sábado, 7 de julho de 2018

DIGNIDADE

Artigo de Maria do Carmo Vieira saído na revista Villa da Feira em Junho:


Já expressámos, por inúmeras vezes, a nossa convicção de que o pouco interesse pela Cultura, manifestado por parte de quem manda, resulta da opção consciente em anular o que é espiritual, talvez porque também nunca tenham sentido os seus efeitos benéficos, defendendo e valorizando superlativamente tudo o que conduza, com facilidade e rapidez, à obtenção de um pretenso bem-estar material. Quanto mais ignorantes forem as pessoas, quanto mais se traírem, expondo-se perigosamente ao abdicar de pensar por si próprias, mais facilmente serão conduzidas e enganadas sem a menor compaixão. Testemunha-o o crescente populismo, seja qual for a ideologia que dele se aproveite, e a sociedade global e profundamente desumanizada em que vivemos. Ideias que repetimos porque constante a preocupação que não sentimos abrandada.
Este desejo de moldar o ser humano, estando dele ausente sensibilidade, espírito crítico e responsabilidade, por falta de educação e de treino, começa paradoxalmente na escola, temática que nos é cara e sobre a qual nos temos debruçado com regularidade. A obsessão pela facilidade e a não valorização da reflexão e do estudo, aspectos visíveis, por exemplo, no ensino da Língua Materna, com o uso forçado do absurdo e controverso Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), são sinais evidentes de uma autoridade, no sentido de competência, posta em causa, uma situação que se verifica igualmente em poemas, falsamente atribuídos a Fernando Pessoa, ortónimo e heterónimo, lidos e analisados em sala de aula. A rapidez com que se vai à internet, em procura de material didáctico, ocasiona esta lástima e as vítimas perpetuarão a ignorância.
Há sempre quem se deixe aliciar pela facilidade e cultive a preguiça no estudo e na reflexão, atitudes que não impedem intervenções arrogantes sobre o que não se conhece. Testemunhámo-lo, não há muito, com uma jovem professora universitária que, irritada pelo facto de se mencionar que Luís de Camões, em Os Lusíadas, estaria em consonância com a tese africana, representativa da vontade da nobreza que defendia a expansão para África, e não para Oriente, como desejava a burguesia, perguntou «se o poeta deixara isso escrito». E não se contentando com a questão que tentava confundir quem a expusera, no caso, eu própria, quis pôr à prova o conhecimento sobre outra matéria camoniana, indagando vivamente se o poeta também deixara explicado quem era a «Rosa» do seu soneto, «Rosa minha gentil, que te partiste». Um verso pretensamente decorado, e quem sabe se transferido para os alunos, adulterando o belíssimo soneto que se inicia com «Alma minha gentil que te partiste».
Este inebriamento pela própria ignorância encontra companhia fértil em quase toda a comunicação social, criada ao som da voz-do-dono e da procura do espectacular, com realce para a televisão, pública ou privada. O modo como se desenvolvem, por exemplo, muitos dos programas televisivos, explorando a privacidade humana, em que se incluem as próprias crianças, ou encenando uma assistência, previamente domesticada, que grita, ri ou aplaude sempre que recebe ordem para gritar, rir ou aplaudir, sentada ou de pé, em perfeita sintonia com apresentadores freneticamente apalhaçados, e de um nível cultural e linguístico confrangedores, é bem sintomático da vontade de alienar e de deseducar que grassa na sociedade. Mesmo nos programas de índole cultural, nomeadamente na Rádio, damo-nos, por vezes, conta de uma ignorância ostentada não só em relação à Literatura, mas também, e sobremaneira, em relação à História (tão maltratada porque desprezada tem sido a memória). Em relação a este último caso, não é raro que se confundam datas de acontecimentos históricos, dignos de referência, ou se galhofe com acontecimentos dramáticos e figuras históricas, ou até se espicace o entrevistado, estudioso na matéria que expõe, para uma abordagem picante de um dado assunto, como forma de o aligeirar cativando facilmente os ouvintes, assim devem pensar. Gostam estes mercenários da cultura de se ouvir e por isso interrompem constantemente, rindo de contínuo.
O mesmo pacto com a mediocridade, exposta sem pejo, aconteceu com o AO 90. Na verdade, é confrangedor ler ou ouvir a argumentação sobre o assunto, por parte de algumas pessoas ligadas à cultura e à política, a começar pelos mentores de tal aberração que a grande maioria dos portugueses inteligentemente contesta. Como é possível aceitar o critério acientífico da «pronúncia» na ortografia ou que esta se torne factor de sucessivos equívocos? Como é possível defender a «unificação ortográfica» quando, por exemplo, «recepção» e «concepção» continuam a existir no Brasil, pelo critério da pronúncia, tendo sido transformadas, em Portugal, nas aberrantes «receção» e «conceção», segundo o mesmo critério (neste caso, «p» não pronunciado), pondo em causa a vertente cultural da ortografia, ou seja, a etimologia?
Confunde qualquer um a estreita cumplicidade entre a comunicação social, salvo raras excepções, e com destaque para o jornal Público, e a classe política, em que é justo relevar a postura crítica do Partido Comunista, cumplicidade desde sempre visível no pacto de silêncio relativamente ao AO 90. Sem pejo, escondeu-se o embuste que foi o processo relativo ao desenvolvimento do Tratado Internacional que pelo seu significado exigiria uma maior seriedade, e, sem pejo, impediu-se igualmente a discussão que a matéria requeria porque a Língua, património colectivo, não é pertença de uns tantos supostamente iluminados; um embuste é ainda a unificação ortográfica pretendida quando a própria diversidade geográfica e cultural, da mencionada «lusofonia», a impede. Lamentável é o facto de alguma intelectualidade, traindo a sua função, aceitar acriticamente a «pronúncia» como critério científico ou que as crianças sejam estupidamente usadas em nome da facilidade que não procuram.
Como se tudo isto não bastasse, festejou-se, há uns anos, a entrada, na CPLP, da Guiné Equatorial, paradoxalmente reconhecida como voz «lusófona», sem falar português, e perdoada na sua completa indiferença pelos direitos humanos. Depois do espanhol e do francês (processo de adesão à francofonia há 18 anos) o português é o seu terceiro idioma oficial (anunciado há 5 anos), mas ainda não falado, e, segundo informação vinda a público, os governantes têm tido acesso a acções de formação através da embaixada do Brasil.
Tentar enganar não é um comportamento digno de um político. Trair a inteligência, o estudo e a função de alertar não é um comportamento digno de um
intelectual; obedecer à estupidez e aceitá-la com resignação é abdicar da dignidade que devemos a nós próprios.
Contamos consigo para subscrever, caso ainda não o tenha feito, a Iniciativa Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (ILCAO), ajudando-nos também a divulgá-la e a angariar as subscrições em falta (menos de 3000). Para o efeito, consulte e partilhe o sítio oficial da ILC: https://ilcao.com/subscricoes/subscrever/
Maria do Carmo Vieira

2 comentários:

Rui Baptista disse...

Acabo de assinar a petição, saudando com muita amizade e consideração a Colega Maria do Carmo Vieira

Anónimo disse...

Estas excrescências purulentas que nos últimos anos têm irrompido do tecido epidérmico cultural português, quais sejam, entre outras, o Novo Acordo Ortográfico e a eliminação de qualquer substrato cultural aos conhecimentos que os professores ensinam na escola, operação pedagógica imprescindível à "melhoria das aprendizagens dos alunos, nas palavras sábias e avisadas de Maria de Lurdes Rodrigues, corroboradas pelo jovem Tiago Brandão Rodrigues, têm causas profundas e históricas, entre as quais sobressai, para quem tenha visão mais penetrante do que os raios X, a perda definitiva da independência nacional, resultante da revolução libertadora do 25 de abril de 1974. Como já não temos condições político-económicas para mantermos um Estado autónomo, as nossas pseudo-escolhas situam-se algures entre querer pertencer à China oriental, à Europa Ocidental, ou ao Brasil tropical. O Acordo Ortográfico representa a sujeição ao Brasil, com a EDP e os Vistos Gold estamo-nos a vender à China, mas, por outro lado, os vizinhos geograficamente mais próximos votaram no nosso Centeno para Presidente do Eurogrupo!...

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