciar este ou aquele grupo, mas de entrar no laboratório do pensamento dialético, que é uma maneira de estimular o espírito crítico quando o falso, o virtual e o verdadeiro se misturam; que é pôr em causa os erros conspirativos e as certezas abusivas deste mundo dividido entre manipulação e informação que se tornou o nosso.

Fabrice d’Almeida
Professor Catedrático da Universidade de Paris II, Panthéon-Assas
Antigo Diretor do Instituto de História do Tempo Presente de Paris

Paris, 14 de fevereiro de 2018

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